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Muammar al-Gaddafi e a Intervenção militar na Líbia

Protestos na Líbia contra o regime ditatorial do Coronel Muammar al-Gaddafi | Fonte: R7

Em 1969, Muammar al-Gaddafi subiu ao poder na Líbia através de um golpe militar, depondo o rei Idris. Seu início de liderança teve como base o afastamento de países árabes, em especial, o Egito, devido às negociações de paz com Israel e a aproximação com os Estados Unidos, e, também, de Estados ocidentais. Diante desse afastamento, Gaddafi buscou consolidar-se como uma oposição à influência ocidental tanto no Oriente Médio quanto no continente africano (LEWIS, 2011 apud OLIVEIRA, 2015, p.678).  Desde então, a relação Líbia – Estados Unidos deteriorou-se, ao passo que os Estados Unidos discursavam contra o terrorismo internacional: segundo a potência americana, a Líbia mantinha laços com organizações terroristas, tornando-se, desta forma, um dos principais alvos estadunidenses. 

Na década de 80, o governo norte-americano fechou sua embaixada na Líbia e derrubou duas aeronaves militares líbias, enquanto caças de origem estadunidense sobrevoavam o golfo de Sirte (região da Líbia que concentra importantes reservas petrolíferas do país). Não sendo o bastante, o governo dos EUA impôs um embargo a compra do petróleo do Estado africano e bombardeou Trípoli e Benghazi, como represália à um ataque terrorista realizado em uma casa noturna em Berlim, no qual dois americanos morreram, e cuja realização foi associada às forças de inteligência líbias (LEWIS, 2011 apud OLIVEIRA, 205, p. 679). 

Posteriormente, no final da década de 80, um avião da Pan American Airlines, vítima de ataque terrorista, explodiu, resultando na morte de 270 pessoas, nas quais 189 eram norte-americanas. O governo líbio foi acusado de clamar o ataque e sofreu sanções após o aval do Conselho de Segurança da ONU. Como consequência das fortes sanções sofridas, a condição social agravou-se na Líbia. Sendo assim, Gaddafi viu a necessidade de ter um novo posicionamento frente ao Sistema Internacional.

Nesse contexto, logo após o ataque de 11 de setembro de 2001, ele formalmente estendeu seu apoio à Guerra ao Terror de Bush, colaborando de forma ativa, além de entregar os agentes executores do Atentado de Lockerbie (CAMPBELL, 2013; LAURENT, 2013 apud OLIVEIRA, 2015, p.679) e de interromper o enriquecimento de urânio. Com os ataques ocidentais ao Iraque, os países do oeste passaram a olhar a relação com a Líbia como essencial para satisfazer as necessidades petrolíferas domésticas referentes a seus respectivos Estados. Dessarte, Gaddafi deu início a um amplo processo de privatizações, promovendo a abertura, sobretudo, do setor de petróleo (OLIVEIRA, 2015). No entanto, este processo culminou no aumento do desemprego e dos preços, e, consequentemente, levou à manifestação popular e à rebelião armada contra o seu governo.

Em 2003, os Estados Unidos passaram a utilizar a expressão “modelo líbio”, referindo-se à boa vontade de ambos e à negociação para se sair de situações conflituosas. Nesta conjuntura, a Líbia passou a ter um papel mais forte no Sistema Internacional: EUA retirou o país da sua lista de apoiadores do terrorismo; a Líbia passou a ter uma embaixada em Washington, e os EUA em Trípoli; a Líbia foi eleita para o Conselho de Segurança da ONU; Gaddafi foi eleito presidente da União Africana (UA); Reino Unido e Líbia assinaram um acordo de troca de prisioneiros; Itália assinou um acordo com Gaddafi, no qual receberia da Itália 5 bilhões de dólares como ressarcimento pelo período colonial e em troca, a Líbia bloquearia a onda de emigração para a Europa. Esse contexto demonstra que aos olhos do Ocidente Gaddafi passava de vilão a bom moço, resultado de um processo que teve lugar através de um diálogo diplomático no qual imperou a boa vontade das partes, o chamado “modelo líbio” (LUNDIN, 2011).

No entanto, com as revoltas sociais (Primavera Árabe) que estavam ocorrendo nos países do norte da África contra os seus tocantes governos, acrescidos da crise econômica de 2008, das privatizações, dos 42 anos de ditadura de Gaddafi e do término de sua imagem de “bom moço”, a população da Líbia passou a manifestar-se contra o seu governo ditatorial.

