A Guerra do Vietnã, um exemplo de conflito com inúmeras denúncias de crimes de guerra, foi a segunda e mais intensa fase da guerra da Indochina. Territórios da Indochina (Vietnã, Laos, Camboja) eram disputados por metrópoles europeias e pelos Estados Unidos (HAI, 2017). No início da disputa (1946), os EUA ainda não haviam entrado no conflito, envolvendo-se diretamente apenas a partir de 1965. Durante este envolvimento, houveram inúmeras denúncias de crimes cometidos por seus soldados, que intensificaram com a Investigação Soldado Invernal aberta por veteranos envolvidos na guerra. Vamos abordar resumidamente o que foi a Guerra do Vietnã, a participação dos EUA e seus crimes de guerra, a Investigação Soldado Invernal, como se deu estas denúncias e como foram abordadas.
A Guerra do Vietnã
A Guerra do Vietnã foi constituída ao longo dos séculos por guerras de resistências com participação de variadas nações estrangeiras. No começo, o Vietnã foi ocupado pela China por um longo período; logo depois, o país atraiu ambições européias, principalmente francesas. No ano de 1893, a França incorporou o Laos e o Camboja ao Vietnã e criou um território que foi conhecido como Indochina Francesa. Já no período da Segunda Guerra Mundial, o Japão invadiu os territórios da Indochina Francesa, mas, mesmo com esta invasão, o território permaneceu sob a administração da França. Essa entrou em conflito com o Japão, conhecida como a Primeira Guerra da Indochina, que ocorreu do ano 1946 até o Acordo de Genebra em 1954 (SILVA, 2019). Dessa forma,
“A Primeira Guerra da Indochina durou nove anos, e acabou com as mais de seis décadas de dominação colonial francesa na região. Enfrentando um inimigo muito eficiente na batalha, os franceses sofreram derrotas esmagadoras e contavam com pouco apoio interno” (WIEST; MACNAB, 2016, p. 6).
No Acordo de Genebra de 1954, foi regularizada a retirada dos franceses do Vietnã, e o país foi dividido ao meio: Vietnã do Norte, com a capital Hanói, e Vietnã do Sul, com a capital Saigon. Com isso, a França abdicou de suas reivindicações quanto à jurisdição vietnamita. Entre as fronteiras do Vietnã do Norte e Sul, foi colocada uma zona desmilitarizada, região considerada neutra e com 10 km de território, a qual não podia ser violada (SILVA, 2019).
Na divisão do Vietnã, o Norte foi liderado por Ho Chi Minh, o qual transformou o país em comunista. Já na parte Sul, liderava o capitalista Bao Dai, último imperador do Vietnã e que, neste momento, já contava com apoio econômico dos Estados Unidos. Essa divisão, como mencionado anteriormente, foi realizada na conferência de Genebra em 1954. Em contrapartida ao apoio dos EUA ao Sul, o Norte recebe apoio chinês e soviético: os dois lados defendiam a independência do Vietnã e sua unificação, mas cada um defendia o seu viés ideológico, não entrando em consenso (SILVA, 2019).
Também no Acordo de Genebra, foi definido a realização de eleições livres que ocorreriam no ano de 1956, para formar um governo que promovesse a unificação do Norte com o Sul, mas o governo do Vietnã do Sul recusou por ver maior popularidade do governo socialista de Ho Chi Minh, com maior intenção dos votos. Por já estar enfraquecido pela má administração pública, o governo capitalista não conseguiria apoio suficiente para se fortalecer e lutar contra os comunistas, beneficiando o governo de Ho Chi Minh, consequentemente (SILVA, 2019).
No início de 1955, o Norte e o Sul ampliaram as campanhas um contra o outro e atraíram maior apoio de seus aliados internacionais. O Vietnã do Norte contou com o apoio da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e da China, enquanto, no Vietnã do Sul, o apoio foi dos EUA, Austrália e Coreia do Sul. Esse período desencadeou novos conflitos, onde foi declarado oficialmente o apoio do Vietnã do Norte à Frente de Nacional de Libertação do Vietnã do Sul (FNL), ou vietcongs, a qual era uma frente política e militar de oposição ao governo de Diem (SILVA, 2019).
