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Acesso à alimentação saudável, soberania alimentar e decolonialidade nas Relações Internacionais

Apesar da crise mundial, ainda são relativamente poucos estudos do campo de Relações Internacionais que trabalham com a fome e soberania alimentar. Dessa forma, este artigo busca levantar possíveis caminhos de pesquisa e análise acerca da transformação dos hábitos alimentares e acessibilidade a alimentos saudáveis ao redor do globo sob a ótica do que importantes organizações internacionais como a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) relatam sobre a conjuntura internacional.

Assim, o artigo propõe olharmos para o último relatório do estado da insegurança alimentar da FAO de 2020, que apresenta dados riquíssimos para a discussão e foi pouco discutido no Brasil. O relatório é bastante extenso, e se encontra dividido entre: 1) a análise anual do estado da insegurança alimentar, 2) a capacidade de acesso a alimentação saudável mundo afora, e 3) o impacto das dietas no meio ambiente. Cada assunto merece uma análise própria, e aqui focaremos no segundo. A partir do relatório, será discutido as falhas do sistema alimentar internacional e a decolonialidade, tendo como base a situação brasileira durante a pandemia. Espera-se que este artigo possa contribuir para o fortalecimento de uma agenda de pesquisa sobre fome e soberania alimentar dentro das relações internacionais.

Metodologia do estudo da FAO

Antes de iniciar, como a metodologia empregada pelos pesquisadores da FAO é bastante complexa, cabe uma seção específica para apresentá-la. Na análise da capacidade de acesso a alimentos saudáveis, foram separadas três dietas: de calorias suficientes, adequada nutricionalmente, e dieta saudável (que além de nutricionalmente adequada, inclui mais variedade de alimentos do que a anterior).

Utilizando como metodologia o cálculo de 2.329 kcal diário em todas as dietas, que representa o consumo médio de uma mulher adulta em idade reprodutiva, a FAO pode estimar a acessibilidade ou não das pessoas aos alimentos. Além desse cálculo, a organização também utiliza dados de 2017 dos preços dos alimentos por países disponíveis pelo Banco Mundial (mais recente disponível para todos os 170 países), e dados da distribuição de renda também do Banco Mundial, mas do ano de 2018 (não havia a disponibilidade dos dados de 2017).

Foi comparado, também, à linha internacional de pobreza do Banco Mundial, que estabelece 1.90$ dólares por dia/per capita, dos quais 63% são usados com alimentação. Na medição do acesso à dieta nutricionalmente adequada e à dieta saudável, o percentual calculado de gastos com alimentação chegou até 95% da renda. Entretanto, a FAO faz a ressalva de que a porcentagem gasta com alimentação varia conforme os países e que este percentual foi exagerado e a realidade é ainda pior. Além disso, o cálculo da dieta foi baseado nos alimentos com menores preços possíveis, o que tende a causar distorções aos números reais, podendo estes serem bem maiores.

Antes de iniciar, cabe ressaltar que há uma aparente inconsistência entre os dados sobre insegurança alimentar severa ou moderada e do acesso à dieta saudável, uma vez que são pesquisas diferentes. Enquanto para o primeiro a FAO aponta que 20.6% da população brasileira sofre de insegurança alimentar moderada ou grave, o segundo indica que 14.5% não têm acesso à dieta saudável. Essa inconsistência pode ser explicada por alguns fatores, sendo o principal o percentual de 68.3% da renda familiar destinada a alimentação, que na realidade pode ser superestimado como aponta a própria FAO. O IBGE (2020) constatou que o percentual da renda gasto com alimentação dos domicílios brasileiros é de 22,13%.

Mesmo assim, estes dados não podem ser desprezados; apenas não é possível relacionarmos diretamente os de acesso à alimentação saudável com os de insegurança alimentar por se basearem em metodologias e períodos diferentes. Isso não invalida a comparação entre os países e regiões dentro dos mesmos dados. Além disso, são os únicos dados quantitativos que comparam a situação de todas as regiões do mundo, sendo, portanto, imprescindíveis para análise do sistema alimentar internacional, ainda que devam ser tomados com cautela.

