Introdução
Em março de 2019 foi declarada a derrota do califado autoproclamado do Estado Islâmico, que existia desde junho de 2014, após a batalha de Baghouz. Posteriormente, em outubro do mesmo ano, a morte do ex-líder Abu Bakr al-Baghdadi promoveu uma sensação de vitória completa. Contudo, o Estado Islâmico tornou-se um acontecimento global e mobilizou milhares de pessoas. Assim sendo, um problema ficou pendente: o destino daqueles que lutaram em nome do Estado Islâmico.
Para analisa-lo, é necessário estudar inicialmente o que levou tantas pessoas a deixarem suas vidas em outros países para lutarem em um conflito que aparentemente não diz respeito a elas, porque muitos deles vêm de países desenvolvidos e de família de classe média. Isso é o oposto do que em geral acredita-se desde o 11 de Setembro de 2001, isto é, no estereótipo dos países pobres e membros de famílias desestruturadas e sem condições materiais que geram perpetradores de atentados terroristas.
Isso posto, partiremos para um exame dos impulsionadores que conduziram tantas pessoas para essa luta na região do Levante. A insatisfação social aliada aum sentimento não-pertencimento é um dos fatores forte, pois cria uma busca por algo que preencha esse vazio, sendo justamente neste ponto que a ideia de um califado poderoso, com pessoas que compartilham de um mesmo propósito vitorioso ganha força, que os aliciadores do Estado Islâmico acabam por abordar essa temática para facilitar a conexão com as angústias alheias.
Sendo assim, o nível de radicalização é alto. Por conseguinte, o risco de alguém retornar e efetuar um ato terrorista é real, o que dificulta a reintegração dessas pessoas as suas sociedades de origem, assim como o desejo desses países de trazê-las de volta é baixo. O resultado é um limbo jurídico difícil de ser quebrado e um clima social na Síria e no Iraque propício para a radicalização do Estado Islâmico continuar perpetuando-se indefinidamente.
Portanto, para entender tal ocorrência internacional, dividiremos o restante do artigo da seguinte maneira: primeiramente, um breve histórico dos combatentes estrangeiros nos territórios do Estado Islâmico para entender suas origens. Em seguida, os fatores que conduziram essas pessoas a saírem de seus países, dando enfoque para questões de ordem psicológica e social, haja visto que boa parte delas são jovens de países estruturados, na faixa dos 20 anos, oriundas de famílias muçulmanas de classe média e sem grandes necessidades. Posteriormente, analisar a ordem que foi estabelecida depois da derrota do Estado Islâmico, focalizando nas mulheres e crianças, por comporem 80% dos aprisionados e por serem os alvos de reintegração social. Por fim, olharemos para a mobilização dos três países, com dados disponíveis, que mais possuíam combatentes na Síria e no Iraque e seus esforços para trazer de volta seus cidadãos. A observação partirá de uma região mais engajada, como é a Ásia Central, e outra mais relutante, o bloco da União Europeia. Sendo possível exemplificar dessa maneira a dificuldade de retorno dessas mulheres e crianças e o limbo no qual estão presas.
Fenômeno dos Combatentes Estrangeiros
A expressão “combatente estrangeiro” é relativamente recente dentro da mídia e círculos de debate. Ele começou a disseminar pelo mundo na década de 1980 em razão do conflito no Afeganistão para designar os combatentes que lutavam longe de seu país de origem. Para Borum e Fein (2017), o jornal britânico The Times foi o primeiro a usar diretamente este termo para referir aos muçulmanos egípcios, sauditas e paquistaneses lutando no Afeganistão, mas o termo disseminou verdadeiramente após os ataques de 11 de setembro de 2001, com os conflitos no Afeganistão e no Iraque.
Em razão da relativa novidade que a expressão “combatente estrangeiro” expressa, vamos buscar uma definição, pois é importante diferenciá-los de mercenários, já que esses lutam em nome do dinheiro, enquanto os combatentes estrangeiros possuem motivações mais amplas do que simplesmente a questão financeira. Para tal, utilizaremos a explicação de Pokalova (2019), que define-os como combatentes que deixam seus países de origem para lutar em conflitos estrangeiros ou participar de atividades terroristas.
