Este artigo propõe analisar as implicações causadas ao Brasil, em especial à mulher brasileira, durante o governo Médici. Exploraremos a criação de campanhas publicitárias destinadas a “limpar” a imagem dos períodos de repressão política da Ditadura, promovidas por órgãos públicos voltados para o desenvolvimento do turismo e da exportação cultural. Para atingir esse objetivo, conduzimos uma revisão bibliográfica, buscando enriquecer a compreensão das circunstâncias internas e externas que marcaram o final dos anos 1960 e o início dos anos 1970. Ao longo do artigo, examinaremos as políticas culturais implementadas durante esse período, destacando como contribuíram para estereotipar e erotizar a imagem da mulher brasileira. Buscamos, assim, elucidar os motivos que levaram a tais iniciativas, questionando a lógica por trás do apoio a essas campanhas durante um regime militar caracterizado internamente por censura e opressão.
Introdução
No que tange ao estudo sobre a Política Externa Brasileira ao longo da história, existe uma rica literatura sobre as políticas adotadas durante o período da Ditadura Militar. Entretanto, um dos governos que menos se estuda, é o do período de Emílio Garrastazu Médici, que esteve à frente do Brasil durante o final da década de 1960 e início da de 1970. A partir disso, percebe-se a necessidade de discutir, e desvelar o que ocorreu durante a sua gestão. Por mais que, para muitos autores, seja vista como uma gestão que trouxe poucas atribuições ao Brasil no que tange a política externa, ao longo de uma análise mais precisa, fica claro como o projeto de Brasil Potência, foi fundamental para modificar estruturas não só econômicas, mas também políticas e sociais do país (SOUTO, 2001, p. 4).
Destarte, como pontua Oliveira (2005), durante a segunda metade do século XX, o sistema internacional passou por diversas mudanças, tanto estruturais, como conjunturais, com ascensão e queda de países, processos de independência, crises econômicas, entre outros (OLIVEIRA, 2005, p. 131). Mediante isso, fica claro para os atores internacionais que, independente de alinhamentos políticos, de percepção do mundo como Leste-Oeste e Norte-Sul, todos estão interligados, e existem diversos mecanismos para galgar certo protagonismo, ou pelo menos visibilidade, dentre essa gama de atores, sendo uma destas ferramentas o uso da cultura como instrumento de exportação de valores e influência (NYE, 2004).
Assim, ao longo de mais de um século, o Brasil tem recorrido a abordagens não convencionais da política devido à sua posição no Sul Global, valendo-se frequentemente da cultura como uma ferramenta para exportar influência. Durante o período da Ditadura Militar, especialmente na década de 1970, essa prática persistiu, impulsionada pelas instabilidades internas e pela busca de projeção internacional. Diante desse contexto, a administração de Médici optou por canalizar significativos investimentos no setor cultural, seja por meio de instituições de turismo ou campanhas publicitárias. O objetivo era concretizar a visão do Brasil como uma potência, estabilizando o desenvolvimento interno e fortalecendo a imagem do país como protagonista no cenário internacional (VECCHIO, 2004, p. 12).
Isto posto, por mais que seja uma iniciativa louvável, repercutindo com vários efeitos positivos ao longo da história do Brasil, no que tange a política de diplomacia cultural, durante o governo Médici, se obteve efeitos mais graves do que o senso comum repercute.
Mediante isso, pontuar-se-á, também, o então uso de propagandas sobre o Brasil, retratando-o como “Brasil Paraíso” para higienização da imagem nacional e internacional, e o uso em especial da mulher como atrativo turístico em diversas propagandas do governo, a partir da EMBRATUR (Empresa Nacional de Turismo) e outras instituições, que reforçaram a objetificação feminina, em especial da mulher negra, auxiliando na solidificação das estruturas opressivas que perduram até a atualidade.