O acesso a dietas saudáveis no mundo, segundo a FAO

O enfoque da FAO em analisar o acesso a dietas saudáveis ocorre para amadurecer a discussão em torno da fome, fugindo cada vez mais na rasa discussão produtiva e de acesso a qualquer tipo de alimentos. A organização agora entende, assim como há anos os movimentos sociais camponeses reivindicam (FORUM FOR FOOD SOVEREIGNTY, 2007), que não basta garantir a quantidade de calorias mínimas por pessoa, precisamos caminhar na garantia de comida de qualidade para todos, visando o direito humano à alimentação adequada em sua excelência.

Contudo, sabe-se que não é apenas a possibilidade de acesso financeiro que determina a escolha alimentar, essa é apenas uma das variáveis, mas das mais importantes. Assim, há fortes evidências de que alimentos saudáveis mais caros e alimentos ultraprocessados mais baratos têm contribuído para aumento do sobrepeso e obesidade (FAO,2020; MONTEIRO et al, 2013; OTERO et al, 2018). Esta relação foi percebida não só nos países mais ricos, mas também entre os com menor renda. 

Conforme aumenta a renda e desenvolvimento econômico, aumentam os índices de sobrepeso, obesidade e problemas de saúde relacionados, fatores percebidos nos EUA, em países europeus, Brasil, China, Índia, México e África urbana. Isso é o que Otero e colaboradores (2018) denominaram como avanço da dieta neoliberal, baseada nos padrões de consumo dos Estados Unidos e Europa, com predominância de carne vermelha e alimentos ultraprocessados com alto teor de açúcar, gordura e sódio.

De acordo com a FAO (2020), o acesso à comida é, em geral, definido pelo acesso físico (estabelecimentos próximos, produção própria, et al) e econômico (capacidade de comprar tais alimentos). O relatório constata que globalmente é produzida quantidade necessária de alimentos para que não houvesse fome em lugar algum – o que já sabemos desde Geopolítica da Fome, de Josué de Castro (1959) –, mas a distribuição geográfica e também por renda dentro dos países é a principal dificuldade, sobretudo quando se fala de dietas saudáveis e variadas.

Como era previsto, os países mais ricos apresentaram a maior taxa de acesso a dietas saudáveis, mas também a maior taxa de obesidade adulta. Na América Latina e no Caribe, a taxa de obesidade adulta também foi alta, e apresentou custo maior de dieta saudável (3.98$) do que os países ricos (3.43$). A FAO constata evidências de que os custos de alimentos frescos e saudáveis, além dos de origem animal, são, em média, mundialmente mais altos do que os de alimentos ultraprocessados, com alto teor de gordura, açúcar e sal, ainda que isso varie de acordo com cada país. 

Nos países mais ricos, os alimentos ultraprocessados são mais baratos que os frescos e saudáveis. O mesmo constatou Otero e colaboradores (2018) em relação aos países centrais, mas com fortes tendências em países como México e Brasil. Neste sentido, Maia e colaboradores (2020) puderam observar que a tendência de preço dos ultraprocessados vem caindo no Brasil, com a previsão de em 2026 estarem mais baratos do que alimentos frescos.

O custo da dieta de calorias suficientes foi mais baixo na América do Norte /Europa e Oceania (0.54$ e 0.55$ respectivamente) e a América Latina e Caribe apresentaram o maior valor (1.06$). O custo médio de uma dieta saudável foi 60% maior do que a nutricionalmente adequada, que por sua vez custa quase cinco vezes o da dieta de calorias suficientes. A média global da dieta nutricionalmente adequada foi de 2.33$ e da dieta saudável de 3.75$ por pessoa por dia. Por região, a América Latina e o Caribe novamente foi a mais cara em relação à dieta saudável (3.98$), enquanto a Oceania a mais barata (3.06$).

