Introdução
Para compreender o papel do Tribunal Penal Internacional, assim como sua primeira sessão em Haia no ano de 2003, faz-se preciso entender primordialmente os eventos que levaram à sua criação. A partir disso é possível analisar quais são seus deveres e direitos perante a comunidade internacional, regras de procedimento e a burocracias adotadas pela instituição. Analisando esses pontos, adquire-se uma visão mais objetiva e clara da magnitude do Tribunal e o feito de sua primeira sessão, foco desse marco e da análise inicial.
Antecedentes
O Tribunal Penal Internacional possui lastros históricos construídos ao longo da história global, especialmente após eventos durante o século XX, como as Convenções de Viena e a intensificação da globalização. Na área das relações internacionais e do direito internacional, instituições como o Tribunal Penal Internacional são o centro da evolução de ambas as ciências (KOREMENOS, 2003) – especialmente a partir da década de 1970. Desse modo, a fim de estudar-se antecedentes de uma instituição internacional, é necessário compreender o contexto global político-social, incluindo, também, a área acadêmica.
No campo acadêmico, os intelectuais da corrente liberal das Relações Internacionais foram os primeiros a destacar a importância da ação das instituições de nível global, atribuindo a essas o papel de construir a paz entre nações (NOGUEIRA, 2005). Após essa corrente de pensamento, outras, como a teoria crítica, também passaram a recortar um maior papel das instituições, atribuindo, desse modo, a dar mais força e legitimidade para as instituições. Paralelamente, ainda há as contribuições e evoluções atribuídas às Convenções de Viena que, em resumo, codificaram o direito internacional através de um design racional (KOREMENOS, 2003).
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Nesse contexto, com o avanço dos debates no campo acadêmico e uma crescente importância das instituições internacionais, surge ainda uma demanda para um novo órgão capaz de julgar crimes globais que são encarados como um crime para a humanidade. Essas demandas podem ser exemplificadas com os conflitos gerados a partir da guerra fria e o conflito da Iugoslávia, provendo o contexto necessário para um avanço do direito internacional (SCHABAS, 2011). E nesse cenário, são realizadas sessões ao longo da década de 1990, juntamente com a Organização das Nações Unidas e organizações não governamentais, para a criação de um estatuto responsável pelo regimento do Tribunal, o Estatuto de Roma, sendo por fim estabelecido e oficializado a criação do Tribunal Penal Internacional (SCHABAS, 2011).
Após sua criação efetiva, ainda era necessário outros procedimentos burocráticos a fim do Tribunal estar apto a aceitar e analisar casos alocados à organização, todos esses demais passos para a formalização da instituição são detalhados por William A. Schabas (2011), onde destaca e detalha as ratificações dos países e a primeira formação da equipe jurídica do Tribunal. Em outra óptica, foi durante os anos seguintes à criação do Estatuto de Roma que a instituição construiu suas dimensões de atuação, como a centralização de suas atividades, regras para controle da instituição (KOREMENOS, 2003) e sua flexibilidade na evolução do direito internacional.
O Estatuto de Roma
É o resultado de inúmeras tentativas de criação de um órgão supranacional que contenha um tribunal internacional. No final do século 19, a comunidade global tomou seus primeiros passos para harmonizar o “direito de guerra”, com o intuito de limitar a utilização de armas tecnologicamente avançadas e evitar conflitos armados catastróficos. Após os eventos da Primeira Guerra Mundial e, sobretudo, após os crimes cometidos durante a Segunda Guerra Mundial, tornou-se ainda mais necessário reafirmar os preceitos básicos para uma civilização democrática e pacífica. Foram os tribunais de Nuremberg que simbolizaram um momento determinante para a criação de um tribunal de exceção permanente, que hoje em dia é o Tribunal Penal Internacional. Os indivíduos que cometessem crimes atrozes seriam julgados pelo Tribunal, de maneira civilizada e com presunção de inocência e direito à réplica e ampla defesa. (HEINZE e DITTRICH, 2017)
Neste contexto, surge o Estatuto de Roma. Ele consiste em um tratado internacional que, após anos de negociação, foi adotado durante uma conferência diplomática das Nações Unidas em 17 de julho de 1998, mas que somente entrou em vigor efetivo a partir de 1 de julho de 2002. O documento estabelece o Tribunal Penal Internacional, definindo suas funções, jurisdições, e estruturas. Em seus artigos 5 a 8, o Estatuto aborda essencialmente quatro crimes internacionais de grande proeminência: a) crimes contra a humanidade, b) o genocídio, c) crimes de guerra, e d) crimes de agressão (BRASIL, 2002).
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É definido que esses crimes deverão ter sido cometidos após 1 de julho de 2002, e que somente serão investigados pelo Tribunal caso o país de origem deles seja incapaz (ou negligente) ao ponto de não julgá-los. A jurisdição territorial abrange todos os países e territórios nos quais o Estatuto foi ratificado. Atualmente, 123 países são Estados-membros do Estatuto de Roma (TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, 2022).
