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O ímpeto chinês na América Latina pós-anos 2000

O ingresso da República Popular da China (RPC) na Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2001, acelerou o processo de integração transnacional entre Pequim e a América Latina nos anos subsequentes. Tendo como marco temporal a adesão do gigante asiático à organização do comércio global, o objetivo deste artigo é demonstrar como a América Latina, outrora marginal para os interesses chineses, tornou-se uma região estratégica, sendo hoje considerada tanto um provedor de matérias-primas quanto um atrativo mercado emergente com 600 milhões de pessoas.

Este estudo também analisa o pessimismo estadunidense em relação aos crescentes investimentos chineses no contexto latino-americano. Focando especialmente no setor energético, esta análise fundamenta-se em pesquisas bibliográficas e em documentos da RED Acadêmica de América Latina e Caribe sobre China (RED ALC-CHINA), que, desde 2013, publica estudos sobre economia, comércio e investimentos chineses na região.


Breve contextualização das relações América Latina – China

A ascensão econômica e política da República Popular da China no cenário internacional figura como um dos eventos mais relevantes da economia política internacional e das relações internacionais nas últimas décadas. Observadores experientes, tanto ocidentais quanto orientais, ressaltam a adaptabilidade do Estado chinês, evocando a máxima de Sócrates: “Só sei que nada sei” (GEROMEL, p. 23).

As relações diplomáticas entre os países da América Latina e a RPC começaram em 1960, com Cuba, por razões políticas e ideológicas evidentes. Contudo, houve um intervalo de 10 anos até que o Chile, sob o governo de Salvador Allende, inaugurasse, em 1970, uma nova fase de relações, seguido por países sob regimes militares, como Peru (1971), Argentina (1972) e Brasil (1974), e por democracias como México (1972) e Venezuela (1974).

Nos anos 1980, período marcado pelo início da abertura econômica chinesa liderada por Deng Xiaoping, outros países latino-americanos estabeleceram laços diplomáticos com a China, incluindo Colômbia (1980), Equador (1980), Bolívia (1985), Nicarágua (1985/1990) e Uruguai (1985). O Paraguai permanece, até o momento, o único país da região que mantém relações oficiais com Taiwan.

O dinamismo nas relações China-América Latina intensificou-se com a abertura econômica chinesa, consolidada por meio de diversos acordos de cooperação. A entrada da RPC na Organização das Nações Unidas (ONU), em 1971, marcou o início da normatização de suas relações com a comunidade internacional no pós-revolução Comunista de 1949 liderada por Mao Tsé-Tung.

Com a morte de Mao e a ascensão de Deng Xiaoping ao poder, os apelos pragmáticos por “profissionalização” e reforma econômica ganharam força no âmago do Partido Comunista Chinês. Sob a liderança de Deng, os laços comerciais e culturais entre a China e o Ocidente começaram a se expandir, abrindo caminho para o investimento estrangeiro. Durante seu governo, os mercados foram vistos como a chave para a modernização da China. Em certa ocasião, Deng, em uma demonstração de pragmatismo, afirmou:

Não importa se o gato é preto ou branco. Desde que pegue o rato, é um bom gato.

GEROMEL, P. 274

Xiaoping foi de extrema importância para a guinada do Estado chinês no sistema internacional. Para explicar sobre a importância de Deng para os chineses, outrora um autor britânico descreveu:

Em 1949, Mao mudou a China. Em 1979, Deng mudou o mundo.

GEROMEL, P. 274

Não é à toa que Deng Xiaoping foi eleito duas vezes como o homem do ano pela revista Time. Deng é amplamente reconhecido como o pai do “comunismo com características chinesas”. Os investimentos chineses na América Latina começaram a ganhar relevância nos anos 2000, no âmbito da estratégia chinesa intitulada going global, que deu início a uma cooperação Sul-Sul (CSS) com os países do Sul Global. Soma-se a isso o ingresso da China na Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001, o que impulsionou a construção de um novo ordenamento internacional, multipolar e multilateral, com a América Latina como um dos focos centrais de interesse.