Em relação ao grau de desenvolvimento, é curioso observar que a dieta nutricionalmente adequada foi mais barata nos países mais pobres (1.98$), mas a dieta saudável foi mais barata nos países mais ricos (3.43$). Cruzando os dados de custo dos alimentos, desenvolvimento por país e da linha internacional de pobreza (que é de 1.90$ por pessoa, sendo 1.20$ para alimentos), constatou-se que a maioria dos países tem capacidade de garantir a dieta de calorias suficientes dentro da linha de pobreza internacional, com exceção de 13 como Bolívia, Equador, El Salvador, Japão e África do Sul. 

No entanto, foi observado que a dieta nutricionalmente adequada e a dieta saudável custam, respectivamente, 2.3 e 3.3 vezes o valor da linha internacional da pobreza na América Latina e Caribe, e 1.9 e 2.6, respectivamente, às vezes mais na América do Norte e Europa. Assim, nenhum país é capaz de garantir acesso à dieta saudável com base nos 1.20$ diários por pessoa da linha da pobreza, e poucos garantem o acesso a dieta nutricionalmente adequada no valor entre 1.20$ e 1.90$ por pessoa.

Estes dados levantam um importante debate sobre os critérios utilizados pela definição da linha da pobreza, sobretudo pelo fato destes guiarem a adoção de programas nacionais e internacionais de transferência de renda, de combate à fome e desigualdade social. Contudo, a FAO entende que como o padrão tomado tem como referência apenas uma dieta de calorias suficientes, se torna um desserviço para o avanço da garantia do direito humano à alimentação adequada. Deve ser questionado se pobreza também não engloba a não capacidade de ter acesso a uma dieta saudável, ou ao menos a uma dieta nutricionalmente adequada.

Além disso, comparando as médias internacional e regionais de gasto percentual da renda com alimentos (tendo como referência os 68.3%), a FAO concluiu que mais de 3 bilhões de pessoas no mundo não são capazes de acessar uma dieta saudável, sendo 1 bilhão a mais do que o número calculado de pessoas em situação de insegurança alimentar moderada ou severa. Destas, 104.2 milhões residem na América Latina e Caribe, contando, ainda, com mais 18 milhões de pessoas na América do Norte e Europa. Mesmo considerando somente os países mais ricos, ainda são 19.2 milhões de pessoas sem poder consumir uma dieta saudável, e 12.1 milhões sem acessar uma nutricionalmente adequada.

Por uma descolonização da alimentação

Somente por estes dados poderíamos tomar algumas discussões. Os dados mostram que mesmo nos países ricos, aqueles que poderíamos considerar “vencedores” dentro do sistema moderno-colonial, quase 20 milhões de pessoas ainda não têm capacidade de acessar uma dieta saudável – mesmo com um percentual de renda bastante alto e irreal. Isso só torna ainda mais evidente a falência da distribuição de renda e do sistema alimentar mundial. 

Outra questão é quando olhamos os dados da distribuição de tipos de alimentos pelo mundo. Os países de renda média/alta (que inclui Argentina, Brasil e México, por exemplo) são os países, juntamente com a Ásia, que mais têm disponibilidade de frutas e vegetais dentro de seus territórios, mas quando se observa o custo de uma alimentação saudável, é bem maior do que dos países ricos (3.95$ contra 3.43$). Ou seja, quem produz vende mais caro para sua população do que para quem compra.

Ainda, é observável o caminho da homogeneização dos hábitos alimentares tomando como referência os países ricos, com base em uma idealização do desenvolvimento. Ora, como tomar como modelo de desenvolvimento e alimentação países que apresentam as maiores taxas de obesidade? Que sequer são capazes de zerar as taxas de fome e de garantir acesso universal à alimentação saudável? Para piorar, nestes países observa-se uma diminuição da quantidade de frutas e vegetais disponíveis, perdendo espaço para alimentos ultraprocessados. Mesmo com tantas evidências, o relatório da FAO constata que quanto mais os países se “desenvolvem” mais seguem o modelo dos países ricos. 

