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Relações Comerciais Brasil-África no contexto da Zona de Livre Comércio Africano (2018-2020)

Em uma observação histórica, as relações entre o Brasil e o continente africano passaram por diversas transformações ao longo dos anos, adquirindo maior e menor dinamismo em diferentes períodos da Política Externa Brasileira (PEB). Neste contexto, a proximidade histórico-cultural com a margem oeste do Oceano Atlântico serviu como base para o aprofundamento dos diálogos entre Brasil-África a partir do século XXI, e não diferentemente, as relações econômicas e comerciais acompanharam estes fluxos. Tal aprofundamento das relações comerciais por parte do Brasil, a partir de 2000, também está relacionado à reestruturação das atribuições de instituições nacionais voltadas para as relações exteriores.

Bem como menciona Rizzi et. al. (2011), na esfera diplomática, a atuação do Itamaraty passou por uma intensificação com o estabelecimento do Departamento de África, que anteriormente era anexo ao Departamento de Oriente Médio. A proximidade linguística e o compartilhamento de vínculos históricos, e de identificação cultural originadas no período da colonização portuguesa, como evidenciam Da Silva e Rizzi (2012), pode ser identificado como um dos fatores catalisadores para tal processo. Igualmente, faz-se relevante salientar a articulação feita entre o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e a Agência Brasileira de Promoção de Exportação e Investimentos (Apex) – esta última criada em 2003 – no processo de promoção das relações comerciais com o continente africano.

Não diferentemente, a África também experienciou transformações significativas, tal como aponta Mathews (2005), no que tange ao Renascimento Africano. Este processo promoveu avanços nas estruturas das Instituições Regionais do continente por volta da década de 1990.  Neste cenário, em síntese, além da sucessão da Organização da União Africana (OUA) pela ser União Africana (UA), a agenda dos Estados Africanos voltou-se para o desenvolvimento socioeconômico e a superação das barreiras para o desenvolvimento de forma sustentável e consonante com os ideais de união e solidariedade africano. Diversas iniciativas foram adotadas, culminando, consequentemente, no desenho do Acordo para a criação de uma Zona de Livre Comércio Continental Africana (ZLCCA).

O Acordo de criação da ZLCCA visa estabelecer um mercado comum de bens, serviços, investimentos e pessoas, podendo ser considerada a maior zona de livre comércio no mundo. Esta robusta estrutura objetiva integrar os 55 Estados, compondo assim uma zona de livre comércio que abriga cerca de 1,3 bilhão de pessoas e possui o potencial para promover avanços significativos na estrutura socioeconômica de muitos países membros, tais como o desenvolvimento da infraestrutura e logística continental e a superação da pobreza e desemprego (MALISZEWSKA; RUTA, 2020).

Observados os fatores expostos acima, de como as relações entre o Brasil e o continente africano se desenvolveram anteriormente, e identificando as alterações contemporâneas nas dinâmicas domésticas no Brasil, e a criação da ZLCCA, objetiva-se  analisar as relações entre Brasil-África neste novo cenário. Para tanto, pretende-se com este estudo traçar um panorama destas relações (no recorte temporal 2018-2020), com o intuito de aferir quais características podem ser identificadas, questionando, se a criação da ZLCCA pode ser um fator de mudanças nas relações Brasil-África. Serão abordados, por conseguinte, os aspectos políticos e econômicos traçados PEB para com o continente africano; assim como, será empregada análise  dos efeitos da criação da ZLCCA na esfera comercial do Continente.

O desenho metodológico utilizada no artigo, de caráter qualitativo descritivo, foi a análise documental e bibliográfica, a partir de obras, relatórios e documentos fornecidos por instituições nacionais brasileiras e Organizações Internacionais africanas – a mencionar a União Africana e o Monitor do Comércio Exterior Brasileiro. Do mesmo modo, foram utilizadas  as determinações do Acordo e do Protocolo de Trocas em Bens da ZLCCA, no que tange à maior compreensão do funcionamento da mesma. Considerando o desenvolvimento de variáveis dependente, independente e interveniente, quais sejam respectivamente: as Relações Brasil-África no recorte temporal de 2018 a 2020; neste mesmo quadro, como variável independente a criação e operacionalização da ZLCCA; e por fim, mais especificamente a nova abordagem da política exterior do Brasil para a África no mesmo período.