Participação dos Estados Unidos
Em 1964, o governante do Sul, Diem Bien Phu, foi derrubado paralelamente no mesmo período houve a morte do então presidente dos EUA, John F. Kennedy. Dessa forma, seu vice, Lyndon Johnson, ocupou a presidência dos EUA e assumiu uma nova postura no conflito no Vietnã, enviando tropas para atuarem diretamente na guerra (SILVA, 2019).
Neste momento, os Estados Unidos decidem se envolver diretamente na Guerra, não mais só fornecendo armas e conselheiros estratégicos para o governo capitalista do Vietnã do Sul, mas também enviando tropas no combate à FNL. O pretexto utilizado foi o Incidente do Golfo de Tonquim, no qual o navio contratorpedeiro USS Maddox foi supostamente atacado pela marinha norte-vietnamita (SILVA, 2019). Segundo Paulo Visentini,
Além dos objetivos geopolíticos de Washington na Ásia e do “combate ao comunismo”, a guerra visava a neutralizar as revoluções do Terceiro Mundo, reforçar a hegemonia norte-americana sobre seus próprios aliados (que começavam a se preocupar mais com os negócios que com a Guerra Fria), além de dar vazão à indústria armamentista e estimular a economia dos Estados Unidos (VISENTINI, 2008, p.46).
Dessa forma, a partir de 1965, o Vietnã foi ocupado por 60 mil soldados sul-coreanos, filipinos, australianos e neozelandeses, e pelas tropas estadunidenses. Essas que, antes, somavam 25 mil, chegaram a 600 mil soldados (ou GIs) em 1968. Entre esses, 15 mil eram soldados de elites pertencentes à 1ª Divisão de Cavalaria Aerotransportada, a qual possuía helicópteros ultramodernos e o maior heliporto do mundo na época, An Khe, com 5 km de largura por 7 km de extensão. Ainda, foram instalados super bombardeiros B-52 em várias bases do Vietnã do Sul e da Tailândia (VISENTINI, 2008).
Diante disso, a FNL necessitou se fortalecer para conseguir enfrentar o exército estadunidense, o qual possuía melhor preparação e armas mais modernas. Para isso, foram-lhe enviadas armas modernas soviéticas, chinesas e checoslovacas, tal como fuzis AK-47, lança-foguetes portáteis de 109, 122 e 140 milímetros (com precisão de 9 a 14 quilômetros) e os tanques PT76 e T34. Ainda, os vietcongs adotaram uma tática de guerra popular: concentravam-se nos ataques à retaguarda inimiga, fazendo com que a frente de combate se encontrasse em todos os lugares, e atacavam os postos do inimigo incessantemente, ou seja, ataques com efetivos limitados a pontos estratégicos. Também se beneficiaram do bioma vietnamita, já que o exército estadunidense não estava acostumado a lutar entre água, lodo, florestas, insetos e guerrilheiros. Por fim, talvez a tática vietnamita mais notável, as “trincheiras que marcham”, túneis por onde os vietcongs desapareciam quando cercados do inimigo e reaparecem atacando-o pela retaguarda (VISENTINI, 2008).
Os EUA não estavam preparados para combater uma guerrilha, uma vez que acostumados com a estratégia de uma batalha “clássica”, além de “apregoavam a fraqueza da guerrilha, ‘uma minoria radical sem base popular e capacidade militar”’ (VISENTINI, 2008, p.51). Por consequência, em 1967, os EUA abandonam a estratégia search and destroy (procurar e destruir) e adotam a clear and hold (limpar e ocupar), isto é, “não podendo matar todos os soldados inimigos, não hesitaram em eliminar o povo que os apoiava, e sendo esta uma tarefa difícil, chegariam a ponto de destruir a própria natureza da qual estes viviam” (VISENTINI, 2008, p.47)
Importante mencionar a Ofensiva do Tet, de 1968, na qual a guerrilha da FNL atacou simultaneamente várias cidades do Vietnã do Sul e as maiores bases estadunidenses. No entanto, as forças estadunidenses conseguiram matar 20 mil vietcongs e reconquistar as cidades, sendo que na cidade de Hué foram necessários 25 dias de combate para expulsar os vietcongs (Ibidem, 2008). Isso marca um período em que os vietcongs perderam muitos guerrilheiros, de modo que o Exército do Vietnã do Norte (EVN) assumiria como principal força contrária ao Sul (SILVA, 2019).