Síria e Iraque
Tendo isso em mente, podemos olhar para os dados produzidos sobre os combatentes estrangeiros na Síria e Iraque lutando pelo Estado Islâmico. De acordo com Richard Barret (2014), por volta de 12 mil combatentes estrangeiros de 81 países viajaram para a Síria e o Iraque para lutar pela oposição contra Assad entre 2013-2014. Um ano depois, em 2015, o número já saltou para aproximadamente 30 mil estrangeiros, de acordo com Klor e Benmelech (2020). Dados mais recentes, após a queda do Estado Islâmico, foram produzidos por Cook e Vale (2019), que declarou um número de 41.490 pessoas estrangeiras estavam nos territórios do Estado Islâmico.
Levando em consideração esses dados, é possível estabelecer brevemente uma comparação com o agora segundo maior conflito envolvendo muçulmanos e com presença de combatentes estrangeiros: Afeganistão. Segundo Elena Pokalova (2019), durante a década de 1980, dificilmente o número de combatentes estrangeiros em território afegão ultrapassou 4 mil de uma só vez, muito menos com uma variedade de países tão grande quanto na Síria, pois era mais focado em pessoas do Oriente Médio e do Norte da África. Dando uma dimensão que englobe os anos 1980 e 1990, Richard Barret (2014) argumenta que apesar da dificuldade de garantir uma precisão, existe uma estimativa de aproximadamente 10 mil combatentes estrangeiros em todo o conflito contra a União Soviética entre 1979-1989, somado com o número ao longo de todo o governo talibã entre 1996-2001. Isso demonstra, portanto, a grandiosidade do que ocorreu na Síria desde a eclosão da guerra civil em 2011 e, principalmente, desde a ascensão do Estado Islâmico em 2014.
Sendo assim o questionamento é: o que torna a Síria tão atrativa? Inicialmente, um elemento mais direto seria porque é fácil acesso em comparação com a localidade de conflitos anteriores. A fronteira mais ao norte da Síria é pouco vigiada, consequentemente, mais porosa e utilizada por novos combatentes para entrar de maneira clandestina no país. Aliado a esse fator, a existência de roteiros de voos para Turquia, seguido de um a viagem até o sul do território, consolidava a facilidade (HEGGHAMMER, 2013).
Além do mais, a questão dos lados da batalha é um tópico relevante, pois havia um certo senso de engajamento nas redes sociais de jovens muçulmanos de que enfrentar a opressão de Assad significava derrubar um governo apóstata e corrupto, o que torna moralmente correta a mobilização em torno desse objetivo (BORUM e FEIN, 2017). Thomas Hegghammer (2013) observa também que em conflitos anteriores o desejo de lutar dos combatentes estrangeiros era visto de maneira como estar no lado errado da história, como, por exemplo, ir para Somália e entrar para o El-Shabab ou ir para o Afeganistão lutar ao lado da Al-Qaeda, mas no caso sírio a interpretação era diferente em virtude da motivação: enfrentar a ditadura de Bashar al-Assad, um governo que deliberadamente massacrava a própria população. Esse aspecto causou uma profusão demográfica somente vista no Afeganistão nos anos 1980.
Todavia, o cenário global muda de tom com o surgimento do Estado Islâmico e sua proposta de organização. Isso porque, apesar de anteriormente muitos estrangeiros na Síria e no Iraque aliarem-se a grupos extremistas vinculados a Al-Qaeda para derrotar Assad, a organização liderada por Abu Bakr al-Baghdadi tinha o diferencial de ter proclamado um califado para receber tantas pessoas engajadas (BARRET, 2014). Esse evento em junho de 2014 aumentou as fiscalizações de entrada e saída dos países, visando obstaculizar viagens à Síria e à Turquia, mas não evitou que os registros de estrangeiros aumentassem vigorosamente as fileiras do Estado Islâmico.
O califado instigou globalmente alguns muçulmanos desejosos de respeitar o chamado de um califa a mobilizar-se para estar sob um território em que as leis islâmicas sejam vividas de maneira plena. Os dados são expressivos até mesmo nos países ocidentais e geograficamente distantes, como, por exemplo, os 3 mil do norte europeu, EUA, Canadá e Austrália (BARRET, 2014), Trinidad e Tobago como o país das Américas que mais teve combatentes enviados, 130, e até mesmo a Oceania teve alguma participação, 150 combatentes (POKALOVA, 2019).
Sendo assim, isso levanta o ponto, para Borum e Fein (2017), sobre um questionamento de muitos muçulmanos ocidentais sobre não somente a forma como seus governos enfrentam o governo xiita de Assad, mas também sobre como eles podem cooperar com um projeto de solidariedade em favor dos muçulmanos que estão sofrendo. Uma vez que eles viajaram para lutar uma jihad em nome de um califado, a fim de proteger a comunidade islâmica sunita, Ummah, de uma ameaça de um governo xiita opressivo.
