O Turcomenistão é um dos regimes mais autoritários da Ásia Central e do mundo. O regime é singular por suas excentricidades, tais como a decisão do ex-líder turcomeno, Saparmurat Niyazov, em trocar o nome do primeiro mês do ano (janeiro) para o seu o seu próprio; ou batizar o ‘pão’ (alimento primordial na cultura do país) de Gurbansoltan, o nome de sua própria mãe. Ainda mais ostensivo, se autoproclamar ‘Turkmenbashi’ (o Pai de todos os Turcomenos) e construir uma estátua de ouro (imagem da capa), avaliada em 12 milhões de dólares americanos, em sua homenagem na capital Ashgabat, com um mecanismo interno que a faz girar sempre em direção ao sol. Tais feitos só são possíveis na existência de um alto nível de controle estatal centralizado na figura do líder, o que requer uma conjuntura de fatores sócio-políticos internos e externos demasiado singulares nas relações internacionais contemporâneas. Afinal, poucos Estados chegam a esse nível de autocracia, exceto talvez pela Coreia do Norte.
Este artigo propõe trazer uma maior compreensão sobre a cristalização do culto à personalidade do líder na Ásia Central, particularmente no Turcomenistão, onde tal característica eurasiana é mais visível. De acordo com uma análise abrangente, compreendendo fatores históricos, culturais e regionais, é possível destacar três elementos determinantes que permitiram a monopolização do processo da tomada de decisão e elaboração de políticas sob a figura do representante máximo do Estado. Os elementos são: i) traços histórico culturais pré-datando a construção do Estado moderno Turcomeno; ii) o controle Soviético e seus legados; iii) a estrutura de governança atual que conserva o estilo político tradicional.
Vale ressaltar que não há um elemento mais relevante do que outro; em vez disso, os mesmos são co-constitutivos. Eles se apoiam mutuamente e devem ser entendidos como componentes integrais para a construção e durabilidade do culto dos líderes no Turcomenistão. De qualquer modo, eles serão apresentados em ordem histórica com propósito de fluidez argumentativa.
Raízes culturais e históricas
Como mencionado acima, a influência das raízes históricas do Turcomenistão está profundamente enraizada na sociedade e continua fortemente ativa atualmente, visto que o país ainda é visto como ‘uma nação de tribos’ (ANCESCHI, 2014, p. 194).O processo é mais bem compreendido sob a conceituação da ‘Política de Clãs’. Segundo Collins (2006), a organização das sociedades da Ásia Central pode ser analisada na organização informal da política, nomeadamente, clãs. O “Clanismo” tem uma conotação arcaica, como um tipo de organização anterior à construção do Estado moderno, remontando às tribos nômades do Turquestão (YORULMAZOGLU, 2017). Essa configuração social emerge do parentesco, da identidade de compartilhamento de membros e da rede como um princípio de organização hierárquica.
As relações do “Clanismo” não se limitam aos vínculos consanguíneos ou étnicos, mas também inclui uma construção social de uma rede baseada na reciprocidade, como na troca de favoritismo, embutida no neopatrimonialismo; tornando a organização política adaptável às vontades situacionais dos altos escalões do governo, especialmente do gabinete presidencial. A definição de neopatrimonialismo, ou presidencialismo patronal, é uma extensão da dominação patriarcal por meio da fusão informal do Estado e dos interesses privados, enquanto usa uma lógica híbrida de dominação e legitimidade. O governante promove uma rede de relações de poder personalistas e fundos públicos apropriados para aumentar sua influência por meio de práticas de corrupção e clientelismo (LARUELLE, 2012).
O regime autoritário do Turcomenistão, principalmente durante a era Niyazov, era caracteristicamente (semi) sultanista (CUMMINGS & OCHS, 2002). O sultanismo, por vez, é uma progressão extremista do patrimonialismo, baseado no governo personalista onde o líder detém um status tão elevado que a administração política é moldada para atender às suas necessidades, sendo dispensável legitimar suas ações políticas por motivos ideológicos (WEBER, 1978; LINZ, 2000).
Portanto, o líder atinge um nível de status tão elevado que a identidade do regime se funde com sua personalidade, ao passar a ser o responsável de facto e de juris pela política interna e externa e símbolo de autoridade máxima e governança do Estado (OCHS, 1997), o que torna a distinção entre regime e Estado uma tarefa desafiadora. Interessante notar que esse modo de organização política não espontaneamente evoluiu para um Estado-moderno ou seguiu o processo de democratização, como é de se esperar. Collins (2004) oferece duas propostas centrais para explicar a durabilidade da Política de Clãs na região. Em primeiro lugar, o Estado-moderno foi um projeto de uma potência estrangeira. A Rússia Czarista, inicialmente, como colonizadora da Eurásia, falhou em modernizar a região e, e em seguida, pela Rússia Soviética, que não conseguiu extinguir as práticas do “Clanismo” (CUMMINGS, 2012). Ambos foram seguidos por um súbito desaparecimento, ajudando a florescer a sobrevivência de clãs em face da instabilidade política.