Tendo em consideração o papel desempenhado pelo continente africano entre os parceiros comerciais do Brasil ao longo dos anos, somada à vinculação histórico-cultural que é constantemente ressaltada na observação no âmbito diplomático, compreende-se que se faz necessário explorar os debates sobre os rumos desta relação. Haja vista as transformações neste cenário, principalmente a operacionalização da ZLCCA, como um empreendimento robusto que objetiva provocar uma ampliação das capacidades comerciais, industriais e socioeconômicas da África. Do mesmo modo que se deve considerar as transformações que ocorreram também no âmbito nacional brasileiro, com uma leitura da condução da PEB realizada no decorrer do recorte temporal deste artigo. Para fins de maior compreensão, o artigo está dividido em três seções que, consecutivamente, abordam as transformações no cenário africano, a criação e operacionalização da ZLCCA e as relações Brasil-África.

Antecedentes da ZLCCA: Integração no continente africano

A criação da ZLCCA é antecedida por outras iniciativas voltadas para o desenvolvimento de integração econômica no continente africano. Mais especificamente, esta agenda acompanha a criação da OUA, na década de 1960, dotada do intento de incentivar a criação de um espaço regional integrado e voltado para o desenvolvimento endógeno. Neste quadro, de desenho de uma articulação para a integração, estabeleceu-se o Tratado de Abuja, em 1991, que criou as Comunidades Econômicas Regionais (CER), que consistia no estabelecimento de áreas de livre comércio sub-regionais. Destas cabe denominar: a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral; a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental; o Mercado Comum da África Oriental e Austral; a Comunidade da África Oriental a Comunidade Econômica dos Estados da África Central; a Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento; a União do Magrebe Árabe; e a Comunidade dos Estados do Sahel-Saara (ALBERT, 2019).

Divergências relacionadas ao avultado número de CER, e entre os Estados que eram membros de mais de uma comunidade resultou na união de algumas destas Comunidades, a serem mencionada são: a união da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral, Comunidade da África Oriental e o Mercado Comum da África Oriental e Austral. Somada a esta decisão foi elaborada a proposta de estabelecimento de um acordo para a criação de uma área de livre comércio continental. Este projeto teve início no ano de 2015, já no contexto da União Africana (UA) – torna-se necessário apontar que a UA sucedeu à Organização da Unidade Africana em 2002. Como efeito, o Acordo da ZLCCA foi adotado pela UA em 2018, no contexto da 10° Sessão Extraordinária da Assembleia da UA, em Ruanda (ALBERT, 2019).

A operacionalização da ZLCCA está vinculada a um conjunto de objetivos, sistematicamente colocados em uma agenda, que foi elaborada como um planejamento estratégico para o desenvolvimento inclusivo e multidimensional do Continente. Desenhada em 2013 no contexto da 50° aniversário de criação da OUA, a Agenda 2063 sumariza os objetivos e o compromisso que os Chefes de Estado e de Governo africanos estão dispostos a adotar, em prol do desenvolvimento sustentável, integração, empoderamento da população e minorias, e criação de um ambiente pacifico e próspero.

Em conjunto aos objetivos traçados pela Agenda 2063, também se integram aspectos sociais e políticos relacionados à melhoria de indicadores relacionados à fome; segurança alimentar; saúde pública; acesso à água e saneamento, entre outros. Contudo, os aspectos econômicos não foram negligenciados, a Agenda também aborda o incentivo às indústrias nacionais; a inserção na cadeia de valor global; aumento da produtividade agrícola e manufatureira; a agregação de valor às commodities; e o investimento na economia azul. Não menos importante, o incentivo ao fluxo livre de bens, mercadorias, capital e serviços dentro do espaço africano também são abordados na Agenda.