Com sua entrada na OMC, na categoria de economia em transição, a China passou a participar ativamente das negociações sobre as regras do comércio internacional. Exemplos de ações recentes que refletem as peculiaridades dessa relação incluem as iniciativas do IBAS, dos BRICS e do G-20. Essas agendas reintroduziram a Cooperação Sul-Sul no debate internacional, partindo da premissa de que os interesses e objetivos do Sul Global não encontram plena representação nos termos da ordem internacional vigente, dominada pelos países do Norte Global (ALTEMANI, p. 12). Nesse contexto, a Cooperação Sul-Sul é considerada por Pequim um instrumento estratégico para promover transformações na ordem internacional, contribuindo para a independência econômica, política e social dos países envolvidos.

Vale destacar que o fatídico 11 de setembro de 2001 criou novas oportunidades no contexto latino-americano. De acordo com Bates Gill, a política externa dos Estados Unidos, direcionada quase que exclusivamente para o Oriente Médio após os atentados, “abriu novas oportunidades para o sucesso da emergente diplomacia de segurança chinesa”.

A alternativa chinesa à ordem internacional não cogita o uso da força e se baseia em quatro pilares fundamentais de política externa:

  1. Compromisso com o multilateralismo, tendo a ONU como sustentáculo e garantidora da segurança global;
  2. Compromisso com o desenvolvimento econômico global;
  3. Utilização de métodos de consulta e diálogo, em oposição ao uso da força, para resolução de controvérsias;
  4. Um “espírito de alteridade”, que reconhece todas as sociedades e culturas como coexistentes e igualmente comprometidas com os interesses na ordem global (SPEKTOR, p. 46).

Os investimentos chineses na América Latina ultrapassaram o foco em infraestrutura, expandindo-se para aquisições de empresas e construção de grandes obras estruturais (CEPAL, 2015). Esses esforços foram formalizados no policy paper sobre a América Latina e o Caribe, lançado pela China em 2008 e atualizado em 2016, consolidando a unidade sino-latino-americana nos tempos atuais.Nesses termos:

Como o maior país em desenvolvimento do mundo, a China está empenhada no caminho do desenvolvimento pacífico e na estratégia de win-win. Está pronta a levar a cabo uma cooperação amigável com todos os países com base nos cinco princípios da Coexistência Pacífica e construir um mundo harmonioso de paz duradora e prosperidade comum. Os países da América Latina e do Caribe são uma parte importante do mundo em desenvolvimento e uma força importante na arena internacional. Sob novas circunstâncias, o desenvolvimento das relações entre China e os países e do Caribe enfrenta novas oportunidades. Ao emitir este documento de política da China nesta região, esboçar os princípios orientadores para cooperação futura entre os dois lados em vários campos e sustentar o sólido, contínuo e global das relações da China com a América Latina e o Caribe.

CHINA, 2008, P.1

Em relação a transnacionalização das empresas chinesas, o documento reverbera que:

O governo chinês encoraja e apoia empresas chinesas qualificadas, com boa reputação, em investir na indústria transformadora, na agricultura, silvicultura, pesca, energia, recursos minerais, infraestrutura e no setor de serviços na América Latina e no Caribe para promover o desenvolvimento econômico e o desenvolvimento social de ambos os lados.

SHIXUE, 2008

A inserção chinesa na América Latina, conforme descrito neste documento, é realizada predominantemente por empresas estatais chinesas especializadas na implantação de infraestrutura. No que diz respeito à seara energética, tema da seção três deste trabalho, para a China é uma questão sine qua non assegurar energia para nutrir e incrementar seus níveis de desenvolvimento. Paralelamente, essa situação se torna favorável para os Estados nacionais que, carecendo de recursos para investimentos em áreas específicas, como o setor energético, enxergam no Estado chinês um parceiro estratégico para viabilizar os investimentos necessários nas esferas mais necessitadas.