Segundo, pactos informais entre grupos locais foram firmados para fomentar a estabilidade do regime, uma vez que os atores-chave domésticos têm acesso informal e distribuem recursos assimetricamente para fortalecer relações de parentesco, pelas mãos de um ‘intermediário de confiança’, personalizado por Niyazov. Sendo assim, patronagem é uma prática instrumental das elites locais que vivenciam uma ameaça externa à estabilidade doméstica, recorrendo a práticas informais para apoiar o governo turcomeno a alcançar a sobrevivência e consolidação do regime (LAURUELLE, 2012). Portanto, o líder se torna o Estado. Sua imagem acaba se tornando um elemento central de construção da identidade do regime; seguido pelo processo de ‘desrussificação’ para se afastar da influência russa e, assim, construir uma imagem para si mesmo, que deve ser reafirmada constantemente com a obtenção de novos títulos, como o ‘Turkmenbashi, o Grande’, ou projetando sua imagem, como o livro Ruhnama sobre sua vida (FIERMAN, 2009). Em suma, ele personificou o Estado turcomeno a sua imagem.
Controle Soviético e legados
A Rússia Soviética foi a primeira grande potência a tentar introduzir o Estado-moderno na estepe central asiático conectando as etnias majoritárias com a nacionalidade (Hirsch, 2005). O Império Czarista costumava nomear governadores para cada região, o qual enfrentavam os desafios de administrar as relações tribais locais e lidar com o fundamentalismo islâmico (KHALID, 1999).
A política soviética, por outro lado, precisava encontrar uma abordagem diferente, pois o imperialismo não cabia no discurso socialista. A solução de Lenin foi a Política de autodeterminação e unificação das novas repúblicas soviéticas sob o Partido, apelando à confiança e amizade das elites locais para manter a região sob controle soviético, legitimar sua autoridade e trazer desenvolvimento e modernização social (SABOL, 1995; SHAW, 2011). Três das lideranças de Moscou foram particularmente influentes em suas relações com as organizações políticas locais.
A prática de governança do patrimonialismo de Stalin influenciaria os futuros líderes turcomanos sobre como fazer política. Hughes (1996) explica que Stalin introduziu uma “rede patrimonial personalizada, com o Secretariado do Comitê Central em seu centro, que abraçava ou colocava funcionários leais nas posições centrais do aparelho do partido (1996: 551) ”. Décadas depois o stalinismo influenciaria fortemente o regime turcomeno pós-soviético e, junto com o “Clanismo”, criaria um regime híbrido com características exógenas e locais.
Leonid Brejnev, por sua vez, influenciaria a futura geração de líderes da Ásia Central através da promoção de instituições informais. Brejnev introduziu a política de ‘estabilidade de Cadres’, o que na prática significava que as elites locais poderiam ter institucionalizado acesso ao poder e recursos em troca de submissão política (BUNCE, 1983). As elites foram então capazes de distribuir os ativos do Estado de acordo com preferências pessoais. Em outras palavras, eles usaram esse tratamento favorável para aumentar seu poder por distribuição assimétrica de recursos. Ao mesmo tempo, o partido-Estado não interferiria diretamente em suas políticas domésticas regularmente.
A terceira mais influente liderança do Partido Soviético estava nos anos finais da União Soviética. Iniciado por Yuri Andropov e continuado até Gorbachev, o governo central lançou uma campanha anticorrupção que varreu toda a União contra atividades ilegais que esgotavam os recursos da União e ameaçavam a sua sobrevivência do Estado Soviético desde os anos 80. As elites locais das Repúblicas viram a campanha como um projeto que desafiava a identidade local; e, com considerável sucesso, resistiram as pressões do governo central. É possível afirmar que as tentativas do final da União Soviética de diminuir as instituições informais produziram resultados opostos ao esperado, fortalecendo as instituições informais que temiam a instabilidade trazida pela repentina interferência do governo em Moscou.
A estrutura de poder contemporâneo
As raízes culturais e a influência histórica russa na região tiveram uma influência significativa na moldagem do processo de construção da estrutura política no Turquestão em geral. É notável que todas as cinco Repúblicas são definidas pelo autoritarismo de estilo presidencial, com instituições políticas exercendo poder político assimétrico, uma vez que um único indivíduo, o líder de Estado, detém influência dominante enquanto se senta no topo da pirâmide de autoridade política. Esse processo de centralização de poder foi interno, consistido em manobras políticas que se tornaram mais evidente após o colapso da União Soviética. No Turcomenistão, esse processo foi construído sob o projeto de construção da nação, reformas intragovernamentais baseadas em cálculos políticos e personificação de realizações.
