Muitos gestores na atualidade mencionam a ideia da “desglobalização”, sejam ao falar em modelos de expansão para suas empresas ou sejam para discursos mais acadêmicas. Tendo em vista a crise econômica de 2008, BREXIT, eleições de políticos ultranacionalistas com discursos protecionistas, pandemia de COVID-19 entre 2020 e 2021, invasão russa à Ucrânia, muitos se perguntam se o mundo está se “desfragmentando” e se restringindo ao mercado internacional e as interações inter-estatais.
A teoria da “Interdependência Complexa”, desenvolvida pelos acadêmicos Robert Keohane e Joseph Nye no final da década de 1980, argumentava sobre o mundo de “dependência mútua”, onde ações de atores isoladamente refletem no Sistema Internacional, de alguma forma, como um todo. Podendo ter esta reação maior ou menor impacto.
A partir disso, podemos nos perguntar: “será que a ideia da Interdependência Complexa ainda faz sentido neste contexto de desglobalização?” Baseando-se nesta teoria, e tendo em vista a ideia de desglobalização e dados apresentados, este artigo busca explorar um pouco mais a ideia da “Interdependência Complexa” com um olhar sobre o entendimento da atualidade, tendo como hipótese que a “Interdependência Complexa” ainda se faz presente e a sua ideia não será suplantada pelas crises atuais, uma vez que a ideia de dependência mútua é presente na conjuntura atual.
Desglobalização
Perante aos efeitos mundiais das últimas décadas, muito se discute sobre a “desglobalização”. Para efeito de melhor análise, adotaremos a definição de desglobalização como uma “tendência contrária a globalização”, uma “desaceleração econômica, pela apatia dos mercados, que trazem como decorrência efeitos concretos muito claramente identificáveis, do ponto de vista macro-econômico, como também do ponto de vista político”. (BITTAR, 2012, p. 266). Mas, o que leva a utilização desse termo na atualidade? Alguns elementos que surgiram nas últimas décadas e algumas tendências cooperaram para que a ideia da desglobalização se torna-se mais presente na atualidade. Citando alguns para efeito de entendimento: a crise econômica de 2008, que levou ao mundo a uma forte recessão global a começar pelos EUA, com a quebra de grandes empresas como a Lehman Brothers e se alastrando para o resto do mundo, conforme mostra o índice do Banco Mundial a seguir:
Baumann, citando a análise de Herrero sobre a crise de 2008, menciona os seus efeitos no Sistema Internacional: “Segundo Herrero (2019), o volume global de comércio cresceu em média 3,5% anuais entre 2009 e 2018, bem abaixo dos 7,6% registrados antes de 2008. O montante de investimentos diretos registrou queda de 28% em 2008, em relação ao nível de 2000” (BAUMANN, 2022, p. 598).
Ainda, utilizando dos mesmos dados informados no gráfico anterior temos o período de pandemia da COVID-19 entre 2020 e 2021, que levou a um fechamento das econômias (sobretudo grandes potências econômicas como a China, onde o vírus teve a sua origem, e a Inglaterra), lockdowns em várias regiões (como na Nova Zelândia, algumas regiões da China, Japão, Londres e até mesmo no Brasil) além de restrições fito-sanitárias. O que provocou oscilações nas exportações mundiais (sobretudo na modalidade FOB) no comércio Internacional:
No campo político, temos a ascensão de políticos como pautas econômicas protecionistas como Donald Trump nos EUA, eleito em 2016 e Jair Bolsonaro, no Brasil, eleito em 2018. Além do BREXIT, que foi a saída do Reino Unido da União Europeia em 2020. Tais tendências políticas se tornam empecilhos para a integração econômica e o aprofundamento das relações comerciais e financeiras, como o pesquisador Dugnani ressalta:
Essas ideias de protecionismo, políticas contra as imigrações, fechamento de fronteiras físicas ou ideológicas, todos esses movimentos são sintomas de uma crescente desconfiança das estratégias globalizantes do mercado, contudo, vão em direção contrária ao movimento de aumento de contatos globais impressos pelos meios de comunicação digitais e a internet. (DUGNANI, 2018, p. 4)
Outro fator mais recente, que contribui para a ideia de desglobalização é a invasão russa a Ucrânia iniciada em fevereiro de 2022. A esse evento, seguiram diversas formas de retaliação as ações russas na Ucrânia e contra-respostas da mesma ao Ocidente. Casos como o vazamento da tubulação de gás russo Nord Stream 1 em Setembro do mesmo ano reacende mais uma vez as dúvidas sobre a efetividade da globalização ou se os Estados deveriam adotar uma postura mais independente com relação aos produtos e serviços advindos do Internacional, reafirmando a ideia da desglobalização crescente.