Por outro lado, logo após a Ofensiva do Tet, os EUA sofrem diversos obstáculos que põem em risco sua estratégia: as revoltas estudantis e algumas manifestações operárias contra a guerra, a maior atenção das forças mundiais em relação ao conflito e à atuação dos EUA, a degradação da situação econômica estadunidense em razão das excessivas despesas com a guerra, que começam a desgastar o orçamento. Nesse contexto, os estadunidenses começam conversações de pacificação em Paris três meses depois (VISENTINI, 2008).
Porém, em 1969, Richard Nixon é eleito presidente dos EUA com uma política de vietnamização do conflito, isto é, “ampliar, equipar e treinar as forças do Vietnã do Sul e atribuir-lhes cada vez mais um papel de combate, ao mesmo tempo com uma redução gradual do número de tropas de combate dos EUA”. O motivo seria a deterioração interna do exército estadunidense, visto que a moral dos soldados encontra-se baixa a ponto de ocorrerem certos motins. Ainda, em 1969, cerca de 30% dos soldados estão viciados em drogas, que, em 1971, chega a 60% (VISENTINI, 2008). Adicionado a isso, estão os crescentes protestos pacifistas e a crise econômica mundial e estadunidense.
Nesse cenário, Nixon retoma as conversações de Paris ao mesmo tempo que a FNL se beneficia da distração das forças inimigas para assegurar politicamente o que havia obtido no campo de batalha (VISENTINI, 2008). Assim,
em 27 de janeiro de 1973 são assinados os Acordos de Paris, prevendo o cessar fogo imediato, a retirada dos soldados norte-americanos em sessenta dias, o reconhecimento da existência de duas administrações e dois exércitos no Vietnã do Sul (o de Saigon e o do Governo Revolucionário Provisório), a constituição de um governo de coalizão e a realização de eleições gerais no país (VISENTINI, 2008, p.56).
Sem o apoio estadunidense, o Vietnã do Sul não consegue conter as tropas comunistas, e, em 1975, os vietcongs conquistam a cidade de Saigon e realizam a unificação do Vietnã sob comando dos comunistas em 1976, representando a primeira vez que o Estados Unidos perdera uma guerra em sua história (SILVA, 2019).
Crimes de guerra
A Convenção de Genebra corresponde a vários tratados internacionais, assinados entre 1864 e 1949, que listam os casos considerados como “crimes de guerra”, a fim de proteger os indivíduos não envolvidos nos conflitos – civis, médicos, prisioneiros de guerra e soldados fora de combate –, e punir os Estados que violem seus direitos humanos. Mesmo tendo assinado a Convenção de Genebra em 1949 e a ratificado em 1955, os Estados Unidos não só permitiu que seu exército praticasse crimes de guerra no Vietnã, como também incentivou.
Segundo Paulo Visentini (2008), os EUA despejaram 7,5 milhões de toneladas de bombas sobre a Indochina somente em sete anos (duas vezes o que os EUA usaram em toda a Segunda Guerra Mundial e 11 vezes o que foi usado na Coreia). Em sua monografia, Hugo Siqueira e Silva expõe 4 casos de crimes de guerra cometidos pelos EUA: a execução do prisioneiro de guerra Nguyen Van Lem; o ataque aéreo sobre aldeia Trang Bang; o massacre de My Lai; e o rapto e estupro de Phan Thi Mao (VISENTINI, 2008).
Primeiramente, o chamado “Incident on Hill 192”, ocorrido em 19 de november 1966, refere-se ao rapto e estupro de uma jovem vietnamita chamada Phan Thi Mao. Segundo Silva, “uma patrulha de cinco soldados americanos raptou uma jovem que dormia em sua aldeia, localizada no Sul do Vietnã, e obrigou a vítima a marchar com eles durante dias e, em seguida, estuprou e a matou a jovem, abandonando o corpo no meio da selva vietnamita” (SILVA, 2019, p.56). Segundo o artigo 76º do II Capítulo da Convenção de Genebra, “o tratamento em defesa de mulheres em campo de batalha deveria ser motivo de um respeito especial e que estas deveriam ser protegidas nomeadamente contra a violação, a prostituição forçada e qualquer outra forma de atentado ao pudor” (Art. 27, Geneva Convention IV, 1949, apud SILVA, 2019, p.56).