A intervenção

Os primeiros sinais de movimentações contra o governo Gaddafi iniciaram em fevereiro de 2011. As motivações para o início das manifestações populares são variadas. De acordo com algumas fontes de notícias, parte dos protestantes foi às ruas para protestarem sobre as péssimas condições de moradia dos líbios (WEAVER, 2011 apud GAMA, 2014, p.101). No entanto, levando em conta o “efeito dominó”, o líder líbio receava que, assim como em seus países vizinhos (Primavera Árabe), a população o retirasse do poder. Sendo assim, Gaddafi utilizou-se da violência para tentar frear o começo de um importante momento na história da Líbia. Fracassando pouco tempo depois, muitos protestantes já haviam ocupado cidades líbias e diversas vidas já haviam sido tiradas por forças governamentais. Em compensação aos atos violentos do governo, a população passou a ser mais radical em seus protestos.

Em um jogo de quem era o mais forte, a situação na Líbia tornou-se destruidora rapidamente. Neste momento, os antigovernistas já estavam na capital, Trívoli, e já existiam relatos de grandes violações de direitos humanos. Inclusive, foi informado que diversos civis desarmados estavam sendo mortos à queima-roupa.

A insatisfação e a violência estavam marcando tamanha presença no país que mesmo os aliados governamentais passaram a integrar o grupo contra Gaddafi, resultando em um desequilíbrio no governo ditatorial regente. À medida que os protestos eram mais decorrentes, as mortes também eram, estimando em fevereiro de 2011 mais de mil fatalidades. Naquele momento, a Líbia já se encontrava em situação de crise humanitária (Al Jazeera c, 2011 apud GAMA, 2014, p.102). Após dias de embate entre a população da Líbia e o seu governo, a população começou a clamar pela deposição de seu líder Muammar Gaddafi (BLACK, 2011d apud GAMA, 2014, p.103).

Foi neste contexto de extrema crueldade e a partir da premissa dos direitos humanos líbios violados, que a comunidade internacional passou a intervir no conflito armado não internacional – é compreensível haver espaços de dúvidas sobre a classificação do conflito, já que houve auxílio externo a favor dos protestantes -, que posteriormente, com a intervenção ocidental, tornou-se um conflito armado internacional. Em casos em que um Estado se mostra incapaz de cumprir a responsabilidade de proteger sua população, a Comunidade Internacional tem a responsabilidade de agir rápida e assertivamente, sob os auspícios da Carta da ONU, utilizando meios diplomáticos, humanitários e quaisquer outros meios pacíficos de maneira apropriada, para ajudar a proteger aquelas populações (BELLAMY, 2010; UNGA, 2009 apud OLIVEIRA, 2015, p.674). Entretanto, há uma dicotomia de ideias referentes à intervenção na Líbia: de um lado o grupo que afirma que o motivo de intervenção foi de fato a violação dos direitos humanos, e de outro, um grupo que afirma que os países intervieram por motivos políticos e econômicos.

Nesta conjuntura, no dia 26 de fevereiro o Conselho de Segurança da ONU aprovou a Resolução 1970, que tinha como principal objetivo suspender o conflito interno. Este documento impôs um embargo de armamentos contra a Líbia, congelou bens de Gaddafi e sua família, e determinou que o Tribunal Penal Internacional (TPI) investigasse os crimes cometidos pelo governo ditatorial. Ainda assim, a escalada da violência interna não diminuiu. Em função disto, no dia 10 de março a União Africana tentou negociar com a Líbia na tentativa de solucionar o conflito pacificamente. Esta iniciativa estaria de acordo com a própria Carta da ONU, já que a UA seria a organização regional mais diretamente interessada na questão, e, portanto, deveria ter a iniciativa (e a prioridade) em sua resolução (BOYLE, 2012 apud OLIVEIRA, 2015, p.676). No entanto, não lograram êxito. Sendo assim, no dia 12 de março a Liga Árabe se reuniu no Cairo para votar uma resolução solicitando à ONU o estabelecimento de uma Zona de Exclusão Aérea sobre a Líbia (HASEEB, 2012 apud OLIVEIRA, 2015, p.686), ressalvando que o governo do líder Gaddafi não era mais legitimado. Esta posição da Liga Árabe foi fundamental para a aprovação, tais quais a legitimidade e implementação da Resolução 1973 do Conselho de Segurança da ONU – era a primeira vez que o Conselho de Segurança da ONU autorizava o uso de força militar para proteger vidas humanas contra a vontade de um Estado em funcional (BELLAMY, 2011 apud OLIVEIRA, 205, p. 673).