A partir dessas análises, podemos pensar se a ideia de “dependência mútua”, conforme pensaram Keohane e Nye na teoria da Interdependência Complexa, ainda surte efeito em meio aos cenários observados ou se ela está condenada ao ostracismo histórico. Analisemos o que, de fato, a teoria diz.
Retomando a teoria da Interdependência complexa
Tendo por base o livro “Power and Interdependence” (1989) dos autores Robert Keohane e Joseph Nye, entendemos a “Interdependência Complexa” como “depedência mútua entre os atores Internacionais”:
A interdependência, de forma bastante simplificada, significa dependência mútua. Na política mundial, a interdependência se refere a situações caracterizadas pelos efeitos recíprocos entre países ou entre atores de diferentes países. Estes efeitos frequentemente resultam de transações internacionais, fluxos de dinheiro, bens, pessoas e mensagens além das fronteiras internacionais. (KEOHANE e NYE, 1989, p. 8-9, tradução livre)
Dessa forma, a Interdependência Complexa possui três características principais: 1- canais múltiplos que conectam as sociedades, 2- múltiplas agendas interestatais sem um hierarquia clara e 3- o não uso de forças militares quando há regiões de Interdependência complexa (KEOHANE e NYE, 1989, p.40).
Analisando cada ponto acima apresentado, o primeiro diz respeito as relações inter-estatais, transgovernamentais e transnacionais entre as sociedades, ou seja a existência de conexões múltiplas entre diversos atores que prestam serviços para governos e organizações de modo formal ou informal.
No segundo ponto temos a criação de novos temas que assumem, ora ou outra, a prioridade no Sistema Internacional (diferente de uma visão mais realista baseada na supremacia militar, que vamos tratar logo a seguir), acordos e propostas advindos de Instituições Internacionais como OMC, FMI, Banco Mundial, OMS entre outros podem conduzir pautas de relevância, ao menos momentânea no cenário internacional.
Por fim, a resolução pacífica de conflitos em que há a Interdependência Complexa é vista como uma característica da integração proporcionada pela mesma. Aqui é importante ressaltar as ideias de “vulnerabilidade” e “sensibilidade” em que Nye entende a “sensibilidade” como a agilidade em que a mudança em uma parte do Sistema provoca a mudança em outra parte. Em contra-partida, temos a ideia de “vulnerabilidade” como os custos de saída do Sistema ou alterações nas regras do jogo, ou seja, custos da alteração estrutural (NYE, 2002, p. 229). Nisso, é necessário analisar o quão as ações de um determinado Estado afeta em outros Estados/ Organizações (sensibilidade) e o quanto possuem de “custos” em caso de saída dos sistemas ou alterações nas regras de jogos internacionais (vulnerabilidade).
Ainda um ponto tratado no livro “Power and Interdependence” (1989) vale a pena ser ressaltado aqui. O capítulo 10 “Power, Interdependence and Globalism” tem por finalidade tratar exatamente sobre o tema da “globalização”, a “Interdependência Complexa” e o “globalismo”. Os autores ressaltam a diferença entre esses termos dessa forma:
a Interdependência refere-se a uma condição, a um estado de coisas.(…) A globalização, porém, implica que algo está aumentando: há mais. (…) Definimos globalismo como um estado do mundo envolvendo redes de interdependência em distâncias multicontinentais, ligadas por meio de fluxos e influências de capital e bens, informações e ideias, pessoas e força, bem como substâncias ambientalmente e biologicamente relevantes (…). Globalização e desglobalização referem-se ao aumento ou declínio do globalismo. (KEOHANE e NYE, 1989, p. 225, tradução livre)
Dessa forma, a analise de Keohane e Nye não começam com a globalização em si, mas com a ideia de globalismo (como foi definido) e a Interdependência complexa, refere a uma “condição” ou um “estado” que pode se intensificar no Sistema Internacional (como foi ao final da Segunda Guerra Mundial) ou declinar em certos momentos, como foi durante a Grande Depressão de 1930, o que nos possibilita pensar que semelhante declínio se repete desde 2008, o que refletiremos a seguir.