Todos estes princípios e objetivos presentes na Agenda 2063, e consequentemente na execução da ZLCCA estão embasados no Renascimento Africano e no pensamento Pan-Africanista. Em síntese, o primeiro refere-se ao processo que se iniciou a partir da década de 1990, onde o continente experienciou transformações significativas no âmbito político regional, tal como a criação da Comunidade Econômica Africana, em 1991; o fim do apartheid na África do Sul, no ano de 1994; a reformulação da OUA que deu origem a UA que assumia uma perspectiva de atuação orientada no desenvolvimento socioeconômico. Igualmente, a adoção da Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (NEPAD), em 2002, também voltada para o desenvolvimento incluindo práticas de boa governança e democracia (MATHEWS, 2005).

Já o Pan-Africanismo, ainda que não esteja dissociado do Renascimento Africano, se caracteriza pelo ideal de unidade, solidariedade entre as nações africanas e a diáspora; ao mesmo tempo que enfatiza a autodeterminação dos Estados e incentiva a cooperação em face às consequências causadas pela intervenção colonial no desenvolvimento das antigas colônias. As transformações supracitadas no contexto do Renascimento Africano estavam conectadas ao discurso Pan-Africano de integração e superação das sequelas da colonização, tornando estes fatores um efeito catalisador para a formulação da UA.

Para tanto, o ideal Pan-Africanista se integra à dimensão das Instituições africanas ao prover o pensamento de que o desenvolvimento político deve estar atrelado ao econômico. Como evidencia Ola (1979), não bastaria os Estados Africanos adquirirem independência e autonomia política enquanto houver ingerência de atores externos na pauta econômica do continente africano. Do mesmo modo que não se torna viável apenas promover o desenvolvimento econômico negligenciando os aspectos políticos neste processo. Complementarmente, entende-se que o caráter voltado para um para a integração está relacionado a herança colonial que estabeleceu fronteiras artificiais, denominado como Balcanização. Este fenômeno resultou no estabelecimento de pequenos Estados soberanos com recursos limitados, que a partir de sua independência, estabeleciam sua própria agenda e estratégia para o desenvolvimento. Neste sentido, o incentivo para um processo de integração ganha destaque, ao fornecer uma ampliação de território e diversidade de recursos para que se torne aplicável às estratégias para o fortalecimento econômico e industrial.

Tais características também podem ser observadas no Acordo de Estabelecimento da ZLCCA, onde é enfatizada a necessidade de investimentos em infraestrutura continental e a promoção do desenvolvimento socioeconômico e inclusivo às minorias, dando destaque ao papel desempenhado pelas mulheres na estrutura social. Não diferentemente e atrelado ao pensamento Pan-africano, vale mencionar os princípios da ZLCCA, os quais incluem a reciprocidade, consenso na tomada de decisões; transparência e troca de informações; flexibilidade com relação às medidas de proteção à indústria jovem dos países membros, como será aprofundado na próxima sessão (AFRICAN UNION, 2018).

Estrutura Institucional e Operacionalização da ZLCCA

 A criação da ZLCCA estava pautada no desenvolvimento de um espaço continental interligado, unido por um mercado comum de bens e serviços com a facilitação do trânsito de pessoas, fluxo de capital, atração de investimentos e diversificado no que tange a indústria. Tais esforços foram traçados objetivando caminhar futuramente para uma União Aduaneira Continental. Deste modo, diversas medidas adjacentes são integradas para que estes objetivos sejam alcançados, desde a inclusão das minorias o aprimoramento da infraestrutura para dar suporte necessário nas dinâmicas de troca (ALBERT, 2019).

Seguindo esta perspectiva, Maliszewska e Ruta (2020) também argumentam, em termos práticos, que esta articulação continental surge com o objetivo de impulsionar as trocas entre os países do continente, que ainda se mantêm limitadas, menos de 8% das exportações ocorrem entre os Estados Africanos. Neste sentido, a eliminação e redução de tarifas e barreiras resultaria na redução dos custos relacionados à produção, impactando tanto para os exportadores, quanto para o consumidor final.

