A questão demográfica africana pode ser introduzida pelas expectativas da quadruplicação das populações nacionais até o final do século XXI. Deve-se considerar a apuração de que África é o continente mais desamparado do globo e de terras extensas, com expressivo racionamento de recursos, em especial de água. Esse quadro é e será decisivo nas transformações sociais, econômicas e políticas dessa e das próximas gerações, uma vez que estão vinculados às particularidades das taxas de natalidade, mortalidade e migração, bem como pelo desenvolvimento sustentável.
Os países periféricos estão concentrados nas zonas tropicais e subtropicais, não por uma questão geográfica, mas histórica, com diferentes níveis de desenvolvimento socioeconômico e, particularmente, industrial. A industrialização da periferia, entre ouros fatores, se dá pelo fácil acesso aos recursos naturais, como a água, por isso nota-se a territorialização no trópico úmido. O conjunto dos países suscetíveis à seca, ou seja, aqueles estabelecidos em regiões áridas e semiáridas, ocupam o patamar mais baixo no âmbito orçamentário, de desenvolvimento econômico, social e industrial. As questões de hidropolítica e segurança – termos ganham cada vez mais importância nas políticas sociais – desenvolvidas no continente africano carecem de incentivos voltados à garantia do acesso e da distribuição de recursos hídricos enquanto condição habitacional e no que tange ao desenvolvimento da infraestrutura.
Disponibilidade hídrica: análise quantitativa e o quadro africano
No que diz respeito às análises macro e micro do fluxo hídrico, é necessário considerar a intervenção dos agentes antrópicos e intempéricos, responsáveis pela perpetuação da escassez hídrica. A posteriori, é preciso ampliar os estudos mais abrangentes – aridez, secas intermitentes, desertificação e os impactos sociais. Os dados apresentados no estudo quantitativo da base de dados hidrológica de Lvovich (1979) permitem o discernimento das projeções de escassez hídrica no continente africano. A representação dos níveis de insuficiência da modelação hidrológica é resultado do incremento na percentagem populacional para cada unidade de fluido. O avanço da escassez, no exemplo, constitui na sua 4ª fase a apresentação de barreiras para a distribuição adequada.
Para Falkenmark (1990), existem alguns desdobramentos problemáticos que condicionam a escassez: qualidade da água, época das secas, escassez hídrica e absoluta escassez hídrica. Cada aplicação carrega consigo a pressão das comunidades vinculada à demanda por água em uma escala de 1 a 5. Visto isso, a fim de efetivar um prognóstico atribuído à análise de condições específicas de um país, é necessário fazer o levantamento de dados que expressam o nível relativo da escassez de água.
Por outro lado, a pressão do agronegócio e a necessidade de garantir a produção de alimentos, adicionam novos elementos à complexa relação com a água em muitos países da África. É possível realizar a observância nas variáveis capazes de apresentar a dinâmica do crescimento populacional, os problemas na distribuição hidrológica e o aumento de insumos na produtividade agrícola – capazes de sustentar populações dos países africanos até 2025.
Com o intuito de mapear as requisições para cada país da África, o estudo da base de dados desenvolvida para medir escassez por Lvovich (1979) contribui na identificação de dois dígitos (1 a 5), que constituem a escala de escassez hídrica e a simbolização da ascendência no nível de fomento da produtividade agrícola – estritamente relacionado às questões de crescimento demográfico. O estado do nível primário aponta estabilidade, porém, a partir do nível secundário ao quaternário, observa-se sinais impraticáveis.
Os desafios da urbanização e infraestrutura em Nairóbi
A tendência do crescimento populacional de Nairóbi, capital e cidade mais populosa do Quênia, se deu de forma exponencial nos últimos 40 anos. A projeção para 2025 é que a cidade alcance 6 milhões de pessoas, isto é, assume-se um aumento anual de 4% em relação às outras populações africanas. Além disso, a onda da urbanização exige um avanço das atividades urbanas, como o controle das terras e de recursos naturais.
Dado cenário, a evolução da escassez de água está inserida no planejamento de desenvolvimento da principal cidade queniana. As comunidades em situação de vulnerabilidade socioeconômica, entretanto, enfrentam barreiras de acessibilidade à água limpa e de qualidade, visto que o acesso ao recurso coexiste com a sobretaxação a cada unidade a partir do aumento do volume consumido.
O abastecimento e a distribuição água depende de políticas públicas de saneamento, que estão inseridas no conjunto de soluções em serviços, instalações de abastecimento de fluidos, esgotamento sanitário, limpeza urbana, manejo de resíduos sólidos e drenagem de águas pluviais urbanas (FUENTE, 2016).
Considerando toda a cadeia de serviços básicos à população de Nairóbi, nota-se que o racionamento do recurso para famílias de baixa renda se acentua a medida em que há o aumento dos indicadores de densidade da populacional e do controle dos cartéis que monopolizam a comercialização da água. A demanda por água potável, seja para cozinhar alimentos ou beber, aumenta proporcionalmente aos problemas de abastecimento, fazendo com que as comunidades em regiões afastadas adquiram o recurso de fontes sem procedência.
A evolução da urbanização em Nairóbi significa, para as comunidades, sobreviver sob o receio e a incerteza da cobertura de saneamento urbano ineficaz, que não dialogou com o acelerado crescimento populacional (WWC, 2018). Tal expressividade é evidenciada pela alta taxa de natalidade, pelas secas e, também, em razão do êxodo rural, gerando lacunas intransponíveis na garantia de recursos para a comunidade local.