Conclusão
Como foi demonstrado ao longo desse artigo, vivemos momentos turbulentos em que muitos pensam na “desglobalização”, e a ideia da Interdependência foi confrontada ao longo deste mesmo escrito. Retomando a pergunta norteadora “será que a ideia da Interdependência Complexa ainda faz sentido neste contexto de desglobalização?” Temos que há momentos, na história, de declínio do capitalismo (usando da ideia das “ondas de Kondratiev”) em que o capitalismo se torna mais forte, fortalecendo assim as interações pela globalização. Assim como, há momentos de declínio e crises (como na depressão de 1930, na crise dos tigres asiáticos em 1997 e a crise econômica de 2008, como tratado que inicia a discursão atual de “desglobalização”).
Conforme foi exposto, a “Interdependência Complexa” dos autores Robert Keohane e Joseph Nye, apontam para um mundo de interações. Interações essas que levam a uma “dependência mútua” por parte dos atores no âmbito internacional. Entretanto, conforme apontado pelos mesmos e exposto no tópico anterior, existe a diferença entre a “Interdependência Complexa” em si que se refere a uma condição das coisas do “globalismo” que advém a ideia de “globalização” e “desglobalização”. Neste sentido, podemos entender que eventos recentes como a crise econômica de 2008, a pandemia, ascensão de ideias protecionistas e guerras locais, causam a desglobalização mas não uma dissolução completa da ideia de Interdependência Complexa, uma vez que tais conflitos podem refletir um declínio da onda capitalista (retomando mais uma vez o conceito de Kondratiev) mas não uma ruptura completa da globalização ou da Interdependência Complexa.
Neste sentido, podemos ter em vista uma retomada dos fatores de globalização (sejam comerciais, sejam financeiros) em outros momentos. Além da mobilização de blocos econômicos e militares e Instituições Internacionais (como OTAN, G7, União Européia e outros em resposta à Guerra da Ucrânia. Ou do Banco Mundial e do FMI na assistência de países afetados pela crise econômica de 2008) na tentativa de resolução de conflitos e, consequentemente, aprofundamento das relações comerciais, econômicas e Internacionais.
Referências Bibliográficas
BAUMMAN, Renato. Globalização, desglobalização e o Brasil. Revista de Economia Política, vol. 42, nº 3, pp. 592-618, julho-setembro/2022.
BITTAR, Eduardo. Crise econômica, desglobalização e direitos humanos: os desafios da cidadania cosmopolita na perspectiva da teoria do discurso. Revista Mestrado em Direito, Osasco, ano 12, n. 1. 2012.
DUGNANI, Patricio. Globalização e desglobalização: outro dilema da Pós-Modernidade (Globalization and deglobalization: another dilemma of Post-Modernity). Revista Famecos, Porto Alegre, v. 25, n. 2, p. 1-14, maio, junho, julho e agosto de 2018.
KEOHANE, Robert e NYE, Joseph. Powerand Interdependence. 4ª Ed. Editora: Longman. US. 1989
NYE, Joseph. Compreender os conflitos Internacionais. Uma Introdução à teoria e à história. Portugal. Gradiva. 2002
International Monetary Fund. IMF. Disponível em <https://data.imf.org/?sk=9D6028D4-F14A-464C-A2F2-59B2CD424B85&sId=1514498212031> Acesso em outubro de 2022.
The World Bank. GDP growth annual. Disponível em <https://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.MKTP.KD.ZG> Acesso em outubro de 2022.