Como apresenta dados do Secretariado do Acordo da ZLLCA, acerca do status de ratificação, emitida em dezembro de 2020, 54 Estados assinaram o acordo, com exceção apenas da Eritreia. Até o prazo citado acima, 34 Estados ratificaram o acordo e depositaram os instrumentos, sendo estes: África do Sul; Angola; Burkina Faso; Camarões; Chade, Costa do Marfim; Congo; Djibuti; Egito; Etiópia; Gabão; Gâmbia; Gana; Guiné; Guiné Equatorial; Ilhas Maurício; Lesoto; Mali; Mauritânia; Namíbia; Nigéria; Níger; Quênia; Reino de Eswatini; República Centro Africana; República Saharaui; Ruanda; Senegal; Serra Leoa; São Tomé e Príncipe; Togo; Tunísia; Uganda e Zimbábue. A título de maior compreensão, a ratificação expressa o interesse em integrar o tratado ou acordo, enquanto a aplicação das suas atribuições só se torna obrigatória no âmbito multilateral após o depósito dos instrumentos  (FLORIANI; SANTOS, 2019).

Não diferentemente, Okechukwu e Chikata (2018) ponderam que o acentuado caráter de interdependência entre as Nações africanas ao buscar uma estratégia de desenvolvimento de modo integrado tal como versa o pensamento Pan-Africanista. O princípio de solidariedade também fica expresso quando se observa as medidas do Acordo da ZLCCA, que beneficiam de forma mútua os seus participantes e a delineação da melhor forma de redistribuição destes benefícios proporcionados pelas medidas regionais. Neste sentido vale citar o compromisso dos Estados Membros em adotar medidas mais flexíveis para os outros Estados Membros com menor desenvolvimento econômico relativo (AFRICAN UNION, 2019).

Institucionalmente, o Acordo da ZLCCA pode ser dividido em três partes, sendo a primeira composta das disposições iniciais e definições do acordo; seguida dos protocolos que versam sobre a operacionalização da ZLCCA, amplamente relacionadas às trocas de bens e serviços e como as medidas serão adotadas, além de seus objetivos, exceções, compromissos, entre outros. Torna-se relevante apontar que se estabeleceu uma estrutura para que sejam postas em prática as medidas do acordo, que é composta pela Assembleia; o Conselho de Ministros; o Comitê de Altos Funcionários de Comércio; e o Secretariado. Além desta estrutura, a aplicação do acordo também conta com a Assembleia de Chefes de Estado e de Governo da UA desempenham a função de monitoramento e fornecimento de direcionamento estratégico no processo de implementação (ALBERT, 2019).

Dentre as suas disposições, o Acordo discorre sobre a eliminação gradual das barreiras não tarifárias das trocas comerciais, ou seja, a diluição de barreiras que impedem as trocas através de mecanismos que não sejam tarifários. Igualmente, prevê-se a aplicação de estratégias para a diversificação das pautas industriais e cadeias de valor visando promover o seu desenvolvimento e ampliar a competitividade dos Estados Membros frente ao mercado global. Estabeleceu-se o dever de reduzir os custos de transações com o intuito de promover o desenvolvimento regional socioeconômico; incentivando a industrialização; a maior eficiência em procedimentos alfandegários e facilitação de trocas comerciais e trânsito de bens. Ao mesmo tempo que se firmou o compromisso em matéria de aumento da competitividade de serviços; redução dos custos de negociações; aumento do acesso ao mercado continental; a recepção de investimentos domésticos e externos (AFRICAN UNION, 2018).

Destaca-se que o Protocolo não impede que os Estados Membros mantenham relações e acordos com outros Estados que estejam fora da ZLCCA, contanto que estes não frustrem qualquer objetivo, vantagem ou concessão fornecida pelo Protocolo. Da mesma forma que, os produtos importados de outros Estados Membros, após o desembaraço aduaneiro, deverão ter o tratamento não menos favorável que os produtos domésticos. Impostos e taxas sobre importação de bens originários do território da ZLCCA serão eliminados progressivamente, seguindo o cronograma de concessão tarifária de cada Estado Membro (AFRICAN UNION, 2018).