É interessante notar que o único tipo de imunidade prevista é quando o autor do crime possui menos de 18 anos de idade, e nestas condições, não será julgado. Caso seja maior de idade, poderá ser réu. Na prática, isto significa que nem presidentes, chefes de Estado ou altos funcionários estarão imunes aos poderes do Tribunal. Ressalta-se que a Corte é independente da ONU e de seu Conselho de Segurança (NAÇÕES UNIDAS, 2002).
Existem várias disposições contidas no Estatuto de Roma que muitos acreditam dever sua existência aos esforços significativos e à defesa da sociedade civil. Alguns deles incluem: 1) Independência do corpo de promotores e juízes; 2) Jurisdição automática; 3) Referências explícitas à sensibilidade de gênero no direito internacional; 4) A inclusão de crimes de guerra cometidos em situações de conflito armado interno — a chamada “Lei de Conflito Armado Não Internacional” —; 5) Direitos e proteção das vítimas e testemunhas (COALIZÃO PARA O TRIBUNAL CRIMINAL INTERNACIONAL, 2022).
A primeira sessão
Na sede das Nações Unidas, localizada em Nova Iorque, entre os dias 3 a 7 de fevereiro de 2003, ocorreu a primeira sessão da assembleia dos Estados-membros do Tribunal Penal Internacional. Os encontros contaram com a participação de 85 países que ratificaram o Estatuto de Roma, além de Estados observadores que submeteram sua ratificação após 30 de novembro de 2002, representantes de organizações intergovernamentais e membros da ONG “Coalizão para o Tribunal Criminal Internacional” (INTERNATIONAL SERVICE FOR HUMAN RIGHTS, 2003).
Durante a primeira sessão, os Estados-membros selecionaram 18 juízes (7 mulheres e 11 homens) para presidir o Tribunal. De acordo com o Embaixador Príncipe Zeid Al-Hussein, da Jordânia, “foi um longo processo, mas asseguramos que a bancada represente todas as regiões e tenha uma representação feminina significativa”. Dentre os juízes eleitos, havia uma brasileira, a jurista paulistana Sylvia Helena de Figueiredo Steiner (INTERNATIONAL SERVICE FOR HUMAN RIGHTS, 2003).
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Todos os juízes selecionados foram pioneiros da justiça internacional e tinham como responsabilidade estabelecer o campo de trabalho do Tribunal. Conforme os artigos 36 e 37 do Estatuto de Roma, os juízes devem preencher uma série de requisitos, dentre os quais destacam-se a imparcialidade, integridade e alto caráter moral, além de deverem ter domínio e expertise em áreas distintas do direito internacional. Ao final das sessões inaugurais, a Assembleia discutiu as propostas para encontros do Grupo de Trabalho Especial sobre o Crime de Agressão, bem como a nomeação do Auditor Exterior e de cargos para o Comitê de Finanças do Tribunal (INTERNATIONAL SERVICE FOR HUMAN RIGHTS, 2003).
Referências bibliográficas
BRASIL. Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002 promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Brasília, 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm. Acesso em: 22 de jan. 2022.
COALIZÃO PARA O TRIBUNAL CRIMINAL INTERNACIONAL. Our Story: Against All the Odds. Nova Iorque, 2022. Disponível em: https://www.coalitionfortheicc.org/about/our-story. Acesso em: 22 de jan. 2022.
HEINZE, Alexander; DITTRICH, Viviane E. (Org). The Past, Present and Future of the International Criminal Court. Torkel Opsahl Academic EPublisher, Bruxelas, 2021. Disponível em: https://www.toaep.org/nas-pdf/5-dittrich-heinze. Acesso em: 22 de jan. 2022.
INTERNATIONAL SERVICE FOR HUMAN RIGHTS. First Resumption of the First Session of the Assembly of States Parties to the International Criminal Court: Nova Iorque, 2003. Disponível em: http://olddoc.ishr.ch/hrm/archive/ICC-1stResumption1stSession.pdf. Acesso em: 22 de jan. 2022.
KOREMENOS, Barbara et al. The Rational Design of International Institutions. Cambridge University Press, [s. l.], 2003.
NAÇÕES UNIDAS. United Nations Diplomatic Conference of Plenipotentiaries on the Establishment of an International Criminal Court: Nova Iorque, 2002. Disponível em: https://legal.un.org/icc/rome/proceedings/E/Rome%20Proceedings_v1_e.pdf. Acesso em: 22 de jan. 2022.
NOGUEIRA, João. Teoria das Relações Internacionais. [S. l.]: GEN Atlas, 2005. 264 p.
SCHABAS, William. An Introduction to the International Criminal Court. Cambridge University Press, [s. l.], 2011.
TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL. States Parties – Chronological list. Assembly of States Parties, 2022. Disponível em: https://asp.icc-cpi.int/en_menus/asp/states%20parties/Pages/states%20parties%20_%20chronological%20list.aspx. Acesso em: 22 de jan. 2022.