Por isso, o componente religioso misturado com uma radicalização proveniente de uma frustração social está muito presente nessas jornadas, como aponta Dawson e Amarasingam (2017), porque apesar de muitos deles virem de famílias de classe média muçulmanas, possuem dificuldade de integração nas sociedades ocidentais em que estão vivendo. Logo, eles encontram propósito e um senso de pertencimento por meio de uma coletividade mais abrangente, como é a questão da Ummah, e de um território que verdadeiramente abrace os ensinamentos islâmicos, como é o califado. Sendo assim, o fator religioso acaba sendo um impulsionador para as motivações combativas.
Esse fator acaba sendo fundamentalmente expressivo entre os jovens provenientes de famílias de imigrantes. Como aponta Pokalova (2019), entre os países com presença de combatentes estrangeiros na Síria e no Iraque, aqueles com grande presença de jovens tendem a ter maior engajamento quando relacionados a maiores níveis de emigração. Visto que pode existir uma dificuldade de adaptação entre duas culturas muito diferentes, o tecido social pode ficar fragmentado e criar um ambiente propício para deslocamentos até Síria e Iraque.
As Causas por Trás dos Combatentes Estrangeiros na Síria e Iraque
Compreender as motivações por trás dos combatentes estrangeiros do Estado Islâmico o tópico da integração social faz-se essencial. Em uma amostra feita entre 2012-2015, Khosrokhavar (2018) analisou a origem de 1200 indivíduos que foram para a Síria e o Iraque e concluiu que 18% tinham menos de 18 anos, 27% entre 18 e 21, 26% entre 22 e 25, 17% entre 26 e 29, 9% entre 30 e 35 e 7% com 36 ou mais. Nessa distribuição, os grupos entre 18 e 25 anos são os mais numerosos, o que permite inferir mais uma vez que o grau de adesão da mensagem do Estado Islâmico entre os mais jovens é forte.
Benmelech e Klor (2020) corroboram essa análise ao argumentar que muitos ocidentais, principalmente os europeus, estão na faixa de idade dos 20 anos, classe média, com algum grau de escolaridade e provenientes de uma família de imigrantes. Para Khosrokhavar (2018), muitos dos combatentes vêm do continente europeu por existir uma divisão na convivência no seio da sociedade da europeia entre os muçulmanos que se veem alienados da vida social e o restante dos cidadãos que acreditam que os seguidores do islã não sabem como é a vida em uma democracia.
Isso é muito representado nos jovens que estão entrando no mercado de trabalho e participando da vida social de uma maneira geral, com uma sensação de rejeição e dúvida com relação ao seu futuro. Sendo assim, fazer parte de um califado que pretende-se perdurar até o fim dos tempos em nome de uma coletividade que compreende suas angústias torna a perspectiva futura promissora e até mesmo gloriosa, quando comparada com a instabilidade social e preconceito das sociedades europeias de onde eles vêm (KHOSROKHAVAR, 2018).
Na Grã-Bretanha, os muçulmanos representam 4.7% da população e aproximadamente 15% entre os encarcerados, segundo reportagem da The Independent de 2014. Em 2016, de acordo com BBC, muçulmanos e asiáticos abaixo dos 18 anos foram relatados como os mais propensos a serem detidos e interrogados ao serem abordados em fronteiras e aeroportos, seguindo normas da Lei Contra Terrorismo da Inglaterra. Na França, como argumenta Khosrokhavar (2018), os seguidores do islã tem de 3 a 5 vezes menos chances de encontrar um emprego estável em comparação com outros grupos de franceses.
Na Alemanha ocorre uma situação semelhante. De acordo com Khosrokhavar (2018), 54% dos alemães muçulmanos não se veem como cidadãos plenos e 51% acreditam que por serem de ascendência turca são vistos como “cidadãos de segunda classe”. Isso acaba por causar uma ojeriza por parte de alguns muçulmanos alemães, que fragmenta o tecido social.
Essa discrepância com relação a integração dos muçulmanos nas sociedades europeias causa uma procura por um ideal mais amplo de comunidade, que verdadeiramente entenda seus sofrimentos e promova um propósito de vida. Como aponta Costa (2016), a coletividade nacional europeia decepcionou os jovens muçulmanos que não se sentem parte das sociedades em que vivem, o que possibilita que eles idealizam um grupo para interagir e até mesmo lutar a favor deles. Por essa razão, para Dawson e Amarasingam (2017), o processo de radicalização reitera esses pontos da Ummah e da necessidade de participar de um califado, pois cria-se um comprometimento de ser parte de algo relevante e produtivo para a luta dos muçulmanos de todo o mundo.