Política Externa Brasileira: lidando com uma nova realidade internacional
Ao longo da história, a política externa foi tradicionalmente percebida como uma área destinada exclusivamente à representação dos interesses e objetivos de um país, projetando-os no cenário internacional. Essa visão, fundamentada na prerrogativa do Executivo e concebida ao longo de décadas sob uma perspectiva monolítica, sofreu transformações significativas diante das diversas mudanças no sistema internacional. Desde a descolonização de nações periféricas até as alterações na distribuição de poder com o fim da Guerra Fria, a política externa brasileira passou a ser condicionada por uma complexa interação de fatores. Estes elementos não apenas influenciam, mas também determinam o sucesso, os fracassos intermitentes ou as conquistas parciais na formulação de estratégias que visam beneficiar o âmbito interno do país (OLIVEIRA, 2005).
Dessa forma, torna-se evidente que a política externa brasileira se estruturou a partir de uma combinação de variáveis econômicas e políticas, aliadas às determinações estruturais e conjunturais tanto internas quanto externas. Essas forças orientam os mecanismos da política externa em proporções distintas, dependendo do governo em exercício (OLIVEIRA, 2005).
Frente a essa reconfiguração na ordem mundial, conforme observado por Keohane & Nye (1977), a dinâmica da interdependência entre as nações passa por uma transformação radical devido às novas relações estabelecidas, dando origem a novos padrões de interação. Isso é especialmente evidente devido ao aumento significativo de atores no cenário internacional, impulsionado pela intensificação do fenômeno da “globalização” resultante da revolução tecnológica.
Nesse contexto, o sistema internacional evolui para uma era de interdependência complexa, onde o poder assume uma natureza mais elusiva. O cálculo relacionado ao seu uso e até mesmo o próprio conceito de poder são obscurecidos, uma vez que o Estado moderno se vê sobreposto por outros agentes que emergem diante das transformações sistêmicas no cenário internacional. Essa mudança dificulta, inicialmente, uma compreensão clara da nova realidade internacional (KEOHANE; NYE, 1997).
Todavia, o processo de interdependência não se inaugurou na contemporaneidade, foi potencializado desde a Segunda Guerra Mundial, posto que as relações comerciais entre as nações tornaram-se dependentes mutuamente, até causarem um transbordamento de suas conexões com outras searas. Embora não tenha sido evidenciado, incipientemente, os efeitos da interdependência complexa surgem das transações internacionais, pautadas em fluxos de capital, bens, pessoas e mensagens. Por conseguinte, estes efeitos incorreram em custos ou constrangimentos, fazendo com que o cálculo de ações governamentais fossem modificados, tendo em vista que suas capacidades materiais não eram mais mecanismos indeléveis de outorgar sua relevância na hierarquia internacional (KEOHANE; NYE, 1997).
Desta maneira, o acréscimo de novos atores como organizações internacionais, corporações multinacionais e movimentos sociais transnacionais interferiram na forma dos Estados negociarem por artifício da barganha. Haja vista que seus papéis na nova ordem mundial condicionaram seus engajamentos a causarem influência nos processos e procedimentos de tomada de decisões, sendo anteriormente sob domínio dos países (KEOHANE; NYE, 1977). Mediante estas transformações, a política externa adensa novas diretrizes que lhe fazem ser uma representação de um “esforço intelectual e pragmático de interesses convergentes e/ou divergentes” (OLIVEIRA, 2005, p. 06).
A partir disso, Joseph Nye (2004) inaugura o conceito de soft power, dentro do vocabulário internacionalista. Definindo como:
“[…]a capacidade de obter o que você quer através de atração, em vez de coerção ou pagamentos. Surge da atratividade da cultura, ideais políticos e políticas de um país. Quando as nossas políticas são consideradas legítimas aos olhos dos outros, o nosso poder brando é reforçado” (NYE, 2004).