Diante dos ganhos relativos dessa cooperação, torna-se pertinente analisar tais investimentos à luz da teoria da interdependência complexa, desenvolvida por Robert Keohane e Joseph Nye. Esses autores defendem a tese de que os processos transnacionais estão transformando o caráter do sistema internacional, considerando que as economias dos países estão cada vez mais interconectadas, em razão do aumento do volume do comércio e da atuação de empresas multinacionais em diferentes mercados simultaneamente (NOGUEIRA; MESSARI, 2021).


Doutrina Monroe versus o conceito de Tianxia

O Estado chinês reconhece a condescendência das potências dominantes ao distorcerem ou ignorarem o papel desempenhado pela China ao longo de quinze séculos, período no qual o país deteve superioridade econômica e tecnológica em relação ao Ocidente. Essa perspectiva é amplamente explorada na obra The Eastern Origins of Western Civilization (2004), de John Hobson. Segundo Petras (2015):

“É especialmente importante enfatizar como a China, a potência tecnológica mundial entre 1100 e 1800, tornou possível a emergência do Ocidente. Foi apenas ao tomar emprestado e assimilar as inovações chinesas que o Ocidente pôde realizar a transição para o capitalismo moderno e o imperialismo econômico.”

O “século de humilhações” — período compreendido entre a Primeira Guerra do Ópio Sino-Britânica (1839) e o fim da Guerra Civil Chinesa (1949) — é marcado pela incursão política, exploração econômica e agressão militar de potências ocidentais, fatores externos que destruíram a glória histórica da civilização chinesa. Esse episódio ainda reverbera no pensamento do Partido Comunista Chinês, contrastando com o nacionalismo chinês.

Em contraposição, o “excepcionalismo estadunidense” sustenta que os Estados Unidos ocupam um lugar único e predestinado na história dos povos (WALT, 2011). Essa visão pressupõe que os valores, normas e o modelo sociopolítico dos EUA são universais, representando “o fim da história” (FUKUYAMA, 1992). Tal concepção reforça a ideia de liderança incontestável dos Estados Unidos no cenário mundial e sua prerrogativa de ditar as regras do jogo geopolítico.

No contexto da América Latina, vista como o “quintal dos Estados Unidos” devido à proximidade geográfica e às políticas intervencionistas baseadas na Doutrina Monroe e na política do big stick, o argumento oficial sempre foi o de proteger os interesses e bens de cidadãos estadunidenses residentes na região. Na prática, no entanto, a história revela uma política intervencionista e autoritária, voltada para os interesses de empresas norte-americanas e do próprio governo dos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que busca impedir a influência de potências extracontinentais.

Destacando essa relação, Eduardo Galeano, em sua obra As veias abertas da América Latina, apresenta a seguinte opinião:

os Estados Unidos pareciam destinados pela providência para alastrar a América de misérias em nome da liberdade.

GALEANO, 1970, P. 281

As oportunidades e os desafios abarcados pela ascensão chinesa na América Latina

As oportunidades e desafios trazidos pela ascensão chinesa na América Latina refletem as “características chinesas” no atual processo de globalização. O conceito de Tianxia, amplamente debatido por acadêmicos chineses, exemplifica a razão da ascensão do país como participante decisivo e fundamental da nova ordem internacional.

Tianxia é um conceito cultural chinês antigo que denota o mundo em sua totalidade, associado posteriormente à soberania política. Essa concepção, revisitada por acadêmicos das ciências humanas, voltou à pauta devido à ascensão da China como ator central no sistema internacional contemporâneo.

Atualmente, políticos e acadêmicos estadunidenses defendem a contenção da expansão chinesa, especialmente na América Latina. Por outro lado, os Estados Unidos buscam preservar o acesso ao vasto mercado chinês, essencial para Washington. A perplexidade dos EUA reside na dificuldade em acomodar a ascensão da China na ordem do sistema internacional. Por sua vez, a China busca que os EUA compreendam suas particularidades no processo de integração à ordem capitalista global. Na América Latina, considerada pelos EUA como região de influência exclusiva, esse dilema ganha contornos específicos, reforçados pela Doutrina Monroe.

