Historicamente, as cidades sempre desempenharam papéis fundamentais no cenário internacional. Desde as cidades-estado da Antiguidade até os centros urbanos contemporâneos, observa-se que os governos locais têm sido agentes relevantes para o desenvolvimento econômico, político e cultural.
No entanto, com a intensificação da globalização e o fortalecimento da governança multinível, as cidades passaram a atuar de maneira mais estruturada na esfera internacional. Esse fenômeno, conhecido como diplomacia de cidades, refere-se à ação direta dos governos locais na formulação e implementação de políticas internacionais, seja por meio de redes de cooperação, parcerias estratégicas ou advocacy junto a organismos multilaterais. Essa diplomacia não substitui a ação dos Estados, mas a complementa, trazendo novas dinâmicas à política internacional, principalmente em temas como desenvolvimento sustentável, mudanças climáticas e direitos humanos.
As redes de cidades surgem como uma resposta à necessidade de maior cooperação entre governos locais, permitindo que as cidades compartilhem experiências, recursos e estratégias para enfrentar desafios comuns. Desde a década de 1990, com a intensificação da globalização e o aumento da urbanização, essas redes se tornaram fundamentais para a governança multinível e a formulação de políticas públicas transnacionais.
A Rede Mercocidades, criada em 1995, representa um dos exemplos mais expressivos desse modelo de colaboração na América do Sul. Seu objetivo central é fortalecer a participação dos governos locais no processo de integração regional, promovendo iniciativas em áreas como segurança cidadã, desenvolvimento sustentável e políticas sociais. Com mais de 360 cidades-membro, representando aproximadamente 120 milhões de habitantes, a Mercocidades busca estabelecer um canal de diálogo entre os municípios e outras instâncias de governança, influenciando a formulação de políticas e estratégias regionais.
Este artigo analisa como as redes de cidades, especialmente a Mercocidades, influenciam a agenda internacional, destacando sua estrutura, evolução histórica, impactos e desafios contemporâneos.
O Papel das Redes de Cidades na Governança Multinível
As redes de cidades surgem como alternativas à rigidez da diplomacia tradicional, permitindo a troca de experiências e a formulação de soluções conjuntas para problemas comuns. Elas são espaços de cooperação horizontal, onde os governos locais podem desenvolver e compartilhar estratégias inovadoras. Essas redes operam a partir da articulação voluntária entre cidades, formando mecanismos descentralizados que favorecem políticas públicas coordenadas em nível transnacional. Seu crescimento tem sido impulsionado por desafios como urbanização acelerada, mudanças climáticas, desigualdade social e a necessidade de uma governança local mais eficiente.
Tipos de Redes de Cidades
As redes de cidades podem ser classificadas em três principais categorias:
Redes de cooperação para projetos: agrupam cidades interessadas em desenvolver iniciativas em áreas específicas, como mobilidade urbana, meio ambiente e sustentabilidade. Esse tipo de rede permite a troca de experiências e a implementação de boas práticas em diferentes contextos urbanos, entre elas:
Redes de articulação econômica focam na competitividade econômica das cidades e no fortalecimento de parcerias empresariais. São redes que buscam atrair investimentos, promover turismo e estimular setores produtivos locais, aumentando a inserção das cidades no mercado internacional.
Redes voltadas a políticas públicas e inclusão social tratam de direitos humanos, segurança pública, igualdade de gênero e governança democrática. Essas redes influenciam políticas locais e internacionais, fortalecendo o papel das cidades como atores políticos relevantes.
A atuação de cidades no cenário internacional está inserida no conceito de governança multinível, que reconhece a interdependência entre diferentes escalas de governo. Isso significa que, além da articulação entre municípios, há uma crescente interação com organismos regionais, nacionais e internacionais. No caso do Mercosul, a Rede Mercocidades foi um marco ao institucionalizar a participação dos governos locais no processo de integração sul-americana, promovendo a cooperação entre cidades para resolver problemas urbanos e regionais de maneira coordenada. Essa rede se consolidou como um espaço estratégico para influenciar a formulação de políticas regionais, criando sinergias entre administrações locais e instâncias supranacionais.
O Mercosul e os Desafios da Integração Regional
A integração sul-americana, representada pelo Mercosul, enfrenta uma crise de intergovernabilidade no nível de Estados nacionais, que coloca em xeque sua capacidade de promover crescimento econômico e desenvolvimento social regional eficiente. Criado em 1991 com o objetivo de fortalecer o comércio e a cooperação entre os países membros, o Mercosul tem sido caracterizado por ciclos de avanços e retrocessos. A dependência do interesse político dos líderes dos Estados nacionais para a tomada de decisões tem sido um dos principais fatores que limitam sua efetividade. A falta de institucionalização de mecanismos supranacionais e a ausência de políticas de longo prazo resultaram em uma estrutura fragmentada, incapaz de responder de maneira ágil às demandas da sociedade e dos próprios governos locais.
