Recentemente, Israel e Palestina, mais uma vez, entraram em um conflito armado. Dado a desproporcionalidade dos danos causados aos palestinos, o mundo todo se manifestou. Um conflito histórico situado na região do Levante, diretamente relacionado à diversos países ao redor do mundo, mas que, neste breve ensaio, será compreendido de forma sucinta a partir da relação entre Arabia Saudita e Irã – potências regionais do Golfo Pérsico, reconhecidas como atores-chaves da Guerra Fria do Oriente Médio.
Complexo Regional de Segurança (CRS): o porquê da análise
A teoria dos Complexos Regionais de Segurança de Buzan e Waever (2003) foi criada em meados de 1980 a partir da introdução da Escola Construtivista nas Relações Internacionais. É uma teoria que visa a incorporação de preceitos neorrealistas de autores como Waltz e Mearsheimer, em conversação com temas da sociologia – padrões de amizade e inimizade, questões identitárias e sociais, pautados por Alexander Wendt (1999, p.246)
Buzan e Waever (2003, p.43) reconhecem que o nível mais apropriado para se analisar dinâmicas securitárias seria o regional. Desta forma, todos os conflitos entre os mais variados atores do Sistema Internacional podem ser compreendidos de forma mais local. Há o reconhecimento de que grandes potências mundiais, não situadas nas regiões pelas quais ocorrem tais relações, impactam as dinâmicas securitárias, mas os atores localizados nesses limites territoriais seriam os agentes centrais das análises.
De modo geral, os complexos regionais são formados por Estados ou entidades que se relacionam de forma consideravelmente direta, não havendo a possibilidade de separar temáticas securitárias de forma individualizada (BUZAN; WAEVER, 2003, p.43). A proximidade geográfica entre eles torna as relações potencializadas, fazendo com que ameaças securitárias de um país se torne temática para todos os atores na região. Para além disto, de forma ainda mais localizada, há mais uma subdivisão: os Subcomplexos Regionais de Segurança. Mais especificamente no Oriente Médio, e sendo essencial para se compreender a dinâmica securitária dos atores aqui pautados, há o reconhecimento de três sub-regiões: Magrebe, Golfo Pérsico e Levante.
O subcomplexo de Magrebe, reconhecido como parte do continente africano, é constituído por Líbia, Saara Ocidental, Marrocos, Tunísia e Argélia. O Subcomplexo Levante é constituído por Israel, Palestina, Síria, Egito, Jordânia e Líbano. Já o Golfo tem por integrantes a Arábia Saudita, Irã, Iraque, Omã, Emirados Árabes, Catar, Kuwait, Bahrein, Iêmen e Síria como países periféricos envolvidos na dinâmica securitária da região. Essas regiões possuem dinâmicas únicas entre si, contudo, dado os diversos fatores que determinam as relações estatais nessa parte do continente asiático, um subsistema pode impactar de forma determinante em outro.
Este é o caso do Golfo e Levante. Devido a duas grandes potências regionais situadas no extremo do mar arábico, ambos subsistemas se relacionam de forma direta. Tendo as dinâmicas securitárias do Golfo Pérsico fortemente influenciada por Irã e Arábia Saudita, e às motivações identitárias, religiosas e estratégicas (parcerias extrarregionais), as políticas e estratégias formuladas dentro deste subcomplexo transpassam para as regiões ao redor que são conectadas com uma ou mais das motivações pautadas acima.
Buzan e Waever (2003, p.190) delimitam que as maiores dinâmicas no Golfo e Levante seriam as disputas entre Irã e Arábia Saudita, e entre Palestina e Israel. Dado o processo de expansão israelense, e a conquista de cidades essenciais aos mulçumanos, como Jerusalém, o conflito entre ambos atores foi incorporado na relação entre os países do Golfo. O mundo árabe se posiciona contrário a Israel, e essa comunidade é fortemente representada pelo Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), que possui como um dos mais importantes líderes a Arábia Saudita. Sendo assim, com um aparato geral da teoria evidenciando a possibilidade de se avaliar tal conflito a partir de dois atores não relacionados diretamente à ambos os países, prosseguimos com a contextualização da dinâmica securitária.
