A China, desde o processo de abertura e reforma iniciado em 1978, sob a autoridade de Deng Xiaoping, contemplou a necessidade de assegurar um regime de segurança energética capaz de corresponder às suas vontades de potência. A sua estrutura demográfica assustadora, o seu processo brutal de urbanização, — onde mais de 450 milhões de pessoas deixaram os campos em direção às cidades — e os significativos esforços voltados para expansão e modernização do consumo no país (NUNES, 2018) obviamente necessitaram de um nível de recursos energéticos à altura.
A energia é algo considerado em todos os empreendimentos humanos, e quanto mais complexidade se pretende injetar nas dinâmicas humanas mais energia é demandada (KLARE, 2008). O processo de abertura e reformas promoveu mudanças profundas na sociedade, política e economia chinesas. Portanto, o maior dinamismo e complexidade da China precisaria de um projeto de segurança energética proporcional às ambições e demandas do país. Isto posto, pretendo neste breve ensaio explicitar alguns dos esforços chineses concernentes a sua política de segurança energética: no primeiro momento abordarei rapidamente como tem se dado o processo de diversificação de fontes energéticas chinesas, e seus fundamentos, desde, principalmente, os anos 1990; e por fim, de como essa tendência se reflete na presença da China na Venezuela.
Diversificar para Assegurar
A segurança energética, segundo Klare (2008, p. 484), é interpretada pela maioria dos analistas como “the assured delivery of adequate supplies of affordable energy to meet a state’s vital requirements, even in times of international crisis or conflict”. Assegurar acesso a quantidades suficientes de energia para suprir as necessidades vitais do Estado é uma preocupação central desde sempre. Igualmente, a confiabilidade e acessibilidade quanto ao fornecimento contínuo também constitui uma dimensão importante do que se entende por segurança energética. No caso da China, o acesso a abundantes reservas de recursos energéticos tem assumido um lugar central em sua política externa desde pelo menos o início do processo de abertura e reforma. Deng direcionou o programa de reformas para quatro complexos industriais internos: (1) indústrias de base, (2) agroindústria, (3) ciência e tecnologia, e (4) indústria bélica, que por sua vez demandaram não somente de altíssimos recursos humanos, mas também energéticos.
A política de diversificação de fontes de recursos energéticos da China (principalmente petróleo) se torna mais clara a partir do final do século passado e da primeira década dos anos 2000, como expõe Sutter (2016): em 1997 o país fechou um acordo de US$ 9,5 bilhões (valores não corrigidos) para o desenvolvimento de campos de exploração de petróleo e gás com o Cazaquistão, assim como para construção de dutos. Acordos semelhantes foram firmados já em 2006 com o Turcomenistão. Os dutos construídos mediante esta parceria passam ainda por territórios uzbequistanês e cazaquistanês. Todos os projetos passaram por problemas logísticos e orçamentários em decorrência, outrossim, das tensões características deste espaço geográfico.
A necessidade de diversificação se impõe como o desafio mais amplo para uma potência assegurar sua segurança energética, assim como diminuir a vulnerabilidade dos sistemas de fornecimento e distribuição de recursos energéticos dentro dessa perspectiva ampla de diversificação. Uma característica que não pode ser ignorada é o fato que as zonas geográficas que possuem petróleo disponível geralmente constituem zonas de tensão, conflito e instabilidade (KLARE, 2008), o que acaba incorrendo na necessidade de assegurar militarmente a “proteção” dessas regiões. A história do relacionamento entre EUA e o petróleo alhures ilustra isso perfeitamente bem. Isso se dá pelo que se denomina, segundo Klare (2008), de “estado de ansiedade”, onde questionamentos acerca da suficiência de fontes energéticas que estarão disponíveis para as necessidades nacionais e se esses recursos serão transportados com segurança até o “ponto de necessidade” começam a permear os pensamentos dos tomadores de decisão.
O Dragão no Caribe
Dentre as iniciativas de diversificação da China há uma de pertinência significativa para o quadro geopolítico hodierno no continente americano: o fortalecimento das relações com a Venezuela, o país com as maiores reservas mundiais de petróleo. Como explicita Nunes (2018), o petróleo venezuelano é algo central para o regime de segurança energética chinesa. A trajetória de parcerias estratégicas entre China e Venezuela concernente ao fornecimento de recursos energéticos — especificamente o petróleo, que constitui o “pilar central das relações bilaterais” entre os dois países (NUNES, 2018, p. 141) — observou um processo de franco fortalecimento a partir do desencadeamento do que se convencionou a chamar de marea rosa na América do Sul, da qual a vitória de Hugo Chávez Frias nas eleições presidenciais venezuelanas em 1998 fez parte.