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A crise ideológica que permeia a América do Sul também tem impactado a integração regional. A alternância política nos países membros frequentemente redefine as prioridades do bloco, tornando difícil a consolidação de compromissos comuns e duradouros. Esse fenômeno gerou instabilidade e a paralisação de projetos estratégicos, enfraquecendo o Mercosul como um espaço de coordenação e ação conjunta.
O modelo de integração centrado nos Estados nacionais, no caso da América do Sul, tem demonstrado seu fracasso ao não conseguir lidar com os desafios contemporâneos, como a desigualdade social, as mudanças climáticas e a governança urbana.
Diante desse cenário, as cidades e os governos locais são lançados no campo internacional. Os entes subnacionais podem contribuir para reconfigurar a integração regional. A atuação das redes de cidades, por exemplo, permite a construção de pontes entre as sociedades locais, promovendo cooperação em áreas como infraestrutura, cultura, desenvolvimento sustentável e inovação tecnológica. Ao descentralizar a governança, esses atores subnacionais podem preencher lacunas deixadas pelos Estados, garantindo maior continuidade e pragmatismo na formulação e implementação de políticas regionais.
A Mercocidades exemplifica esse potencial ao estabelecer conexões entre administrações locais e promover soluções conjuntas para problemas compartilhados. As cidades, ao assumirem um papel mais ativo, podem redefinir o futuro da integração sul-americana, construindo um modelo mais flexível, dinâmico e orientado às necessidades reais das populações. O fortalecimento dessas redes não apenas complementa a atuação dos Estados, mas pode representar uma nova fase da integração regional baseada na cooperação entre territórios urbanos e no fortalecimento das sociedades locais.
Mercocidades e sua Influência na Agenda Internacional
Criada em 1995, a Rede Mercocidades conta com mais de 360 cidades-membro, representando aproximadamente 120 milhões de habitantes na América do Sul. Seu objetivo central é fortalecer a cooperação entre cidades do Mercosul e promover a integração regional. A rede está organizada em diversas unidades temáticas, incluindo segurança cidadã, meio ambiente, mobilidade urbana e desenvolvimento social. Além de sua atuação em políticas urbanas, a Mercocidades tem potencial para transformar o Mercosul em um modelo de integração social e inovação em governança local, promovendo a cooperação em temas como inclusão social, cultura, educação e bem-estar coletivo.
Apesar dos avanços, a atuação da Rede Mercocidades enfrenta desafios significativos, como a falta de recursos financeiros e a necessidade de maior institucionalização da paradiplomacia nos países-membros do Mercosul. Além disso, a diversidade de contextos políticos e administrativos entre os municípios-membros pode dificultar a implementação uniforme de políticas conjuntas. Para que essa rede continue se fortalecendo, é essencial aprimorar os mecanismos de financiamento, fortalecer a participação política das cidades nos fóruns internacionais e ampliar a articulação com outros atores globais.
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A Mercocidades pode consolidar-se ainda mais como um instrumento de inovação na governança multinível, tornando-se referência para o Mercosul em políticas sociais e desenvolvimento humano. A formalização de mecanismos permanentes de cooperação entre as cidades e o bloco pode permitir a criação de soluções regionais mais eficazes para problemas urbanos compartilhados, como habitação, transporte e inclusão digital.
A hora e a vez da Paradiplomacia
A crise do Mercosul reflete um esgotamento do modelo de integração baseado exclusivamente nos Estados nacionais, que se mostram cada vez mais incapazes de formular respostas eficazes para os desafios contemporâneos. A intergovernabilidade limitada e os conflitos ideológicos entre os países-membros paralisam decisões estratégicas e impedem avanços na construção de um espaço regional sólido e funcional. Em contrapartida, as cidades vêm demonstrando maior flexibilidade e capacidade de inovação, permitindo a articulação de soluções concretas para problemas compartilhados, como mudanças climáticas, desigualdade social e desenvolvimento sustentável.
Nesse contexto, a ascensão da paradiplomacia se torna não apenas desejável, mas essencial. As redes de cidades, como a Mercocidades, oferecem um caminho alternativo para a integração regional, baseado na cooperação direta entre governos locais e na implementação de políticas orientadas às necessidades reais da população.
A teoria verde, ao enfatizar a interdependência dos ecossistemas e a necessidade de uma governança descentralizada, reforça a importância de abordagens locais para enfrentar crises ambientais e sociais. A sustentabilidade, vista por essa perspectiva, não pode ser alcançada apenas por meio de tratados interestatais, mas exige o engajamento ativo das cidades na formulação de estratégias resilientes e inclusivas. Assim, as cidades não são apenas coadjuvantes, mas protagonistas na construção de um novo modelo de integração sul-americana, voltado para a cooperação descentralizada, a sustentabilidade e o fortalecimento das sociedades locais.
Assim, mesmo diante dos impasses da integração tradicional, a articulação entre cidades no Mercosul e além dele se mantém e deve ser fortalecida, garantindo que a cooperação regional continue a evoluir a partir da base local.
Analista de Relações Internacionais, organizador do Congresso de Relações Internacionais e editor da Revista Relações Exteriores. Professor, Palestrante e Empreendedor.