Desde 1972 as autoridades quenianas reportam no Relatório Anual do Conselho da Cidade de Nairóbi a progressão em que a população se desenvolveria com o passar dos anos. Em 1974, durante a 5ª Conferência Regional Africana da Associação Comunitária de Planejamento, o Ministro de Finanças e Planejamento, Kwai Kibaki, informou que o país não teria a estrutura necessária para suportar o movimento migratório rural-urbano nos anos que se seguiram (REMPEL, 1981).
O fluxo migratório campo-cidade é uma característica da circulação da população economicamente ativa (PEA), onde o migrante reconhece como alternativa a sua transferência para conquistar condições socioeconômicas favoráveis. Não obstante, se depara com outros paradigmas, popularizando o fenômeno cíclico do racionamento de recursos e a falta de infraestrutura urbana.
O acesso à água potável também se insere no contexto da pandemia de Coronavírus, acentuando os riscos para as populações mais desprotegidas. Como destacado, a questão urbana na África, com infraestrutura sanitária ineficiente, habitações subnormais, sistemas de saúde desamparados, sofrem novo estresse na direção da implementação de políticas para contenção do novo Coronavírus.
Hidropolítica e Coronavírus
O primeiro caso de SARS-CoV-2 no Egito, em fevereiro desse ano, por exemplo, foi um dos pretextos para a adoção de diversos procedimentos de segurança, visando a prevenção e controle da propagação do vírus. Medidas, como a suspensão de operações das principais linhas aéreas africanas, com exceção da Ethiopian Airlines, foram adotadas como forma de realizar barreiras para cessar a transmissão na extensão territorial africana. O levantamento proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS) verificou quais serão os principais setores mais afetados em detrimento dos cortes nas atividades responsáveis pela movimentação econômica – aviação, shipping e turismo.
A África conta com a predisposição de doenças possuidoras de alto nível de comorbidade – HIV/AIDS, tuberculose e malária apresentam caráter de imunodeficiência –, ao passo que as patologias infecciosas – Ebola, Febre de Lassa, COVID-19, etc – correspondem, em sua totalidade, no território africano, maior abrangência na parcela de pessoas jovens, representando um Cisne Negro – evento imprevisível desencadeador de incertezas. Por sua vez, o fator idade não pode ser considerado de maneira majoritária, visto que, estatisticamente, a faixa da terceira idade é o grupo mais afetado pelo novo vírus em outros países.
O estudo metodológico feito da coleta de dados por Gilbert e Pinotti (2020), realizou a checagem do volume de viagens aéreas tendo como destino países africanos. Os indicadores analisados possibilitam entender a capacidade de os países detectarem e responderem aos casos de COVID-19 e, a partir disso, traçarem um framework de monitoramento e avaliação da OMS. Posteriormente, é pronto o escopo de vulnerabilidade das doenças infecciosas para avaliar a insegurança.
Egito, Argélia e África do Sul permanecem no agrupamento de países com maiores riscos da transmissão patológica e de capacidade intermediária para responder ao surto, ao passo que os países Nigéria, Etiópia, Sudão, Angola, Tanzânia, Gana e Quênia possuem risco moderado com variação na capacidade de lidar com a alta vulnerabilidade.
As intervenções por meio de isolamento social têm correlação direta com a disposição de recursos fundamentais, como o acesso à água para necessidades indispensáveis. Voltando à questão queniana, em Kibera, região favelizada de Nairóbi, as comunidades são alojadas em pequenas construções feitas de formas irregulares sobre assentamentos sem nenhuma acessibilidade adequada de fluidos. Por sua vez, as recomendações internacionais advindas do movimento Stay Home não conseguem ser aplicadas na realidade de um ecossistema marcado pela pobreza, onde ficar em casa significa ficar sem água.
Em 2016, a organização queniana Shining Hope for Communities (SHOFCO) desenvolveu o projeto que consiste na instalação de um sistema de tubulação aérea capaz de abastecer mais de 31 mil residentes. O complexo integrado é capaz de conectar 24 subestações de água sem riscos de contaminação em toda a região de Kibera. Para os residentes de áreas assentadas, a vida se torna um processo cíclico de sobrevivência constante. No entanto, a iniciativa de organizações não-governamentais desempenhará um papel fundamental no sentido da criação de esferas esperançosas em meio ao caos.
Assim sendo, a projeção da curva de decaimento referente à taxa de infecções severas pode se comportar de diferentes maneiras, se aplicadas em contextos de países diferentes. Visto isso, não se nega a ineficácia da medida do lockdown em seu potencial máximo, apesar do comportamento volátil, que depende dos fatores social, político, sanitário e econômico. Na contramão, a garantia de medidas em escala nacional, regional e internacional, almejando cenários colaborativos e, acima de tudo, ágeis, contará com aproximações sinérgicas.
Considerações finais
O quadro apresentado mostra a complexidade da sobrevivência no território africano, assim como em diversas periféricas na sua relação com o novo Coronavírus, tendo em vista, principalmente, a inconformidade na distribuição e implementação de saneamento básico em regiões com o quadro de pobreza. Todos os países do continente africano contam com o respaldo na garantia universal do direito à água, que urge em direção de melhores amanhãs para as gerações futuras (ONU, 2020).
Será contundente acompanhar e analisar esse Cisne Negro, levando em consideração a ausência da vacina e a eminência de uma próxima onda da doença. Nesse sentido, os esforços para o controle epidemiológico e as estratégias de curto prazo adotadas por países periféricos, somadas as questões de infraestrutura urbana e saneamento básico, mostram que é preciso avançar muito, em especial em consonância com as diretrizes da ONU-OMS e comunidade científica.
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