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Rivalidade entre China e Estados Unidos: uma nova Guerra Fria?

A postura adotada pelos líderes das duas principais potências na 75ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em setembro de 2020, demonstra como será a tônica da política externa daqui para frente. Donald Trump, num discurso agressivo, afirmou a necessidade de combater aquilo que chamou de “vírus chinês”, expressão de duplo sentido, em referência tanto à COVID-19 quanto à influência do país asiático ao redor do mundo. Só assim, afirmou o mandatário norte-americano, haveria paz e prosperidade no mundo.

A narrativa pode ter surpreendido pela agressividade, mas não pelo conteúdo. Pouco antes, em 23 de julho de 2020, o Secretário de Estado, Mike Pompeo, proferiu um discurso que deixou explícito o entendimento da principal potência global a respeito do novo cenário geopolítico. Com o sugestivo título A China Comunista e o Futuro do Mundo Livre, e o simbolismo de ter sido proferido na Biblioteca Richard Nixon, o espaço que leva o nome do presidente que iniciou a aproximação entre os dois países, a palestra do Secretário de Estado marcou a ruptura definitiva da estratégia de moderação que vinha sendo seguida nos anos anteriores. Doravante, a lógica seria novamente dicotômica: liberdade contra tirania.

“Se o mundo livre não muda, a China comunista certamente nos mudará. Não pode haver um retorno às práticas passadas porque elas são confortáveis ou convenientes. […] Proteger nossas liberdades do Partido Comunista Chinês é a missão de nosso tempo, e os Estados Unidos estão perfeitamente posicionados para liderar porque nossos princípios fundadores nos dão essa oportunidade.”

A política externa proposta pelos republicanos também ecoou no meio acadêmico. O historiador Niall Ferguson escreveu na revista Bloomberg que parecia óbvio, desde o início de 2019, que uma nova Guerra Fria entre os EUA e a China havia começado. Ferguson formulou seu argumento com base em uma entrevista do cientista político Henry Kissinger, na mesma revista, que afirmou: “Estamos no sopé de uma Guerra Fria”.


A questão da nova Guerra Fria

Estaríamos realmente retornando à velha ordem bipolar? Há de fato uma nova Guerra Fria no horizonte? Essa conclusão parte de uma interpretação equivocada tanto do conceito de Guerra Fria quanto da configuração geopolítica atual. A Guerra Fria não foi apenas uma disputa ideológica. Era parte do processo de conformação da chamada pax americana. Após a Segunda Guerra Mundial, o poder dos EUA era inigualável. A URSS nunca ameaçou verdadeiramente a hegemonia global de Washington, funcionando, na verdade, como um vetor de fortalecimento da liderança americana no interior do chamado “mundo livre”.

O cenário atual, contudo, é distinto. A queda do Muro de Berlim representou a derrota do projeto comunista global. A partir de 1978, com a reorientação da economia chinesa para as regras capitalistas, emergiu o que alguns economistas denominam de limbo ideológico. O capital público, que antes era majoritário no PIB chinês, perdeu força para o setor privado. Hoje, a China possui a mesma quantidade de bilionários que os Estados Unidos, enquanto a desigualdade social cresce rapidamente.

Apesar dessas mudanças, o Partido Comunista Chinês apresenta o modelo econômico do país como “socialismo com características chinesas”, rejeitando a ideia de exportar seu sistema para outras nações. Ao contrário da URSS, a China está mais integrada à ordem capitalista e tem se beneficiado amplamente dos mecanismos de governança econômica global. Essa abordagem reflete um esforço para que sua soberania seja respeitada e sua posição geopolítica reconhecida no contexto internacional.


A rivalidade geopolítica

A rivalidade entre as duas superpotências deve ser interpretada sob uma ótica geopolítica. A hegemonia de uma superpotência é assegurada por três camadas: econômica, política e ideológica-militar. A expansão chinesa segue o roteiro típico das potências emergentes, com crescimento interno acelerado, expansão de sua influência política global e investimentos crescentes em sua capacidade militar.

Os gastos militares da China já representam 14% do total mundial, com tendência de crescimento. Esse cenário cria um perigoso incentivo para que um conflito militar seja iniciado antes que o equilíbrio de poder favoreça a potência emergente. A contenção da ascensão chinesa, nesse contexto, tem se dado por meio de medidas que buscam intensificar os pontos de vulnerabilidade do país, além de resgatar valores associados ao discurso anticomunista para justificar a estratégia de contenção.


Referências

ALLISON, Graham. A caminho da guerra: os Estados Unidos e a China conseguirão escapar da Armadilha de Tucídides? Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.

BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. A segunda guerra fria: geopolítica e dimensão estratégica dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

CHAOHAUA, Wang. O Partido e sua história de sucesso: uma resposta a Duas Revoluções. In: ANDERSON, Perry. Duas revoluções: China e Rússia. São Paulo: Boitempo, 2018.

FIORI, José Luis. História, estratégia e desenvolvimento: para uma geopolítica do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2014.

JINPING, Xi. A governança da China. Rio de Janeiro: Contraponto, 2020 (2 volumes).

KAPLAN, Robert. The return of Marco Polo’s world: war, strategy, and American interests in the twenty-first century. Nova York: Random House, 2018.

KISSINGER, Henry. Sobre a China. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

MILANOVIC, Branko. Capitalismo sem rivais: o futuro do sistema que domina o mundo. São Paulo: Todavia, 2020.

PECEQUILO, Cristina. Os Estados Unidos e o século XXI. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.

STUENKEL, Oliver. O mundo pós-ocidental: potências emergentes e a nova ordem global. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2018.

TSELICHTCHEV, Ivan. China versus Ocidente: o deslocamento do poder global no século XXI. São Paulo: DVS Editora, 2015.

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