A Resolução 1973 autorizava os Estados-membros a adotarem todas as medidas necessárias (all necessary measures) para proteger civis e áreas habitadas por civis no território da Líbia; interditou todos os voos sobre a Líbia; inspecionou aviões e navios que poderiam transportar armamentos e munições proibidas pelas cláusulas 9 e 10; decretou a zona de exclusão aérea na Líbia. Vale ressaltar que as operações, no que tangem a zona de exclusão aérea e as missões, foram assumidas pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

Apenas dois dias após a aprovação da Resolução 1973, Estados Unidos, Canadá, França e Reino Unido bombardearam aereamente a Líbia. É imprescindível salientar que, EUA, França e Reino Unido enviaram tropas especiais à Líbia com o intuito de auxiliar os protestantes a se protegerem contra a violência do governo Gaddafi, além de treinar e coordenar os civis contra o respectivo governo, mesmo que a Resolução não previsse nenhuma ação em solo líbio. Dessarte, é possível destacar dois grupos, um que apoiava a intervenção militar argumentando concordância com a Resolução 1973; e outro que a criticava, defendendo que as medidas de auxílio armamentista aos protestantes e bombardeios não estavam previstas pela Resolução.

Devido às medidas bruscas contra o governo ditatorial, ficou entendido que o objetivo da intervenção não era apenas de promover direitos humanitário e o fim do conflito, mas, acima de tudo, de tirar Gaddafi do poder. Assim, em abril de 2011, Obama (EUA), David Cameron (Grã Bretanha) e Nicolas Sarkozy (França) publicaram uma carta confirmando que a saída de Gaddafi era uma condição sine qua non para o sucesso de seus objetivos.

“Nosso dever e nosso mandato sob a resolução 1973 do Conselho de Segurança da ONU é proteger os civis, e nós estamos fazendo isso. Não é remover Gaddafi à força. Mas é impossível imaginar um futuro para a Líbia com Gaddafi no poder. […] Há um caminho para a paz que promete esperanças renovadas para a população da Líbia – um futuro sem Gaddafi que preserve a integridade e soberania líbias, e que recupere sua economia e a prosperidade e segurança de sua população. […] Entretanto, enquanto Gaddafi estiver no poder, a OTAN deve manter suas operações para que os civis permaneçam protegidos, e para que a pressão sobre o regime aumente. Então, uma transição genuína de uma ditadura para um processo constitucional inclusivo poderá realmente começar, comandada por uma nova geração de líderes. Para que essa transição tenha sucesso, Gaddafi deve partir, e para sempre (OBAMA; CAMERON; SARKOZY, 2011, grifo nosso apud OLIVEIRA, 2015, p. 678).”

Seria a proteção dos Direitos Humanos líbios o verdadeiro motivo para a intervenção militar na Líbia?

Os líderes do ocidente deixaram claro que o motivo para a intervenção militar na Líbia foi para assegurar a proteção humanitária dos civis. No entanto, alguns autores afirmam que a verdadeira motivação por detrás dos mais de 100 mil mísseis lançados ao território líbio, das duas Resoluções e dos esforços da OTAN, foram por interesses energéticos.

Segundo estes autores, para os Estados Unidos, os principais incentivos são divididos em dois axiomas: Primeiro, a questão do petróleo – a Líbia detém 3,5% das reservas de petróleo do mundo, mais do que o dobro das reservas dos EUA -, ou seja, o país norte-americano possuía interesses em aumentar a participação de suas empresas na Líbia, além de controlar o preço internacional do petróleo da região. Segundo, o país preocupava-se que a história se repetisse resultando em um mundo bipolar e em uma segunda Guerra Fria. Sendo assim, com a influência estadunidense na Líbia, os países vizinhos, Egito e Tunísia, não teriam governos não alinhados aos interesses ocidentais, possivelmente evitando conflitos com o ocidente e uma outra Guerra Fria.

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Fonte: Revista Fórum

Já para a França, o motivo da intervenção militar pautava-se sobre interesses domésticos e internacionais. No âmbito doméstico, o então presidente da época, Nicolas Sarkozy, queria polir sua reputação, que já estava muito abalada. No âmbito internacional, a França também possuía interesses petrolíferos na região, acrescidos da significativa disposição de vendas de armamento para a Líbia.