A união de um mercado continental teria efeitos significativos na estrutura de trocas comerciais existentes na África, que ainda está diretamente relacionada à manutenção da estrutura herdada do período colonial. Segundo Songwe; Macleod e Karingi (2021), como efeito da balcanização, as trocas comerciais realizadas entre os Estados do continente enfrentavam aproximadamente uma tarifa de 6,9%. Somadas às barreiras não tarifárias e outras medidas que se diferem de Estado para Estado, tal como padrões sanitários e fitossanitários, poderiam representar um aumento de 14,3% nos custos das operações comerciais intracontinentais. Apesar disso, o início das atividades comerciais dentro da Zona de Livre Comércio Continental Africana sofreu com os efeitos causados pelas medidas sanitárias estabelecidas por causa da pandemia da Covid-19, que atingiu o continente e o mundo em 2019.

A pandemia significou um choque dentro da economia Africana, o que resultou na queda do crescimento do continente em 1,9% em 2020.Como efeito identificou-se a flutuação dos preços das commodities, como minerais e hidrocarbonetos. Em uma observação mais aproximada, em 2020 ocorreu a redução de 16% do total as exportações para fora continente, principalmente na exportação de petróleo; enquanto a exportação de minerais, como o ouro teve um aumento no valor das exportações de 18%.  No âmbito das trocas dentro do continente, por sua vez, são compostas majoritariamente de produtos manufaturados, que também enfrentou dificuldades em decorrência das disparidades de desenvolvimento industrial e manufatureiro dentro do continente, uma vez que os produtos manufaturados correspondem a 29% das trocas intercontinentais entre os anos de 2017 a 2019 (SONGWE; MACLEOD; KARINGI, 2021).

Complementarmente, bem como contribui Hamrouni (2020), este efeito atribuído a pandemia impactou nos preços da commodity mundialmente. Além disso, no caso dos Estados Africanos, além do impacto nos preços e demanda por petróleo, também se identificou a redução do fluxo de turismo, setor relevante para muitos Estados africanos e consoante as medidas de promoção do setor de serviços. Enquanto em casos específicos, como a África do Sul, que experienciou ao final de 2019, uma recessão causada por outros choques, como gargalos infraestruturais e problemas na matriz energética do país.

Redirecionamento do paradigma diplomático brasileiro

Em uma breve retomada histórica, a PEB durante a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva (2002-2010) foi pautada pela perspectiva de atuação definida pelo então Chanceler, Celso Amorim, como ativa e direcionada para pautas como a Cooperação Internacional, multilateralismo e desenvolvimentismo, enfatizando-se o papel dos Estados em desenvolvimento dentro das dinâmicas internacionais. Como complementa Cornetet, (2018), este período foi marcado um uma atuação de caráter flexível resultante da conjuntura doméstica, que possibilitou que o presidente exercesse um papel proativo na esfera internacional. Principalmente no que tange ao continente africano, sendo este um dos espaços geográficos que mais receberam visitas de Lula durante o seu mandato. 

Em termos gerais, como destaca de Oliveira e Mallmann (2020), neste período as relações com o continente tornaram-se mais densas na esfera diplomática, política e econômica, caracterizada pela ampliação de embaixadas, o desenvolvimento de projetos de Cooperação Técnica, o desenvolvimento de iniciativas multilaterais, e o incremento das trocas comerciais bilaterais. A partir de 2000, também está relacionada a reestruturação das atribuições de instituições nacionais voltadas para as relações exteriores. Bem como menciona Rizzi et. al. (2011), na esfera diplomática, a atuação do Itamaraty passou por uma intensificação com o estabelecimento do Departamento de África, que anteriormente era anexo ao Departamento de Oriente Médio.

 Enquanto no âmbito comercial, observou-se a concessão de maior autonomia ao Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio; do mesmo modo que se desenvolveu a atuação conjunta entre a Câmara de Comércio Exterior e o Conselho Nacional de Exportações. Igualmente, faz-se relevante salientar a articulação feita entre o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e a Agência Brasileira de Promoção de Exportação e Investimentos (Apex) – esta última criada em 2003 – no processo de promoção das relações comerciais com o continente africano.