Execução de Nguyen Van Lem. Foto: Eddie Adams/AP / World Press Photo
Ainda, em 1º de fevereiro de 1968, durante a Ofensiva do Tet, o Coronel chefe da Polícia Nacional do Vietnã do Sul, Nguyen Ngoc Loan, executa Nguyen Van Lem, um suposto oficial vietcong e tomado como prisioneiro de guerra, em Saigon. Mesmo que o perpetuador do crime fosse uma autoridade do Vietnã do Sul, nota-se que os EUA eram os responsáveis por liderar e organizar a estratégia das forças sul-vietnamitas, de modo que, com esse ato, ferissem a 13º artigo da III Convenção de Genebra, que regulamenta a forma de tratamento a ser dispensada aos prisioneiros de guerra (SILVA, 2019).
Já o massacre de My Lai, em 16 de março de 1968, conduzido pelo tenente William Calley, massacrou cruelmente 567 pessoas, todos civis desarmados – velhos, mulheres e crianças –, em março de 1968. O evento foi encoberto pelo exército estadunidense, chegando ao conhecimento público somente um ano depois. Em 1971, o tenente Calley foi condenado a dez anos de prisão, mas foi libertado em apenas um mês (VISENTINI, 2008).
Por fim, em 8 de junho de 1972, a aldeia Trang Bang é atacada por caças-bombardeiros que jogam bombas com napalm, um conjunto de líquidos inflamáveis à base de gasolina gelificada (imagem de capa). Entre as vítimas da aldeia, composta por civis desarmados, estavam idosos, mulheres e crianças, em especial Phan Thi Kim Phúc, menina de nove anos que teve suas roupas e corpo queimados. Assim, os EUA violavam também o artigo 3º da IV Convenção de Genebra, que discorre sobre a proteção de civis (SILVA, 2019).
Investigação Soldado Invernal
Tendo vivenciado esses crimes de guerra, tanto como espectadores passivos quanto agentes ativos, muitos soldados estadunidenses que voltavam da Guerra do Vietnã tornaram-se contrários à guerra, de modo que, em 1967, começaram uma organização anti-guerra, o “Vietnam Veterans Against the War (VVAW)”, ou Veteranos do Vietnã Contra a Guerra.
Antes da Investigação Soldado Invernal, o VVAW organizou, entre 4 e 7 de setembro de 1970, a Operação RAW (“Rapid American Withdrawal”, ou Retiro Americano Rápido), uma marcha de protesto saindo Nova Jersey indo até Pensilvânia que contou com a presença de 200 veteranos de guerra. Segundo Andrew Hunt,
Enquanto sentavam ao redor das fogueiras noturnas durante a Operação RAW, veteranos compartilharam histórias sobre o Vietnã. Para muitos deles, falar sobre a guerra marcou o início de um longo processo de cura. Seus relatos geralmente tratam de morte, dor e culpa. A maioria dos participantes simplesmente não conseguiu conciliar suas ações no Vietnã com seus códigos individuais de ética e humanidade. Foi uma constatação preocupante, mas os manifestantes descobriram que não estavam sozinhos. Outros sentiram o mesmo remorso. No processo de descrição de suas experiências, os veteranos concluíram que atos de brutalidade não eram necessariamente aberrações isoladas, mas os resultados inevitáveis da política militar dos EUA no Sudeste Asiático. Os líderes do VVAW compreenderam o intenso poder emocional das lembranças dos membros. Ativistas no escritório nacional acreditavam que tais histórias, se apresentadas em um fórum apropriado, poderiam transmitir a tragédia e a falta de sentido da guerra (HUNT, 2009, p.55).