Não obstante, as recentes reflexões sobre a realidade internacional passaram a incorporar a cultura como um elemento significativo nas relações internacionais. Apesar de, em muitas ocasiões, a dimensão cultural ter sido relegada a um papel secundário, considerada por vezes como subproduto das dinâmicas políticas e econômicas conduzidas pelos Estados, como indicado nos escritos realistas clássicos, que precederam a reconfiguração do panorama mundial (SUPPO, 2017, p. 16-21).
Entretanto, desde as agitações no sistema internacional, especialmente com a multiplicação de identidades decorrente do surgimento de novos Estados no palco mundial, o elemento cultural passou a ser reconhecido como um fator intrínseco. Isso destaca a crescente importância da dimensão cultural para compreender a complexidade das relações internacionais.(ROSENAU, 1980).
Ademais, conforme Milza apud Suppo (2017), as questões culturais ganham peso explicativo para o novo cenário internacional, já que a cultura, avaliada em sua acepção ampla, trata-se de objetos simbólicos não somente criados e consumidos por uma sociedade, porém, também difundidos. Portanto, não se explica somente como fator das relações internacionais, mas como agente, visto sua capacidade de orientar o sentimento público e de modelar mentalidades.
Por conseguinte, por não ser um espaço restrito, principalmente, ao se encarar a sociedade internacional preenchida por vários atores, abrangendo para que outros grupos diversos pudessem intervir também nas formas de operar o fator cultural, sendo de forma explícita ou oblíqua, o mundo torna-se cada vez mais complexo (SUPPO, 2017, p. 13-15).
Desde então, a sociedade internacional contemporânea traduzia-se em multiculturalismo. Desta maneira, compreendendo a variabilidade do cenário internacional, bem como a redundância de analisar a política internacional por variáveis econômicas, políticas e militares sem levar em conta a dimensão cultural, portanto, a nova realidade mundial urgia adequações. O mundo do avanço tecnológico, fomentador da era da informação, favoreceu uma concepção esclarecida de como a cultura pode ser um fator determinante para compreender tanto o funcionamento do sistema internacional como o comportamento dos atores internacionais (SUPPO, 2017, p. 39-41).
A política externa no governo Médici
Destarte, percebe-se que o sistema internacional, especialmente em meados das décadas de 60 e 70, esteve em constantes transformações, onde, por mais que ainda fosse vigente a bipolaridade, ocorreu uma espécie de “esfriamento” das disputas Leste-Oeste, além do questionamento da hegemonia estadunidense e da multipolaridade econômica. A partir disso, diversos países emergem no cenário internacional, tais como Japão, Alemanha, México etc, uma vez que, agora, possuem maior margem de manobra, podendo assim, questionar também o sistema internacional do trabalho vigente (OLIVEIRA, 2005, p. 131).
Isto posto, um dos países que esteve inserido neste contexto, por ser um grande produtor de petróleo, foi o Brasil. Especialmente no final da década de 60, e início da de 70, o país vivia o que ficou conhecido como “Milagre Econômico”, em detrimento dos projetos políticos e econômicos das gestões dos primeiros governantes da ditadura militar. A partir disso, existem diversas explicações para este feito, tais como a adoção de políticas monetária e creditícia expansionistas e os incentivos às exportações, conjuntura internacional favorável, e reformas fiscais, tributárias e financeira (VELOSO; VILLELA; GIAMBIAGI, 2008, p. 222).
Em meio a estes cenário favoráveis, cresce então no país, um sentimento ufanista, de não só questionamento das estruturas postas do sistema, em detrimento de influências do que ficou conhecida como Política Externa Independente (que prioriza valores como autonomia, desenvolvimentismo e multilateralismo), como também a crença de que o Brasil poderia se tornar um protagonista no sistema internacional (OLIVEIRA, 2005, p. 133).