Oliveira Mallmann (2020) discorre que no governo de Dilma Rousseff (2011-2016) manteve em linhas gerais a abordagem adotada no governo predecessor. Contudo, as mudanças correlatas ao cenário doméstico, tal como a crise econômica interna, redimensionaram o viés dos projetos estabelecidos com o continente, dando ênfase à esfera de defesa. No âmbito comercial, no que tange o volume de comércio, o primeiro mandato de Rousseff registrou estabilidade, totalizando US$ 27 bilhões em 2012, cenário que foi revertido no segundo mandato, em decorrência do declínio das importações africanas de bens brasileiros e o decréscimo das exportações brasileiras levaram a totalizar em 2016 o montante de US$ 12,4 bilhões.

De modo complementar, no governo interino de Michel Temer (2016-2019), por sua vez, identifica-se a retração das iniciativas de cooperação de modo geral, bem como em outras iniciativas de caráter Sul-Sul, voltando-se para a pauta econômica das relações com Estados parceiros. Com isso, no que diz respeito às relações comerciais com a África, durante o governo interino de Temer o volume total do comércio entre Brasil e África em 2019 foi de US $14,7 bilhões.

De acordo com Francisco (2020), a partir de 2016, gradativamente as relações com o continente africano diminuíram em intensidade. A mudança de tom nos diálogos sobre Brasil e África ficaram mais evidentes em 2019, com o início do mandato presidencial de Jair Bolsonaro. Tal redimensionamento estava pautado no entendimento de que a política adotada para a África entre 2002 a 2010, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva era embasada em valores ideológicos. Para tanto, passou-se a apregoar a manutenção de relações estratégicas sem um viés ideológico e um maior alinhamento com os Estados do centro global, tal como os Estados Unidos.

De modo complementar, como corrobora Saraiva e Silva (2019), o início do governo de Jair Bolsonaro (2019 aos dias presentes) para as questões exteriores voltava seu discurso para o fim da ideologia presente nos governos anteriores, mais especificamente durante o governo Lula. O redirecionamento e a ampliação das relações com os Estados Unidos também figuravam neste quadro. Institucionalmente, durante a gestão de Ernesto Araújo na Chancelaria do Brasil (2019-2021), houve a redefinição da agenda do Instituto Rio Branco, englobando pautas sobre globalismo e redução de disciplinas sobre o sul global. A Apex também experienciou diversas mudanças durante o início do mandato de Bolsonaro, com a troca de seu comando na primeira metade do governo, passando por três trocas de presidentes em apenas seis meses.

Francisco (2020) contribui ao ressaltar outros aspectos das relações diplomáticas entre Brasil-África, como a diminuta presença de representantes do continente africano na cerimônia de posse do Presidente Bolsonaro, a mencionar apenas as representações de Angola, Cabo Verde, Guiné e Marrocos. Apesar disto, as conexões históricas não foram deixadas de lado no que se refere aos discursos diplomáticos, para tanto, o então Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo destacou em pronunciamento oficial as raízes históricas da relação entre Brasil e a África, enfatizando o Brasil como berço da maior diáspora africana.

Igualmente, neste mesmo discurso, Araújo (2019) mencionou o potencial econômico presente no Continente, que vem apresentando uma expansão desde de 2000, e ressaltou o interesse brasileiro em fortalecer as relações já estabelecidas e aprofundá-las em face a criação da ZLCCA. Com teor explicativo, o então Ministro mencionou o declínio das trocas comerciais com o continente a partir de 2017, onde totalizaram US $14,92 bilhões, enquanto que em 2018 o montante foi de US $14,77 bilhões. Como forma de reverter este quadro, Araújo mencionou que “[…] na nova visão de política externa que estamos implementando, a dimensão econômica e comercial das relações Brasil-África é fundamental” (ARAÚJO, p. 02, 2019) pretendia-se também aumentar os incentivos às empresas brasileiras a investirem na África, do mesmo modo que a iniciativa privada africana também investisse no território brasileiro.

Como pode ser observado no Monitor do Comércio Exterior, em termos gerais, na comparação entre os meses de novembro de 2020 e 2021, o volume de exportações brasileiras caiu -5,6%, o que representou o quarto maior resultado na série histórica, que computa 287 meses. Em uma perspectiva mais específica, como aponta o Monitor, os setores agropecuário e extrativista tiveram queda (-17,1% e -10,6%, respectivamente), enquanto a indústria de transformação cresceu 1%. Apesar da queda no volume, a África encontra-se entre as regiões que tiveram o aumento do volume exportado, figurando um aumento de 4,2% no mesmo período. Igualmente o Monitor destaca que o preço das exportações aumentou 24,1%, também de acordo com o período supracitado, representando o 5° maior resultado dentro da série histórica.