Um breve contexto da guerra entre Israel e Palestina
A Guerra entre judeus e árabes foi introduzida ainda no início do século passado, quando o movimento sionista, fundado por Theodor Herzl, ganhou forças e passou a reivindicar um território próprio aos judeus, dando início aos processos de migração de povos israelitas à Palestina e à expansão territorial. Ainda na Primeira Guerra Mundial, a Liga das Nações responsabilizou o Reino Unido de administrar a região que a pouco fazia parte do Império Otomano. Com o fim do Império, o movimento sionista se fortaleceu e os confrontos entre árabes e judeus aumentou.
A divisão da região entre britânicos e franceses impossibilitava ainda mais possíveis resoluções do conflito entre ambos os povos visto o comprometimento dessas potências com o sionismo, ao mesmo tempo em que visavam a garantia de independência dos países árabes. O gerenciamento britânico sobre o território palestino deu base para o surgimento de um território israelita ao firmar instituições pró-judaica dentre os poderes executivo e legislativo na palestina (GOMES, 2001, p.25)
Com a chegada da Segunda Guerra Mundial, o movimento extremista antissemita presente no governo de Hittler culminou no extermínio e no refúgio de judeus para fora da Europa, que em sua maioria seguiu para a Palestina. Dado os horrores da Guerra contra este povo, e o que já havia se iniciado ainda no século XIX com o sionismo, em 1948, a ONU proclamou a criação do Estado de Israel dentro da Palestina. Com seu surgimento, países integrantes do Levante iniciaram uma guerra contra Israel, resultando na diminuição do território palestino devido ao grande apoio de potências ocidentais ao recém-criado Estado.
O confronto se estendeu ao longo de décadas, mas o que definiu a expansão e força de Israel foi a Guerra dos Seis Dias em 1967. Tal confronto resultou na ocupação israelense da Faixa de Gaza e partes dos territórios do Egito, Síria e da Jordânia (região da Cisjordânia). Além disso, houve um aumento significativo no número de refugiados palestinos, aqueles que não se refugiaram ficaram sob o comando do recém-criado governo. Israel chegou a ocupar o restante da cidade de Jerusalém, considerada sagrada para judeus e islâmicos, definindo-a como sua capital.
É necessário evidenciar que muitos países não reconhecem tal caracterização de Jerusalém como capital israelense. Principalmente por se tratar de uma cidade sagrada dos mulçumanos árabes, apesar de reivindicar a cidade como sede do governo, internacionalmente não há o reconhecimento mútuo sobre qual dos dois Estados a teria como capital. Donald Trump, ao longo de seu mandato, chegou a reconhecer a cidade como capital israelense, porém, de acordo com o Plano de Partição de 1947, a cidade estaria sob o comando internacional dado seu reconhecimento como cidade sagrada.
Israel foi se expandindo de forma a diminuir drasticamente o território palestino, a partir de assentamentos, levando a grande quantidade de refugiados palestinos expulsos de suas terras. Em consequência, houve a diminuição da qualidade de vida deste povo, expondo-os à situação precária e de extrema pobreza. Os assentamentos israelenses, reconhecidos como ilegais pela ONU (1997, p.26), aumentam cada vez mais, provocando a revolta e contra-ataques de palestinos e grupos armados fundados para fazer frente à Israel (a exemplo Hamas, considerado por alguns países ocidentais e Israel como grupo terrorista). Tais grupos, considerados terroristas, seriam o motivo dado por Israel pelos ataques em 2021. Segundo representantes de Estado, os bombardeios possuem finalidade de destruir instalações terroristas, atuando de forma a defender seus cidadãos, e qualquer outro local atingido seria consequência não-intencional.
A expansão não se limitou apenas territorialmente. Atualmente, Israel se constitui como uma grande hegemonia no Levante graças à sua relação com os Estados Unidos, grande aliado que fornece suporte militar. Nas duas últimas décadas, o financiamento militar estadunidense para Israel corresponde a 55,4% de todo suporte dado aos países do Oriente Médio. Só em 2020, os Estados Unidos contribuíram com 3,8 bilhões de dólares. De acordo com o jornal Al Jazeera, esse valor é duzentas vezes maior que o oferecido ao Estado palestino. Ademais, Israel não apenas possui grandes parceiros para importação de armamentos (França, Alemanha, Estados Unidos e Reino Unido), como também é um grande exportador de artefatos militares, com exportações frequentes aos países latino-americanos e do sul e sudeste asiático.