A Itália, por sua vez, era possivelmente o país ocidental com interesses mais imediatos na questão líbia. Tanto sua segurança nacional quanto energética estavam intrinsecamente ligadas ao destino líbio (OLIVEIRA, 2015). Isso quer dizer que a Itália possuía empresas na Líbia que, além de serem responsáveis por exportar quase 30% do petróleo líbio, também detinham diversos investimentos no território. Para mais, meses antes do conflito armado não internacional, ambos estavam negociando um acordo bilionário para melhoria da fronteira líbia – o que resultava no controle da saída de imigrantes com destino italiano.

Pode-se afirmar que o fator comum de interesse entre Itália, França e EUA, foi também o principal por trás da intervenção do Reino Unido. Ou seja, a questão petrolífera.

Vidas Inocentes Perdidas

Após a Resolução 1973, ataques aéreos foram realizados pela OTAN contra a Líbia. Neste contexto, apesar da referida organização internacional ter afirmado que o objetivo era proteger a população, não foi esta a realidade, pois vidas inocentes foram perdidas.

Segundo Alain Pelletier, comandante da Força Aérea Canadense, os sete jatos CF-18 designados para operar na Líbia estavam equipados com software desenvolvido para calcular o raio das explosões, de modo a permitir que os pilotos avaliassem, diante das normas de direito internacional humanitário, a conveniência dos ataques, os quais, além disso, eram precedidos de transmissões de rádio e de lançamentos de panfletos a fim de alertar os civis da iminência de ocorrerem (BRASIL, 2017). No entanto, os antigovernistas fizeram uso, desde o início dos protestos, dos foguetes do tipo GRAD, impedindo que as forças armadas distinguissem determinado alvo do restante da população inocente. Este ato contraria a obrigação contida em direito internacional humanitário de distinção entre combatentes e não combatentes (BRASIL, 2017).

Não obstante, tanto relatórios da Human Right Watch, quanto reportagens do The New York Times confirmaram que a OTAN não investigou os bombardeios que resultaram nas mortes dos civis e nem tornou público os critérios de escolha de alvos militares. Esta posição da OTAN, indubitavelmente, gera brechas pertinentes à preocupação com a segurança da população líbia.

Pós Intervenção Militar de 2011

Em setembro de 2011- momento em que já havia um novo governo nacional, liderado pelo Conselho Nacional de Transição (NTC), e que o governo Gaddafi já havia caído – foi aprovada a Resolução 2009. Sem pormenorizar, esta Resolução fez menção à Resolução 1973, apontando seu fracasso ao tentar alterar a conjuntura perigosa em que a população civil líbia estava inserida.

 A Resolução 2009 situou-se em torno do novo governo da Líbia, o NTC. Ou seja, possuía como objetivo dar assistência aos esforços nacionais de reconstrução institucional e econômica e de promoção dos direitos humanos (BRASIL, 2017), além de aprovar a entrada de armamentos bélicos às novas autoridades da Líbia e aos indivíduos da ONU que estavam em missão no país.

 Em 20 de outubro, na cidade de Sirte, um comboio do qual Gaddafi fazia parte foi bombardeado por um drone pilotado remotamente de Las Vegas (BRASIL, 2017), resultando na captura e assassinato de Gaddafi pelos protestantes. Semanas depois, foi aprovada a Resolução 2016, que encerrava o uso do militarismo pela OTAN, imposto pelas Resoluções anteriores. Em julho de 2012 foram feitas as primeiras eleições desde 1960. No mesmo ano, a Líbia voltou a produzir petróleo, produto responsável por mais de 70% do PIB líbio, permitindo que o país voltasse à sua normalidade.

Referências Bibliográficas

ALCOFORADO, Fernando. A intervenção militar na Líbia. Disponível em http://centrovictormeyer.org.br/wp-content/uploads/2014/01/A-interven%C3%A7%C3%A3o-militar-na-L%C3%ADbia-F.-Alcoforado.pdf Acesso em: 30 set. 2020.

BRASIL, Bruno Berrettini Camponês do. Líbia: um estudo da intervenção internacional de 2011 e de seus aspectos jurídicos e políticos. 2017. 314 f. Dissertação (Pós-Graduação em Relações Internacionais) – Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, São Paulo. 

GAMA, Isabela de Andrade. As motivações russas para sua atuação na Síria: a identidade russa em questão. 2015. 188 f. Dissertação (Pós-graduação em Relações Internacionais) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 

LUNDIN, Iraê Baptista. A intervenção militar na Líbia. Tensões Mundiais, v.7, n.13, p. 194, 2011. 

OLIVEIRA, Guilherme Ziebell de. A intervenção ocidental na Líbia: interesses ocidentais e o papel da Liga Árabe. Brazilian Journal of International Relations, Marília, v.4, n.3, p. 671, dez. 2015. 

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