De acordo com Souto (2001), é neste cenário que se instrumentaliza o que ficou conhecido como “Brasil Potência”, o então jargão do governo de Médici, que por mais que não tenha sido utilizada de forma oficial, em detrimento dos projetos políticos e econômicos que Médici estrutura para o Brasil, a expressão se populariza não só por apoiadores, mas também outros setores da sociedade brasileira, e inclusive estrangeira, sob a crença de que o país vivia um momento de grande prosperidade e poderia cristalizar o desejo de protagonista global:
“A associação da ideia de “Brasil Grande Potência” com o governo Médici é quase de senso comum. A expressão era corrente na imprensa, nos discursos e declarações de políticos, bem como nas censuras dos analistas latino-americanos. Na verdade, o ufanismo relacionado ao “Brasil Potência” forneceu farta munição para os estudiosos de geopolítica latino-americanos, bem como para os opositores do regime. […] O I Plano Nacional de Desenvolvimento (1971) é mais específico e apresenta como objetivos-sínteses a manutenção do Brasil na lista dos 10 países de maior nível global do PIB […] Nenhum dos dois documentos apresenta a expressão “Brasil Potência”. Mas é lógico que pela abrangência e objetivos ambiciosos, ambos representaram uma espécie de versão oficial do “Brasil Potência” (SOUTO, 2001, p. 45-47)
Isto posto, durante a gestão de Médici, no que tangem as rupturas, não existia mais o alinhamento automático às potências, em especial os Estados Unidos, como no governo de Castelo Branco, tampouco o direcionamento aos países do Terceiro Mundo, como o que ocorreu na gestão de Costa e Silva. Mediante isso, Médici então objetivava a ascensão do Brasil, ao patamar de protagonista, especialmente por meio dos “esforços internos”, que nada mais era que os projetos políticos, econômicos e sociais do governo (OLIVEIRA, 2005, p. 138).
De acordo com Vecchio (2004), esse projeto de projeção internacional foi dado especialmente de forma retórica-nominativa, onde buscou a manutenção das relações amistosas com países de diversos alinhamentos políticos. Mediante isso, a criação do ideário de Brasil Potência, além do esforço econômico, se deu também pelas ferramentas “não convencionais” da política internacional, daquela época, o então soft power (VECCHIO, 2004, p. 192).
Sendo assim, um dos pilares de sustentação do imagético da grandeza brasileira foi dado através da criação de várias instituições, durante a década de 70, que serviam não só como ferramenta de projeção internacional, como também de tentativa de acalmar as instabilidades internas (ALVES; NASCIMENTO; FREITAS, 2018, p.3) A partir disso, vale ressaltar, que durante o governo de Médici, o Brasil esteve inserido em um contexto internacional favorável e internamente vivia um dos períodos mais turbulentos e repressivos da época da Ditadura Militar, tendo a edição do AI-5 e agregando-se diversos casos de repressões e torturas (SCHWARCZ; STARLING, 2015).
Por conseguinte, diversos artistas, dentre eles Rita Lee, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Gilberto Gil, iniciaram diversos movimentos de resistência, tais como o que ficou conhecido como Tropicália, seja no Brasil, ou internacionalmente (os que estavam exilados), como forma de denúncia à ditadura vigente (SILVA, 2019, p. 23). Desta forma, como uma alternativa de contrapropaganda ao que era denunciado por estes artistas, em especial internacionalmente, foram criados o Instituto Nacional de Cinema (INC), o Conselho Nacional de Cultura, a Embrafilme e a EMBRATUR (Empresa Brasileira de Turismo) (ALVES; NASCIMENTO; FREITAS, 2018, p.5).
Destarte, vale ressaltar principalmente o papel da EMBRATUR, de acordo com Kajihara (2008), as principais funções da instituição eram de financiar iniciativas que visassem incentivar o turismo internacional. Entretanto, a instituição, em suma, era a maior responsável em estruturar as políticas não só de turismo, mas também dessa esfera de diplomacia cultural, e soft power, onde, quanto maior eram os movimentos de denúncia, maior era o financiamento e institucionalização de políticas que serviam de freios e contrapesos, tanto para a imagem internacional, como nacional. Desta forma, adota-se como propagandas foco três temáticas: Rio de Janeiro, carnaval e a mulher brasileira (KAJIHARA, 2008, p. 40).