Com o sucesso da Operação RAW, o VVAW se aliou à Comissão Cidadã de Inquérito sobre Crimes de Guerra dos Estados Unidos no Vietnã (“Citizens’ Commission of Inquiry on U.S. War Crimes in Vietnam”, CCI) para organizarem uma audiência de três dias sobre os crimes de guerras testemunhados pelos veteranos, chamada Investigação Soldado Invernal (‘Winter Soldier Investigation”, WSI) (HUNT, 1999). O nome “Soldado Invernal” foi baseado em um trecho de “The American Crisis”, de Thomas Paine: “Estes são os tempos que testam as almas dos homens. O soldado do verão e o patriota radiante irão, nesta crise, se esquivar do serviço ao país; mas aquele que está de pé agora merece o amor e a gratidão de homem e mulher” (HUNT, 1999, p.59) O objetivo da investigação, segundo o direto do VVAW na época, Joe Urgo, era “demonstrar que os crimes de guerra no Vietnã – massacres, tortura de prisioneiros e emprego de armas químicas e biológicas proibidas por tratados internacionais – eram o resultado inevitável das políticas militares americanas no Sudeste Asiático” (HUNT, 1999, p.69).
O inquérito público da WSI ocorreu entre 31 de janeiro e 2 de fevereiro de 1971, em Detroit, Michigan, e contou com mais de cem veteranos de cada ramo das forças armadas. Entre os relatos dos veteranos, estão descrições de como eles queimavam aldeias, incendiavam casas ocupadas, empurravam prisioneiros do helicóptero, estupravam mulheres, torturavam e assassinavam camponeses e prisioneiros, jogavam napalm em civis, cortavam orelhas e cabeças, atiravam em civis por diversão, faziam competições de quem mata mais vietnamitas, entre outros, sendo esses atos incentivados e perpetrados por membros do exército de todos os níveis (HUNT, 1999).
Por exemplo, o veterano Joe Bangert contou sua experiência no treinamento em Camp Pendleton: “Ele [o oficial] tem esse coelho e, alguns segundos depois, quase todo mundo se apaixona por ele, ele quebra o pescoço, esfola, estripa. Essa é a última lição que você aprende nos Estados Unidos antes de partir para o Vietnã”. Já o ex-interrogador Nathan Hale foi instruído por seu capitão a usar todos os meios necessários para obter informações dos prisioneiros: “Eu pessoalmente usei cassetetes, coronhas, pistolas e facas” (HUNT, 1999, p.70). Kenneth Ruth mostrou slides de métodos de tortura no Vietnã, incluindo um prisioneiro amarrado a uma árvore enquanto um interrogador puxa uma corda amarrada em seus testículos (HUNT, 1999, p.70).
Sem dúvida, os relatos de estupro são inúmeros. Segundo Michael Farrell: “Nosso sargento de pelotão disse: ‘Se há uma mulher em apuros, levante o vestido dela, e verifique sua genitália; se for um homem, mate-o; e se for uma mulher, estuprá-la” (HUNT, 1999, p.70). O mesmo aconteceu com o sargente Michael Hunter, que observou um esquadrão cercar mulheres na área e ameaçar matá-las, a menos que elas se submetessem a relações sexuais com os soldados. Joe Galbally, da Divisão Americana, lembrou-se de quando uma jovem foi “levada para fora, estuprada por seis ou sete pessoas na frente de sua família, na nossa frente e dos aldeões” (HUNT, 1999, p.70). Ele alegou que sabia de “10 ou 15 desses incidentes, pelo menos” (HUNT, 1999, p.70). Igualmente, Scott Camil relatou que um tenente rasgou a roupa de um camponês que pedia água, e os soldados “apunhalaram-na nos dois seios, afastaram suas pernas e empurraram uma ferramenta em sua vagina, uma ferramenta de entrincheirar, e ela ainda estava pedindo água. E então eles tiraram aquilo e usaram um galho de árvore e ela foi baleada” (HUNT, 1999, p.71).
Também foram discutidos a destruição cultural e ecológica do Vietnã, o racismo nas forças armadas, o impacto de diferentes tipos de armamento e o tratamento de prisioneiros de guerra. Hunt nota que o evento não trouxe o tema das mulheres e a guerra:
várias mulheres serviram como enfermeiras ou em funções não combatentes no Vietnã. Além disso, as mães, irmãs e companheiras de veteranos entendiam bem o impacto da guerra sobre os soldados. No entanto, apenas quatro dos mais de cem veteranos e dezesseis civis que prestaram depoimento eram mulheres. […] a Investigação do Soldado Invernal falhou em abordar as questões cruciais de gênero relacionadas à Guerra do Vietnã (HUNT, 1999, p.71).