Dito isso, a questão das idas ao Estado Islâmico ficam mais complexas justamente pela propaganda em torno do califado. Um território que tinha pretensão de conquistar novas regiões e tornar-se cada vez mais longevo deixa explícito a ideia de perpetuar seu tempo de duração, o que oportuniza nascimentos e formação de famílias. Por consequência, fortalece os laços de lealdade dos constituintes dessa coletividade e intrinca o processo de retorno dessas pessoas para seus países de origem.
A Vida Pós-Califado na Síria e Iraque
Isso posto, a questão é: após o desmantelamento do califado, como fica a situação dessas milhares de pessoas? A presença principal nos campos formados para conter os ex-integrantes do califado é majoritariamente composto por mulheres e crianças que ficaram desamparadas e estão presas em vigilância na Síria sob a tutela de forças curdas e no Iraque sob a custódia do governo local. Segundo a ONU, em 2021, havia por volta de 64 mil pessoas, sobretudo mulheres e crianças, de 57 países nos campos de Al-Hol e Roj, ambos na Síria.
No campo de Al-Hol sozinho, a estimativa é de 62 mil pessoas, incluindo 80% de mulheres e crianças. Entre elas 30 mil são iraquianas, 20 mil sírias e entre 10 e 12 mil de outras nacionalidades, mas os números variam muito. Apesar dessa variação, os dados ainda são imponentes. Como elemento de comparação, a motivação para criação desse campo foi a guerra do Golfo em 1991 e, na época, continha por volta de 15 mil iraquianos, de acordo com o The Syrian Observer. Atualmente, existe um número, somente de estrangeiros, próximo ao que existia de iraquianos durante a guerra do Golfo, o que é muito expressivo como sintoma do efeito da radicalização causada pelo Estado Islâmico.
Unicamente em território iraquiano, no ano de 2021, segundo Frontline, foram realizados 20 mil julgamentos de membros do Estado Islâmico, incluindo de combatentes estrangeiros, mas por possuir um sistema judiciário criticado internacionalmente, cria-se um dilema sobre quão justo foram os processos.
As Crianças do Estado Islâmico
O efeito mais agravante do processo de aprisionamento é a dificuldade daqueles que cresceram nos territórios do Estado Islâmico para verdadeiramente terem uma vida após o desaparecimento do grupo extremista. Sob a custódia iraquiana existem aproximadamente 1100 crianças e no campo de Al-Hol, o maior da Síria, em torno de 8 mil (COOK e VALE, 2019).
Segundo The Syrian Observer, diversas crianças vivem em condições muito precárias tanto de infraestrutura quanto de higiene, além de estarem rodeadas de violência em razão da presença de mulheres que faziam parte do Estado Islâmico e de membros ativos que atacam os campos na Síria. No Iraque, a partir dos 9 anos a pessoa já pode ter responder por seus atos criminais e passar por julgamento, de forma semelhante, em áreas controladas por forças curdas no norte da Síria, crianças passam por interrogatórios e torturas para obtenção de confissões (COOK e VALE, 2019).
Isso cria um ambiente pouco propício para que as crianças cresçam de maneira sadia, inclusive podendo ser agravado pelos próprios países de origem dos pais dessas crianças. Como aponta Cook e Vale (2019), alguns países priorizam as crianças que são órfãs, como caso da Noruega, e outros foram forçados a reconhecer após mobilização midiática, como o episódio do Roger Waters, mediando o retorno de duas crianças de 7 e 11 anos para Trinidad e Tobago.
Isso resulta em um sentimento de abandono e frustração que dificulta a reintegração desses jovens no país de origem de seus pais, já que ela não enxerga outro tipo de realidade além da vivida nos campos de prisioneiros, tornando-se alvos para radicalização provenientes dos membros ainda ativos do Estado Islâmico.
Por esse motivo, para Borum e Fein (2017), a guerra síria e seus desdobramentos podem criar um lugar de incubação de uma nova geração de radicais islâmicos e possíveis perpetradores de atos terroristas, visto que o que fundamentalmente incitou os pais desses jovens abandonados nos campos de prisioneiros a integrar o Estado Islâmico foi a questão de falta de pertencimento, integração e socialização a cultura ocidental. Consequentemente, o sentimento de exclusão pode ser mais uma vez transmitido aos filhos em decorrência da inexistência de um plano estruturado para retirá-los da região da Síria e do Iraque.