Essa hegemonia israelense, contudo, não seria pautada de forma unilateral. Há diversos atores dentro do Complexo do Oriente Médio que visam uma reparação dos avanços territoriais de Israel. No Levante, Egito, Síria e Turquia (que possui uma pequena porção de terra situada na região) são os três Estados que visam equilíbrio de poder no subcomplexo. Já na relação inter-regional, o mundo árabe se posiciona contra as investidas israelenses na Faixa de Gaza e na região da Cisjordânia. No contexto específico de Guerra Fria do Oriente Médio, definição dada por Gregory Gause (2014, p.3), Arábia Saudita e Irã também possuem relações únicas com ambos atores do Levante.
Guerra Fria do Oriente Médio: posicionamento saudita e iraniano
De acordo com Buzan e Waever (2003, p.190), o compartilhamento simbólico do arabismo e do Islã possibilitou que a dinâmica local entre Israel e Palestina fosse incorporada no Complexo mais abrangente do Oriente Médio. Dentre os países que mais contribuem nesse confronto geopolítico, situam-se Irã e Arábia Saudita que oferecem apoio retórico, financeiro e, até mesmo, militar aos envolvidos. Ambos os países estabeleceram uma Guerra Proxy no subcomplexo do Golfo que afeta diretamente diversos países que se localizam dentro das estratégias políticas de ambos.
A começar por Irã, considerado pelos Estados Unidos como o maior financiador do terrorismo na região, o país demonstra claro apoio aos grupos armados pró-palestina, dentre eles o Hamas e a Frente Popular para Libertação da Palestina. Mais especificamente ao Hamas, o país promoveu, ao longo dos dez primeiros anos de 2000, treinamentos, armamentos e suporte logístico, questionando a falta de apoio dos regimes árabes ao ator não-estatal, que reconhece como representante do povo palestino.
Apesar de negociações com Israel no final de 2010, nos últimos anos pode-se observar novamente uma relação direta entre o grupo e o regime de Teerã. No recente conflito entre Israel e Palestina, o governo israelense reportou que o Irã negociou suporte financeiro ao Hamas em troca de informações sobre a capacidade militar de Israel. Ademais, Hossein Salami (comandante da Guarda Revolucionária) declarou publicamente o apoio aos palestinos, posicionando-se neste conflito.
Em contrapartida, a Arábia Saudita possui uma complexa relação com esse confronto no Levante. Como já visto acima, os Estados Unidos são um grande aliado de Israel, contribuindo militar e financeiramente, porém, o país também é considerado o maior aliado saudita no Golfo Pérsico. Com a grande instabilidade do Golfo provocada pela disputa geopolítica saudita-iraniana, fomentando governos e atores não-estatais em países vizinhos à conflitos, o reino saudita é visto pelos EUA como potência capaz de contrapesar a influência iraniana apoiada por Iraque e Síria. Ao mesmo tempo, o reino é um grande representante das monarquias árabes que se posicionam contrárias à atuação de Israel.
O príncipe saudita, Mohammed Bin Salman, em 2018, reconheceu o direito dos judeus de possuírem uma terra para si e, portanto, estaria aberto para intensificar as relações com os países do CCG após acordos de paz, firmados a partir da demarcação de territórios israelenses de 1967, anterior à Guerra dos Seis Dias. Contudo, é evidente a falta de consenso, não apenas não houve devolução de terras conquistadas, como o número de assentamentos cresceram. Sua guerra com o Irã, tendo-o como rival de Israel, fez com que o reino visasse sua aproximação com os países do Conselho de Cooperação de forma a estabelecer uma parceria contra Teerã. Gadi Eizenkot, comandante militar israelense, havia oferecido aos sauditas informações acerca do governo iraniano. Essa aproximação entre os dois atores foi fortemente influenciada pelo governo estadunidense.
Em um claro jogo político, Mohammed Bin Salman não escolheu lados. Agradando seu maior parceiro extrarregional, buscou se aproximar de Israel, mostrando-se mais aberto para diálogo e futuras parcerias para fortalecimento da frente contra o Irã. Por outro lado, reafirmou também que os palestinos possuíam o direito de seu Estado independente, tendo Jerusalém como sua capital.