Em 1972, foi lançado o documentário Winter Soldier, uma compilação de alguns dos relatos feitos pelos veteranos durante a WSI. Além dos crimes já descritos aqui, o documentário ainda nos mostra como os soldados podiam matar vietnamitas sem saber se eles eram vietcongs ou não, como eles não recebiam instrução sobre a Convenção de Genebra, como eles desumanizavam os vietnamitas e como era normalizado tratá-los como raça inferior ou como animais, como eles faziam competição de quem usa menos balas para matar mais pessoas ganha cerveja, ou como trocavam orelhas cortadas de vietnamitas por cervejas, e como qualquer lugar que poderia servir de esconderijo deveria ser incendiado (mas, na busca por armas nas vilas, nada era encontrado). Ainda, o documentário traz falas de veteranos comparando os crimes de guerra contra vietnamitas com o massacre dos indígenas estadunidenses na época da colonização.
Considerações finais
Mesmo com pouca atenção da mídia, a WSI foi importante para a criação de uma organização de massa, e apenas um começo para despertar a consciência dos EUA e curar seus veteranos, sendo um evento terapêutico para muitos veteranos. Ainda que algumas das testemunhas da WSI tenham chegado a ser intimidadas e perseguidas pelas autoridades estadunidenses, seus relatos incentivaram o senador George McGovern, de Dakota do Sul, e o representante Conyers a convocarem uma investigação do Congresso sobre as acusações feitas na Investigação do Soldado Invernal (Ibidem, 1999). Segundo Visentini,
As Forças Armadas dos Estados Unidos nada ficam devendo aos crimes nazistas na Segunda Guerra Mundial. (O que se poderia esperar do país que teve a exclusividade de usar armas nucleares, além de tudo contra a população civil?) Organizações como os Veteranos do Vietnã contra a Guerra e o Tribunal Bertrand Russell de Crimes de Guerra, sediado em Estocolmo, investigam os crimes de guerra. Os Estados Unidos são acusados de genocídio pelo Tribunal (VISENTINI, 2008, p.54).
Diante do exposto, fica claro que, com o aumento dos conflitos multilaterais e envolvimento de grande número de Estados, os crimes de guerras podem ocorrer até mesmo em uma força militar profissional e disciplinada (RIELLY, 2010). A compreensão das áreas de avaliação em suas organizações podem dar vantagem na identificação de problemas e de atitudes incipientes. Identificar as áreas afetadas e monitorá-las é de suma importância para evitar crimes de guerra. Unir a avaliação e a educação focalizada podem ajudar a evitar conflitos futuros (RIELLY, 2010).
Referências bibliográficas
GENEVA Convention (IV) relative to the Protection of Civilian Persons in Time of War. Genebra, 12 de agosto de 1949. Disponível em: https://ihl-databases.icrc.org/applic/ihl/ihl.nsf/Treaty.xsp?documentId=AE2D398352C5B028C12563CD002D6B5C&action=openDocument. Acesso em: 04 de dezembro de 2021.
HAI, Nguyen Hoanh. A guerra entre os americanos e o Vietnã. Disponível em:https://bdex.eb.mil.br/jspui/bitstream/123456789/2777/1/Tcc_Inf_HAI%20%28ONA%20Vietn%C3%A3%29_Esao.pdf. Acesso em: novembro de 2021.
HUNT, Andrew E. The Turning: A History of Vietnam Veterans Against the War. Nova York University Press, 1999.
RIELLY, Robert. A Tendência para os Crimes de Guerra. Disponível em: https://www.armyupress.army.mil/Portals/7/militaryreview/Archives/Portuguese/MilitaryReview_20100228_art010POR.pdf. Acesso em: novembro de 2021.
SILVA, Hugo Siqueira e. Crimes de guerra praticados no Vietnã, sob a perspectiva da convenção de Genebra de 1949. Disponível em: https://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/26204/1/crimesguerrapraticados.pdf. Acesso em: novembro de 2021.
VISENTINI, Paulo Fagundes. A Revolução Vietnamita: da libertação nacional ao socialismo. São Paulo: Editora UNESP, 2008.
WIEST, Andrew e MCNAB, Chiris. A História Da Guerra Do Vietnã. São Paulo: Editora M Books, 2016.
WINTER Soldier. Direção de Winterfilm Collective. Estados Unidos: Winterfilm Collective, 1972. 1 DVD (95 min.)