O avanço da dieta neoliberal (OTERO et al, 2018) está diretamente relacionado à colonização e colonialidade. Tanto em Geografia da Fome (1948) quanto em Geopolítica da Fome (1958), Josué de Castro já apontava os laços entre a produção da fome mundial como um produto do sistema moderno-colonial capitalista. Além da completa destruição do território e da organização dos povos colonizados, os europeus atacaram diretamente o conhecimento local, impondo o seu modo de pensar e produzir, o que afetou diretamente a produção da fome. Castro (1948) detalha essa questão ao analisar o problema da fome e subnutrição no nordeste brasileiro, mais especificamente a região da Zona da Mata. Se antes continha grande diversidade na vegetação típica da Mata Atlântica, foi na colonização que se iniciou sua destruição ao implementar a monocultura da cana-de-açúcar. 

Entretanto, o processo teve resistência de escravos e indígenas, que seguiram plantando às escondidas diversos alimentos, como mandioca, feijão, milho, et al, que tinham como objetivo seu próprio sustento e fazia parte de sua cultura alimentar. O colonizador, contudo, não permitia e destruía todas as plantações, impondo única e exclusivamente seu modo de pensar e produzir. Homens com um ciúme de suas terras maior do que de suas mulheres e horrorizados com o perigo de que estas terras se rebaixassem devassamento a produzir qualquer outra coisa que não fosse cana. Qualquer coisa menos nobre, seja de cultura índia ou negra — mandioca, milho, amendoim, feijão (CASTRO, 1948, p. 135).

Com o passar dos anos, a região tão desmatada passa por um processo de desertificação com a fome e a subnutrição assolando boa parte da população. Além disso, Castro (1948) constata uma assustadora monotonia alimentar na região, com exceção dos quilombos e territórios indígenas que resistiram à perseguição e mantiveram suas culturas alimentares. Porém, mesmo nessa época, diversos camponeses perderam esse conhecimento que hoje chamamos de agroecológico e passaram a reproduzir as técnicas dos colonizadores.

Investigando como isso aconteceu, Josué de Castro (1948) constata que além da perseguição direta a quem ousasse romper com a mentalidade moderno-colonizadora, os grandes latifundiários criaram diversas superstições populares, tabus, para evitar que as pessoas consumissem determinados alimentos, como dizer que “melancia comida no mato logo depois de colhida dá febre, que manga com leite é veneno, fruta pouco madura dá cólica” (CASTRO, 1948, p. 153) e diversos outros que persistiram duradouros, evitando que a população consumissem.

Ao tratar de África, com base em estudiosos dá época, afirma que “[…] antes da colonização europeia, o negro se alimentava bem, à base dos recursos que desenvolvera na região, e como a economia mercantilista do colono europeu foi nociva às condições de vida desse povo” (CASTRO, 1948, 131). No entanto, a colonização ao modo de pensar e produzir se mantém firme e forte, ainda que com resistência. Nos tempos atuais, Marion Nestle (2019) analisa como as grandes empresas dos países centrais (sobretudo EUA) investem pesadamente para passar a imagem que seus alimentos ultraprocessados são saudáveis, sendo uma das principais ferramentas de expansão da dieta neoliberal mundo afora.

Toda essa discussão faz parte do que autores como Lander (2000), Mignolo (2007) e Castro-Gómez (2007) denominam de colonialidade do saber. A descolonização passa também por romper com a idealização dos países ricos, ao olharmos para nossos alimentos e povos e desenvolvermos um sistema alimentar com base na nossa cultura, nos alimentos regionais, na variedade alimentar tão característica do Brasil e da América Latina.