As Mulheres do Estado Islâmico
Por fim, analisaremos a situação daquelas que compõem o segundo grupo mais numeroso dos campos sírios e iraquianos: as mulheres. No campo de Al-Hol acredita-se possuir por volta de 4 mil mulheres e no Iraque 616 estrangeiros estavam em processo de julgamento, entre eles 466 do sexo feminino (COOK e VALE, 2019).
O papel das mulheres dentro do Estado Islâmico era essencialmente o de radicalizar os mais jovens para que a ideologia do Estado Islâmico se perpetuasse ao longo do tempo, seja nas redes sociais ou presencialmente, tornando-se uma base institucional do grupo (BORUM e FEIN, 2017). Segundo o The Washington Institute, contabilizando somente o campo de Al-Hol, aproximadamente 30% das mulheres presas ainda acreditam em um renascimento do califado que foi liderado por Abu Bakr al-Baghdadi, as chamadas Noivas do Estado Islâmico. Consequentemente, elas vigiam e agridem outras mulheres e crianças que consideram apóstatas e, principalmente, radicalizam jovens para seguirem o caminho do Estado Islâmico.
Como apontou a análise do The Washington Institute, durante o ano de 2020 e 2021, as poucas escolas que existiam no campo de Al-Hol foram fechadas por conta da pandemia e as crianças passaram a ser ensinadas pelas mães ou responsáveis legais, o que permitiu uma maior radicalização por parte das mulheres ainda crentes no retorno do califado do Estado Islâmico. Por isso, para Cook e Vale (2019), a aproximação intergeracional pode resultar em uma estratégia de longo prazo para os membros remanescentes do Estado Islâmico.
Outro agravante para o cenário desolador dos campos de prisioneiros é a falta de identificação precisa. Cook e Vale (2019) observam que as mulheres que se voluntariaram para o grupo extremista islâmico tiveram que entregar seus documentos de identificação logo que chegaram a Síria e ao Iraque. Barret (2014) corrobora ao atentar para as idas femininas através de casamentos, grupos de amigos ou, em alguns casos, sozinha, mas com um fator comum: extravio de seus documentos de identificação.
Repatriação dos Prisioneiros
Apesar de todos esses cenários desfavoráveis, algumas medidas para o regresso foram tomadas. Entre 2018 e 2019, por volta de 609 mulheres retornaram para seus países de origem. Entre as crianças, aproximadamente 1460-1525 retornaram, além de em torno de 418-1180 estarem em processo de validação (COOK e VALE, 2019). A despeito da dificuldade de precisar o número total de retornos, percebe-se um foco mais intensivo no retorno dos menores de idade.
Para ilustrar este cenário, olharemos para as movimentações dos países da Ásia Central e da União Europeia que mais enviaram combatentes à Síria e ao Iraque, de acordo com a classificação de números oficiais e não-oficiais de Elena Pokalova (2019) e Benmelech e Klor (2020). Sendo assim, as duas regiões foram escolhidas em virtude de seus esforços oposotos para produzir um projeto de retorno consistente para seus cidadãos: na região asiática, um exemplo de cooperação e mobilização no retorno para julgamento e reintegração, enquanto o bloco europeu possui mais relutância em trazer de volta seus cidadãos.
Na Ásia Central, de uma população total de mais de 72 milhões, oficialmente em torno de 2850 pessoas partiram para a Síria e o Iraque. Entre eles, os três com mais dados disponíveis: Tadjiquistão, em primeiro, – oficial: 1100 e não oficial: 2000, Uzbequistão – oficial: 500 e não oficial: 1500 a 2500 e Cazaquistão – oficial: 300 e não oficial: 1136 a 2136 (POKALOVA, 2019; BENMELECH e KLOR, 2020). As mobilizações nessa região foram constantes e com uma abordagem cooperativa em razão da conferência realizada em julho de 2019 em Bishkek, no Quirquistão, para discutir como seria o processo de reintegração na sociedade de cada país.
No Cazaquistão foi lançada a Operação Zhusan, entre janeiro e maio de 2019, para trazer de volta 516 cidadãos cazaques. No Uzbequistão, 318 cidadãos regressaram até 2021, assim como no Tadjiquistão, onde por volta de 200 voltaram até dezembro de 2020 ,como parte de um projeto de repatriação iniciado em 2019. Em todos os casos, mulheres e crianças eram os alvos primários. Portanto, entre 2019 e 2021, pelo menos mais de 1000 pessoas foram resgatadas na cooperação entre Tadjiquistão, Quirquistão, Uzbequistão e Cazaquistão.