O neopatrimonialismo no Turcomenistão é suplementado em termos constitucionais, já que as constituições de 1992 e 2008 reforçam a centralização do poder e da tomada de decisões nas mãos do gabinete presidencial. As análises de Anceschi (2014) e Kuru (2002) concluem que as elites regionais, representando seus respectivos clãs, foram fundamentais para a solidificação do regime em Ashgabat.
Niyazov sabia como administrar práticas de instituições informais, acomodando as demandas das elites governantes locais e unificando-as sob sua autoridade. Além disso, a estratégia de Niyazov consistia em reconectar o país com sua identidade ancestral por meio da linguagem, simbolismo e mitologia de forma a reforçar a identidade nacional como uma ferramenta de construção da nação. Ou seja, Niyazov não apenas foi sucedido em distribuir recursos estatais a fim de ganhar a lealdade das elites, mas também fomentou um nacionalismo que remete a origem turcomana que engajava com todos os níveis da sociedade.
Niyazov já ocupava uma posição de liderança como primeiro secretário do Partido Comunista Turcomeno desde meados de 1980. Porém, apenas após a dissolução da URSS, que ele viria a se tornar o primeiro presidente do país, ocupando esse cargo até sua morte repentina em 2006. Durante esse período, Turkmenbashi conseguiu aumentar sua influência centralizando a tomada de decisões e a autoridade. Isso progrediu por meio de dois processos simultâneos: a troca de nomeações políticas por lealdade e a associação do governo do Turcomenistão ao seu regime.
A autoridade final de nomeação de cargo pertence ao presidente conforme a constituição. Assim, as nomeações poderiam ser renegociadas e transferidas com base no cálculo político, a fim de prolongar o monopólio de poder do regime.
Além disso, Niyazov criou com sucesso um vínculo entre sua pessoa, o regime e o Estado turcomeno. Ele não foi apenas o presidente, mas também ocupou outros cargos, como líder do Conselho de Segurança e comandante supremo das Forças Armadas Nacionais, para desempoderar outras instituições enquanto concentrava o poder de decisão a si mesmo (BLANK, 2007).
O governo nacional investia em promoção de simbolismos, narrativas e propagandas de autoglorificação de sua política externa para reforçar legitimidade de governo, como, por exemplo, a Doutrina da Neutralidade Positiva. Em outras palavras, a propaganda de fomento ao nacionalismo foi instrumentalizada para moldar o público, incluindo as elites, e fortalecer a lealdade doméstica e manutenção do regime.
Considerações Finais
É possível concluir que o culto aos líderes é uma característica fundamental dos regimes autoritários na Ásia Central, a partir da análise do Turcomenistão. O país ainda está fortemente ligado às suas raízes históricas e culturais, tornando-se posteriormente um elemento central da sua identidade nacional. A Política de Clãs, baseada no parentesco e nas redes relacionais, está tão fortemente presente no Turcomenistão durante o pré-Estado moderno como na atualidade.
Ademias, tanto a Rússia Czarista quanto a Soviética não tiveram sucesso em extinguir tal prática. Somado a isso, ainda há o projeto de construção da nação, através da distribuição de recursos a fim de agradar elites locais, pela nomeação de cargos com base na lealdade e por meio de campanhas propagandísticas conectando sua pessoa glorificada à prosperidade e sobrevivência do regime.
O sucessor de Niyazov, Berdymukhammedov (2007- atualmente), basicamente deu continuidade ao governo de seu antecessor. Embora o regime de Berdymukhammedov não tenha atingido o mesmo nível de características sultanistas de Niyazov, ele próprio vem promovendo sua própria imagem e reconfigurando posições centrais para fortalecer sua autoridade, por meio do neopatrimonialismo, reinserindo o seu cargo no centro da rede de patronagem (BLANK, 2007).
Além disso, o governo de Berdymukhammedov tem expressado elementos dinásticos, como a nomeação de familiares para altos cargos dentro do governo, como, por exemplo, a designação de seu filho como Ministro das Relações Exteriores, e anteriormente a muitos outros cargos, pois se acredita que ele sucederá o regime (PUTZ, 2020).
Igualmente similar a Niyazov, Berdymukhammedov também mandou construir uma estátua folhada em ouro, onde ele posa galopando um cavalo, instalada na capital Turcomena; enquanto a estátua de seu antecessor foi movida para outro local da cidade em 2010. Concluindo, é seguro presumir que o culto aos líderes será uma prátics contínua em todas as lideranças seguintes, visto que a estrutura política dificilmente mudará para um sistema diferente de regimes personalistas autoritários.
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