No início de 2021, Israel chegou a propor um cinturão de segurança contra o regime iraniano a partir de parcerias com países árabes. Contudo, antes mesmo de se pensar os contras de tal parceria, como, por exemplo, o fortalecimento do Hamas e do Irã dado o entendimento palestino de perda dos parceiros do mundo árabe, o novo conflito entre os atores do Levante mudou o rumo. A Arábia Saudita teve de estabelecer uma postura mais assertiva desta vez. Ainda em maio, o Ministro das Relações Exteriores do reino convocou a comunidade internacional de forma a reprimir as operações militares na Faixa de Gaza e no leste de Jerusalém.
O que vem sendo caracterizado como limpeza étnica para mudança demográfica pelos palestinos, chegou ao reino saudita como alerta à comunidade árabe. Apesar de terem demorado para responder ao confronto entre Israel e palestinos, em comparação com o Irã, no mês de junho, os sauditas juntamente com Omã e Emirados Árabes rejeitaram a proposta de Israel de despejo de famílias palestinas de Jerusalém. Desta forma, Arábia Saudita permanece como ator indefinido nessa disputa palestino-israelense. Com a Guerra Fria paralela ao contexto do Levante, mas ao mesmo tempo determinante para o país adquirir aliados contra o Irã, não há uma saída mais fácil para a monarquia.
Considerações finais
A Arábia Saudita poderia permanecer menos envolvida nesse conflito de forma a não desagradar a comunidade árabe e ao mesmo tempo manter-se aberta a futuras relações estratégicas com Israel. Contudo, como já evidenciado, um possível alinhamento de governos poderia resultar em maior instabilidade no Complexo de Segurança do Oriente Médio, afetando diretamente o equilíbrio de poder no subcomplexo do Golfo já em confronto entre os países do CCG e Irã, Iraque, Síria e milícias xiitas dentro das monarquias árabes. Por outra via, uma postura mais assertiva que a de notificar repúdio aos ataques, afetaria relações com países ocidentais, consagrados parceiros econômicos do reino.
O subcomplexo do Golfo é fortemente influenciado pelas relações com o Levante, assim como foi em relação ao Magrebe na Primavera Árabe. Com o foco de conflitos mudando, e dada a complexidade das relações entre os atores, as estratégias políticas na região devem ser cuidadosamente pensadas. Podemos, então, compreender um pouco da dificuldade de se estabelecer políticas exatas em confrontos, desta proporção, consideravelmente repentinos.
Por fim, o Irã é, juntamente com a Síria, o país do Golfo que se coloca de forma direta como contrário a Israel. Visto como potência regional revisionista, há muito menos a perder se posicionando como apoiador dos grupos armados e palestinos. Suas relações já instáveis com monarquias árabes, as diversas sanções pelas quais está sujeito na região, faz com que ganhe mais aliados se optar pelo fortalecimento dos pró-palestinos. Diversos países árabes condenaram a ação de Israel pelo ataque no mês de Ramadã (sagrado mês previsto no quarto pilar do islã), mas não há aproximação destes com a república iraniana. Os aliados visados seriam entes não-estatais, como grupos extremistas, milícias armadas, movimentos contrários aos governos etc- algo já característico da estratégia política iraniana revisionista.
Referências bibliográficas:
BUZAN, Barry; WAEVER, Ole. Regions and Power: The Structure of International Security. Estados Unidos da América: Cambridge University Press, 2003. 564 p. ISBN 978-0-511-07663-3.
GAUSE, F. Gregory. Beyond Sectarianism: The New Middle East Cold War. Foreign Policy at Brookings: Brookings Doha Center, Whasington, n. 11, p. 1-33, Jul/2014.
WENDT, Alexander. Social theory of international politics. Cambridge: CUP, 1999.Caps. 6. ISBN 0 511 02166 6.GOMES, Aura R. Gênese do Conflito: O mandato Britânico na Palestina. In: GOMES, Aura R. A Questão da Palestina e a Fundação de Israel. Orientador: Doutor Leonel Itaussu Almeida Mello. 2001. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. f. 142.