A Europa, mais especificamente entre os membros da União Europeia – uma população total de aproximadamente 447 milhões, foi ponto de partida oficialmente de 5864 pessoas. Os três países com maior número de dados são a França, em primeiro lugar, – oficial: 1700 e não oficial: 2500 -; seguida pela Alemanha – oficial: 760-790-; e a Bélgica em terceiro – oficial: 470-560 (POKALOVA, 2019; BENMELECH e KLOR, 2020). Os regressos, por sua vez, foram casos mais pontuais e esporádicos, focado em crianças.
Na França, alguns retornos ocorreram, somente de crianças, e somavam 35 até 2021. Essa restrição francesa nos casos de resgate inclusive resultou em um grupo de mulheres presas na Síria a recorrerem a uma greve de fome para pressionar o governo francês, de acordo com o The New York Times. Na Bélgica, 10 crianças e 6 mulheres foram repatriadas, tendo o primeiro-ministro, Alexander De Croo, declarado que o foco no futuro seria em crianças abaixo dos 12 anos. Na Alemanha, em 2021, 8 mulheres e 23 crianças foram trazidas de volta da Síria em uma colaboração com a Dinamarca, que, por sua vez, repatriou 3 mulheres e 14 crianças.
Pode-se perceber, dessa maneira, a discrepância entre a Ásia Central e a Europa, representada pela União Europeia. Apesar do alto número de combatentes nas duas regiões, a pouca cooperação e até mesmo motivação entre os membros do bloco europeu para trazer os cidadãos presentes nos campos sírios de Al-Hol e Roj e no Iraque de volta para seus respectivos países a fim de que passem por um julgamento ou por um processo de reintegração social torna a conjuntura para essas pessoas pouco favorável. Do ponto de vista de segurança, é compreensível em razão dos ataques terroristas sofridos nos últimos anos pelo próprio Estado Islâmico, mas, do ponto de vista prático, isso pode causar um novo processo de radicalização precisamente por conta da vulnerabilidade e falta de perspectiva refletida sobretudo nos mais jovens.
Considerações Finais
Conclui-se, portanto, que o fenômeno global dos combatentes estrangeiros no autoproclamado califado do Estado Islâmico é um evento único na história dos conflitos envolvendo muçulmanos, superando enormemente o conflito no Afeganistão na década de 1980. Como sequela, o retorno daqueles que ficaram após a derrota territorial do grupo extremista islâmico é substancial, sobretudo entre mulheres e crianças, que juntos somam a população de 80% nos campos.
Sendo assim ,a inércia dos governos ocidentais, principalmente europeus, em lidar com os seus cidadãos que estavam nas fileiras do califado da Síria e do Iraque é perigosa. A coalizão de 83 países formada em 2014 para enfrentar o Estado Islâmico foi desfeita quando sua atuação seria mais necessária: articular o retorno dos cidadãos para seus países de origem. O efeito dessa falta de decisões efetivas pode colaborar para a atuação de membros ainda ativos do Estado na Síria e no Iraque no processo de radicalização, especialmente das crianças que muitas vezes não conhecem outra realidade além da vivida dentro dos campos e são alvos mais fáceis. Por conseguinte, não agir a respeito é a pior decisão a ser tomada.
Referências
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BENMELECH, Efraim; KLOR, Esteban. What Explains the Flow of Foreign Fighters to ISIS? Terrorism and Political Violence, vol. 32, n° 7, p. 1458-1481, 2020.
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COOK, Joana; VALE, Gina. From Daesh to ‘Diaspora’ II: The Challenges Posed by Women and Minors After the Fall of the Caliphate. CTC Sentinel, vol. 12, n° 6, p. 1-39, 2019.
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HEGGHAMMER, Thomas. Syria’s Foreign Fighters. Foreign Policy, dezembro de 2013.
KHOSROKHAVAR, Farhad. Os Novos Atores Jihadistas. Revista Estado e Sociedade, vol. 33, nº 2, p. 487-509, maio/agosto de 2018.
POKALOVA, Elena. Driving Factors Behind Foreign Fighters in Syria and Iraq. Studies in Conflict & Terrorism, vol. 42, n° 9, p. 798-818, 2019.