No entanto o início das relações entre os dois países se encontra ligeiramente mais afastado no passado. O evento que marca o início dessas relações se deu em 1996, via acordo bilateral para exploração de petróleo entre os dois países, quando do processo de abertura da PDVSA (YIN-HANG, ACUNÃ, 2018). Investimento importantes no setor petroquímico ganharam mais relevância quando da gestão de Rafael Caldera, em 1997 (RATLIFF, 2006). Em 1999, o comércio sino-venezuelano acumalava US$ 200 milhões, em 2008 a cifra já alcançava os US$ 10 bilhões (PAZ, 2013). A exportação de barris de petróleo venezuelano para a China era de 14.000 barris diários em 2004, 400.000 barris diários em 2011 (CROOKS, CANCEL, 2012), e 700.000 barris diários em 2015 (PETROLEUM ECONOMIST, 2015). O que demonstra a expressividade da questão petroquímica entre os dois países.
O fortalecimento dos laços com o país caribenho iniciado na gestão de Jiang Zemin, insere-se em sua estratégia de projeção da presença internacional da China tendo como meio a diplomacia pessoal do premiê, viabilizada pelo carisma singular do mesmo, e o assentamento do país como “membro pleno do sistema internacional de Estados e de comércio” (KISSINGER, 2014) como fim. Já em 2001, a Venezuela se tornaria o primeiro país hispanohablante a se inserir na development strategic partnership chinesa (HERMOSO, FERMÍN, 2019).
Por seu turno, Hu Jintao definiu como suas prioridades estratégicas em política externa, segundo Kissinger (2014), o estabelecimento de um ambiente internacional de caráter pacífico, e um amplo acesso a matérias primas capaz de permitir a continuidade do crescimento econômico chinês — onde se insere a Venezuela — cada vez mais expressivo: em meados de 2006 se estabelece entre os dois países uma cooperação estratégica destinada a prevenção de eventuais crises internacionais por meio da criação de um fundo misto sino-venezuelano (MARTINS, 2015). A partir de 2007 iniciou-se um processo de consolidação dessa parceria sob a luz de acordos comerciais baseados no fornecimento de petróleo mediante abertura para empresas chinesas, tais como a China National Offshore Oil Corporation, China National Petroleum Corporation e Sinopec (MARTINS, 2015).
Como já fora supracitado, de acordo com Nunes (2018), a estrutura demográfica assustadora da China, seus intensos esforços de urbanização, e toda a modernização do consumo que tem sido realizada nas últimas décadas, constituem fatores de instabilidade em termos de segurança energética. A segurança energética é essencial para a estabilidade doméstica de qualquer nação, e no caso da China isso se torna mais peremptório: de acordo com Sutter (2016) a prioridade da China é dual, envolve estabilidade doméstica (fundamental para sobrevivência do regime) e crescimento econômico. Robustez energética garante ambas as prioridades.
Desta forma a China encontrou na Venezuela uma série de potencialidades para lidar com a necessidade de reduzir sua vulnerabilidade energética, em decorrência de três características principais: (1) a localização do país caribenho, que permite uma diversificação geográfica no que tange às fontes de petróleo chinesas; (2) a abundância de petróleo existente no mesmo, detentor das maiores reservas mundiais deste artigo; (3) e o distanciamento político entre Venezuela e EUA (NUNES, 2018), algo que não só permite um enquadramento mais assegurado como também facilita que a China desafie a unipolaridade americana (RATLIFF, 2006), inserindo-se em uma região historicamente submetida ao poderio estadunidense. Para ilustrar a importância dada pelo governo chinês à Venezuela, pode-se citar a iniciativa, por parte da China, de elevar as relações entre os dois países ao status de comprehensive strategic partnership em 2014 (YIN-HANG, ACUNÃ, 2018).