Desde o início do milênio, a ascensão da China e seu impacto na ordem internacional liderada pelos EUA têm sido foco de debates nas ciências sociais, particularmente nos campos de desenvolvimento, relações internacionais e economia política internacional (VADELL, 2018, p. 63). Dada a importância estratégica da América Latina, torna-se crucial que ambos os países encontrem papéis regionais e globais que permitam coexistência. Contudo, esse processo envolverá tensões e ajustes, conforme Breslin (2007).


Os interesses estratégicos chineses na seara energética latino-americana

A definição clássica de investimento externo, segundo a OCDE, refere-se à aplicação de recursos de um país A (neste caso, a China) para estabelecer um “interesse duradouro” em uma empresa localizada no país B. Na América Latina, o setor energético ocupa uma posição central nos interesses chineses. Em 2013, a China possuía o segundo maior estoque de investimento estrangeiro direto (IED) global, com aproximadamente US$ 1,8 trilhão (GALLAGHER, 2016, p. 35). Em 2014, bancos de desenvolvimento chineses superaram o Banco Mundial e o BID em financiamentos para a região (GALLAGHER, 2016, p. 65).

A internacionalização das empresas chinesas é guiada pelo planejamento estatal, que organiza o processo por meio de incentivos fiscais, financeiros e supervisão política (PEARSON, 2015; NAUGHTON, 2015; DUSSEL PETERS, 2015). Na América Latina, o investimento em infraestrutura energética não apenas promove o crescimento econômico, como também reduz custos de produção e aumenta a produtividade. Para a China, esses investimentos refletem o objetivo de criar uma interconexão global de energia até 2050, baseada em fontes renováveis (CHINADAILY, 2017).

Segundo Khanna (2016), a conectividade é o destino. Infraestruturas globais de transporte, energia e comunicação criam uma rede que transcende os Estados-nação. Nesse contexto, a China busca fornecedores de commodities e mercados consumidores para sustentar sua demanda interna. Ao mesmo tempo, o 13º Plano Quinquenal enfatiza a transição para um modelo de crescimento menos dependente de capital intensivo, reduzindo desigualdades sociais e regionais.

Na América Latina, os investimentos chineses em infraestrutura energética têm o potencial de integrar a região e fortalecer receitas estatais. A cooperação sino-latino-americana reflete um novo multilateralismo estratégico, capaz de reconfigurar a geopolítica contemporânea.


Conclusão

A presença chinesa na América Latina representa uma reconfiguração econômica e política, desafiando a hegemonia estadunidense na região. Desde os anos 2000, o “fator China” tornou-se crucial para o dinamismo econômico latino-americano, contribuindo para ciclos inéditos de crescimento e investimentos diretos (FORNILLO, 2016, p. 50-51).

Com sua experiência em gestão de energia, a China avança em áreas negligenciadas pelos EUA, como infraestrutura energética. Sob a liderança de Xi Jinping, o país reforça sua presença estratégica, promovendo assistência econômica e benefícios mútuos para os países envolvidos. Essa parceria sinaliza avanços em diversos setores, especialmente o energético, projetando impactos significativos para as próximas décadas.

Referências

ALTEMANI, Henrique. Brasil e China: cooperação Sul-Sul e parceria estratégica. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012.

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GALLAGHER, Kevin. The China Triangle: Latin America’s China boom and the fate of the Washington Consensus. New York: Oxford University Press, 2016.

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PETRAS, James. China: rise, fall and re-emergence as a global power: the lessons of history. Global Research, maio 2015. Disponível em: http://www.globalresearch.ca/china-rise-fall-and-re-emergence-as-a-global-power/29644. Acesso em: 16 nov. 2021.

SPEKTOR, Nedal. O que a China quer? Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.

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