Evidentemente a questão não é só em relação a colonialidade do saber, mas sobretudo pela desigual divisão internacional do trabalho e da atribuição para os países periféricos, como a América Latina, o papel de prover de alimentos ao mundo, mesmo (ou sobretudo) que isso signifique priorizar o abastecimento dos países ricos e não de sua própria população. É exatamente essa contradição que está sendo exposta sobretudo na crise da pandemia atual, como discutimos aqui em relação ao arroz brasileiro, mas que pode ser estendida ao vermos um recorde brasileiro da safra de grãos (leia-se soja) e aumento das exportações de diversos alimentos, tomate, mandioca, cenoura, alface e o próprio arroz, que por coincidência ou não, apresentaram altíssimos índices de inflação acumulada entre março e dezembro de 2020.

Claro que o problema em si não se resume a exportar ou não esses alimentos, isto apenas escancara a falência do sistema alimentar. Ainda em junho, FAO e CEPAL publicaram um boletim em conjunto pedindo que os países não restringissem as exportações de alimentos sob risco de causar uma crise geral no preço. O Brasil seguiu a cartilha e aumentou as exportações, aproveitando o aumento da demanda já que outros países não a seguiram, mas o resultado foi catastrófico para a população que se deparou com o cenário da tabela abaixo.

PRODUTOIPCA ACUMULADO
Arroz73,5%
Bananas (todos os tipos)25,5%
Cenouras55,2%
Feijão (todos os tipos)59,3%
Laranjas27,6%
Mandioca26,6%
Tomate42,6%
Tabela 1 – IPCA acumulado de alimentos entre março e dezembro de 2020 | Fonte: IBGE

Além disso, tivemos a publicação de duas pesquisas sobre a segurança alimentar na pandemia no Brasil (GALINDO et al, 2021; MALUF et al, 2021), ambas com resultados preocupantes indicando mais de 55% da população em algum estado de insegurança alimentar.  Como nosso foco é sobre os hábitos alimentares, utilizaremos os dados de Galindo e colaboradores (2021). De acordo com as pesquisadoras, apenas 40,6% dos domicílios brasileiros estão em situação de segurança alimentar, sendo que 15% estão em situação de grave insegurança alimentar – a fome aguda. Ainda, o consumo de alimentos saudáveis diminuiu expressivamente, sobretudo de frutas e hortaliças, como demonstra o gráfico abaixo.

Acesso à alimentação saudável, soberania alimentar e decolonialidade nas Relações Internacionais 37
Fonte: Galindo e colaboradores (2021)

A pesquisa mostra também que houve diminuição do consumo de alimentos saudáveis de mais de 85% entre os domicílios em situação de insegurança alimentar, contra de 7% a 15% entre os em segurança alimentar. No mesmo caminho, um estudo do Nupens/USP (ainda em andamento) percebeu aumento do consumo de ultraprocessados entre os menos escolarizados durante a pandemia, e de acordo com a última Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE, antes da pandemia já havia sido registrado aumento dos ultraprocessados em todas as faixas de renda e diminuição do consumo de frutas entre os mais pobres, além da diminuição brusca de alimentos básicos da cultura brasileira como o feijão.

O mesmo se estende por toda América Latina e Caribe, não à toa um outro informe conjunto entre CEPAL e FAO alertou para preocupação com a piora dos hábitos alimentares na América Latina. O Boletim de 10 de julho de 2020 reforça a necessidade de os governos fomentarem a agricultura camponesa, ampliarem os circuitos curtos de alimentos e apresentarem mais subsídios para a produção de alimentos saudáveis em detrimento dos ultraprocessados, com alto teor de gordura, açúcar e sal. 

A piora da alimentação, vinculada com o aumento dos ultraprocessados, passa, também, pela composição das cestas de assistência alimentar feitas nas diferentes instâncias dos governos, muitas vezes recheadas de alimentos ultraprocessados e não de produtos frescos e saudáveis.  O boletim alerta que para a segurança alimentar não basta a quantidade de calorias como se definiu no passado, e sim a qualidade destes alimentos, sobretudo quando problemas vinculados à má alimentação provoca aumento do risco de complicações pela COVID-19.