A Venezuela por sua vez, vislumbrava o modelo de cooperação Sul-Sul como o meio mais adequado para distanciar-se de um regime de dependência em relação aos EUA (YIN-HANG, ACUNÃ, 2018), iniciativa basicamente orientada pela necessidade de cumprir com os ditames do panfleto ideológico bolivarianista (RATLIFF, 2006). O país, segundo Nunes (2018), percebeu a China como alternativa de financiamento diante de um contexto de globalização financeira hostil a países com posturas contestadoras em relação à Washington, que possuem sérios problemas de acesso aos fluxos de crédito das instituições financeiras internacionais — outrossim, privilegiando-se da ausência de exigências políticas por parte da China para a execução desses financiamentos. Chávez percebia a China como uma parceira crucial capaz de concretizar, mediante a inserção de capitais na produção de petróleo do país, suas agendas doméstica e internacional.
A relação entre os dois países, portanto, acabam sendo baseadas em duas principais características de caráter complementar: por parte da China existe a clara prioridade de assegurar sua segurança energética; enquanto por parte da Venezuela há a percepção de que essas relações possibilitam a continuidade da ação, empreendida pelo Estado venezuelano, de “sembrar el petróleo”: utilizar a principal commodity do país para fins de desenvolver as capacidades internas do mesmo. O questionamento levantado, de acordo com Yin-Hang e Acunã (2018) é se essas relações, para além da retórica de cooperação, não residem no plano de uma “dependência rearticulada”, ou até mesmo “neo-extrativista”, onde o Consenso de Washington fora substituído pelo “Commodities Consensus”, aprofundando mais ainda a dependência venezuelana em relação ao petróleo
A título de exemplo pode-se mencionar o contraste existente entre a ênfase na cooperação Sul-Sul, e mesmo na defesa de sua segurança energética, professada no nível retórico pela China, e as iniciativas por parte das companhias chinesas, que buscando maximizar seus lucros, vendem parte de suas importações de petróleo cru venezuelano para os EUA (YIN-HANG, ACUNÃ, 2018), explicitando ainda mais o distanciamento de paixões ideológicas por parte da China quando o assunto é a realização de seus interesses.
Para concluir creio que seja pertinente reiterar as dinâmicas usuais dos centros de gravidade da produção de petróleo globais. A produção da commodity hoje se encontra majoritariamente assentada em áreas pouco amigáveis no Sul Global. Isso representa um risco tremendo para a necessidade de um fluxo ininterrupto de fornecimento de recursos energéticos. Além da iniciativa de diversificação de fontes, capaz de lidar com essa insegurança, geralmente busca-se assegurar tais espaços mediante a presença militar. Segundo Klare (2008), subsidiado pelo que fora exposto pelo Departamento de Defesa Americano em 2006, existe a crença de que as autoridades chinesas já encontravam-se dispostas a utilizar o uso da força para proteger a vulnerabilidade dessas linhas de suprimentos. As mobilizações e recrudescimento militar no mar do sul da China e as dimensões militares da presença da mesma na América do Sul não podem ser contemplados como eventos isolados, sob a pena de incorrer em um erro de cálculo estratégico já prenunciado por Sun Tzu há 2500 atrás. Afinal, segundo o antológico estrategista chinês (KISSINGER, 2011) tais eventos são inexistentes.
Uma Ousadia Renovada e o Mesmo Pragmatismo
A quinta geração de líderes protagonizada, segundo Yizhou (2014), é caracterizada por uma profunda autoconfiança, alicerçada em um sinocentrismo revigorado, e em um consistente senso de singularidade, orientada por uma consciência global. Um dos objetivos prioritários definidos em 2012, pelas novas lideranças, é tornar a China a maior potência econômica mundial até 2049 (YIZHOU, 2014). Para tornar esse projeto sustentável será necessário dispor de recursos de poder suficientes para municiar ações modeladoras da China quanto a construção de uma ordem internacional que reflita seus interesses (CHEN; CHANG, 2013).
No entanto o exercício deste poder deverá estar fundamentado em amplas capacidades materiais, dentre elas uma capacidade energética consonante às suas aspirações. A percepção desta fatalidade por parte da China se reflete nas iniciativas globais de diversificação de suas fontes energéticas e em sua presença na Venezuela, o país com as maiores reservas de petróleo do mundo. Isso se explicita quando diante de uma Venezuela ostracizada por boa parte dos membros da comunidade internacional (GOZZER, 2019) acaba usufruindo de vultosos investimentos por parte da China, que ao fazê-lo demonstra não só a firmeza do gigante asiático em buscar atender os interesses nacionais, como também a capacidade de confrontar deliberações estadunidenses, orientando-se por prioridades pragmáticas alheias a juízos de valor, mediante uma ação estratégica.
Referências Bibliográficas
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