  De modo amplo, Couto (2020) denota que diversos fatores foram responsáveis pela retração das exportações brasileiras no período, em 2019 a queda registrada foi de 2,4%. Em relação ao desempenho da agropecuária brasileira, que teve um baixo crescimento neste mesmo ano, de 0,6%, que em 2018 foi de 1,3%. Cabe apontar, neste cenário, a fala do Presidente sobre a adoção de medida diplomática de transferir a embaixada de Tel Aviv para Jerusalém também influenciaram esta esfera, gerando reações dos Estados muçulmanos.

Destes países cabe apontar o caso egípcio, que após a colocação de Bolsonaro, emitiu o cancelamento por parte do Egito de uma missão brasileira no país. Ademais, torna-se relevante salientar que no setor agropecuário os países de maioria muçulmana representam um papel relevante no quadro de exportações brasileiras, sendo a Ásia, o Oriente Médio e o continente africano os três principais destinos das exportações brasileiras de carne de frango (GOMES SARAIVA; COSTA SILVA, 2019).

Conclusão

 Compreende-se que as relações desenvolvidas entre o Brasil e o continente africano são permeadas por aspectos históricos e culturais, este fator também pode ser observado no âmbito do pensamento Pan-africanista, de união dos Estados africanos e a sua diáspora. O Brasil, inicialmente, sendo uma das maiores diásporas africanas no mundo, encontrou neste vínculo uma forma de estreitamento dos laços político-diplomáticos, econômicos, cooperativos, entre outros. Para tanto, o artigo se debruçou em buscar os desdobramentos das relações entre Brasil-África face às mudanças conjunturais expostas, a criação da Zona de Livre Comércio Africana e a mudança de governo no Brasil.

O dinamismo dessas relações adquiriu outro tom, acompanhado de mudanças que ocorreram tanto no cenário doméstico brasileiro, quanto nas iniciativas de integração africana. No plano doméstico do Brasil, após um período de intensa interação com os Estados do continente, permeada pelo caráter diplomático presidencial desempenhado por Lula, observou-se a diminuição desse fluxo tanto no âmbito político quanto comercial durante o governo de Dilma Rousseff. Ainda que tenha ocorrido uma recuperação no que se refere às trocas comerciais com o continente no decorrer do governo interino de Temer, os aspectos políticos não receberam a mesma ênfase do que nos períodos anteriores.

Enquanto na primeira metade do governo Bolsonaro, na fala do então Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, as relações políticas e comerciais com a África não seriam negligenciadas, apenas seriam conduzidas sem o dito viés ideológico empregado durante o período de Lula. Contudo, cabe apontar que medidas adotadas comprometeram os diálogos com importantes parceiros comerciais, como exposto ao longo do artigo, colocando em questionamento a abordagem adotada para as relações com relação ao continente e a priorização dos diálogos para o aprofundamento das relações comerciais.

Entretanto, torna-se preponderante apontar a existência de outros fatores a serem observados no que se refere às trocas comerciais, um desses marcos é a Covid-19, que atingiu o mundo em diferentes proporções de forma multidimensional, sem precedentes na contemporaneidade. Sendo que o impacto da pandemia no continente ocorreu também em um cenário de início da operacionalização da ZLCCA, comprometendo os esforços dos Estados Africanos com as questões comerciais quanto sanitárias de prevenção de disseminação da doença.

Em paralelo com o pensamento Pan-africanista, que discorre sobre a promoção do desenvolvimento econômico vinculado à boa governança, pode-se considerar que o caráter político das relações também representa um ponto relevante no aprofundamento e fortalecimento das relações comerciais, ainda que não sejam consideradas as mudanças conjunturais mencionadas acima. Principalmente no que se refere ao papel da diplomacia brasileira e as colocações presidenciais, e os impactos que tais posicionamentos podem causar nos processos de estreitamento ou distanciamento de parceiros.

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