Limitação da produtividade dos agricultores e falta de transporte de alimentos são alguns dos problemas comuns na região que têm dificultado o acesso a alimentos frescos e saudáveis. Ainda, as organizações alertam para a “promoção e oportunismo publicitário de alimentos” se referindo tanto a grandes produtores de produtos ultraprocessados que fazem doações de produção nocivos à saúde humana como forma de publicidade humanitária, como redes de fast food e aplicativos de delivery que realizam promoções também visando aumentar o consumo de produtos ultraprocessados. Tudo isto resulta no aumento das entregas domiciliares de fast food e maior consumo de comidas prontas, com alto teor de sódio, açúcar e gorduras.

Para tanto, o boletim alerta para a necessidade dos governos, além de fomentar a produção e distribuição de alimentos frescos e saudáveis, realizar campanhas de educação nutricional com a população, reativando comitês multissetoriais de nutrição e promovendo os respectivos guias alimentares nacionais, o oposto do que foi feito pelo governo federal. Quem de fato se empenhou em garantir alimentos frescos e saudáveis para pessoas vulneráveis foram os movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST).

Considerações finais

Isso tudo nos leva de volta para a discussão das diferentes faces da colonialidade feita anteriormente. A tendência apontada pela FAO de quanto maior o desenvolvimento do país maior o índice de consumo de ultraprocessados e, consequentemente, de obesidade, já haviam sido registrados no Brasil pelo IBGE. 

A redução do consumo do feijão e farinha de mandioca em mais de 50%, enquanto o consumo de batata-inglesa se manteve estável, é realmente sintomático para apontar qual caminho estamos seguindo e em quem estamos nos espelhando. Esse processo de homogeneização da alimentação brasileira e mundial como vem ocorrendo aparenta uma forte relação com a dependência dos supermercados, ou o tal supermercadismo (PERES; MATIOLI, 2020). Não parece coincidência que na faixa de renda onde o consumo de ultraprocessados seja o maior, assim seja também a maior dependência de supermercados. É claro que este modelo de supermercadismo foi importado diretamente do centro do neoliberalismo, sobretudo dos Estados Unidos (HAMILTON, 2018).

Quando ressaltamos o olhar para a colonialidade, não estamos colocando-a acima da perspectiva da divisão internacional do trabalho feita pelos marxistas da teoria da dependência; pelo contrário. A discussão da colonialidade feita pelos autores já citados passa por entender e analisar os mecanismos de confirmação e imposição de um modo de pensar aos países periféricos a fim de garantir o sucesso do empreendimento de dominação moderno-colonial-capitalista – a violência epistêmica. Ainda que haja importantes diferencias teóricas entre decoloniais e dependentistas, ambos oferecem ferramentas teórico-conceituais fundamentais para olhar a desigualdade do sistema alimentar internacional, o projeto moderno-colonial e mesmo caminhos de resistência.

Neste caminho, é necessário que se discuta a relação de dependência à exportação e importação de alimentos como solução para a fome, quando é o oposto. Ao apresentar os dados das exportações brasileiras não estamos defendendo um isolamento nacionalista, e sim apontando que depositar no mercado internacional a garantia de acesso à alimentos coloca a fome como um risco iminente e global, sobretudo em um sistema capitalista onde as crises são cíclicas (WALLERSTEIN, 2007). Precisamos desglobalizar a alimentação, romper com a dependência externa e caminhar para que os países tenham soberania alimentar – e a saída não é técnica, e sim política.

Assim como Lima (2014) apontou, Fome e Relações Internacionais constituem uma ampla e importante agenda de pesquisa a ser explorada. No entanto, ainda se discute muito pouco na área, principalmente sobre os debates da decolonialidade e da soberania alimentar. Longe de pretender esgotar os temas aqui levantados, o propósito deste artigo foi apresentar caminhos para fortalecimento de uma agenda de pesquisa sobre fome e soberania alimentar dentro das relações internacionais.

Referências bibliográficas:

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CASTRO, Josué de. Geografia da Fome. Editora Antares, 1948.

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LANDER, Edgardo (org.). La Colonialidad del Saber: Eurocentrismo y ciencias sociales, Buenos Aires, CLACSO, 2005.

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