Sendo assim, a EMBRATUR fez uso do imagético do Brasil como país exótico, multirracial, e livre, onde não só era um país interessante para se viver, como também para conhecer. Além disso, foram criados também durante o governo Médici o Fundo Geral de Turismo (Fungetur) e Fundo de Investimentos Setoriais (Fiset), além de que, durante a década de 70, o país foi o quinto maior produtor de filmes do mundo, utilizando desta publicidade sob a promessa de que no Brasil se encontraria o hedonismo tropical, onde não mais se teria apenas o Brasil Potência, mas também o “Brasil Paraíso” (ALVES; NASCIMENTO; FREITAS, 2018, p. 7-9 ).
Neste contexto, destacam-se fatores agravantes que desenham uma confusão nítida entre a política interna e externa submetida durante o governo Médici, uma vez que a política externa de sua vigência fez vislumbrar uma concepção inovadora de desenvolvimento, tornando seu projeto de Brasil Potência incomparável a qualquer outro governo (SOUTO, 2001, p. 47-50). Por outro lado, as proeminentes críticas proferidas por Gibson Barbosa[1] das três falácias do subdesenvolvimento, bem como sua vigorosa iniciativa para não retificar a clivagem norte e sul, tornando inédito a diplomacia do interesse nacional, não foram precipuamente arrojados para circunscrever uma imagem distinguível da realidade doméstica (MARTINS, 1975, p. 78-83).
O estereótipo da identidade feminina brasileira: violência simbólica e institucional
Outrora, é pertinente explorar as construções ilusórias que permeiam o cenário nacional, abandonando, em certa medida, a abordagem que simplifica o favorecimento do turismo brasileiro. Uma perspectiva mais sociológica se faz necessária, especialmente quando adotamos uma lente pós-estruturalista, conforme proposto por Ashley (1988). Nessa análise, o Estado é compreendido como uma construção que busca estabelecer a soberania estatal como uma espécie de refúgio, ao criar uma narrativa binária que retrata o que está fora do âmbito nacional como anárquico e propenso à violência, enquanto silencia as inúmeras formas de opressão impostas aos indivíduos.
Essa estrutura narrativa fundamentalmente busca negar as diversas violências, frequentemente perpetradas pelo próprio Estado, seja de forma direta ou indireta, sendo esta última muitas vezes facilitada por sua atuação. É crucial reconhecer esse padrão que obscurece as violações, proporcionando uma compreensão mais abrangente das dinâmicas que afetam os indivíduos e que muitas vezes são negligenciadas pela narrativa instituída (ASHLEY, 1988).
A frutificar tal concepção, levamos em consideração como a matriz patriarcal, engendrada na constituição do Estado, pode suscitar a violência de gênero a partir do estabelecimento de relações sociais assimétricas, fundada nas construções sociais perpetuadoras das desigualdades de gênero com a construção do “ser mulher” e “ser homem”, da mesma forma que, por ser configurado em tal matriz, o Estado torna-se agente causador de determinadas violências. Neste sentido, por intermédio da abordagem de gênero, pode ser notificado por que as definições de papéis sociais são produtos das relações de saber-poder gerados discursiva e performaticamente, bem como, tendo em mente que o corpo é uma construção cultural em que sua totalidade é notada por marcadores da matriz heterossexual (BUTLER, 2018, p. 91-195).
Proeminentemente, a forma como o Estado brasileiro propagava a imagem da mulher brasileira perante o marketing adotado por um órgão público (EMBRATUR), para simbolizar uma característica turística do país, em certa medida, tornou a identidade da mulher brasileira estereotipada como atrativo turístico (KAJIHARA, 2010, p. 7-9). Em razão disso, segundo Gomes (2009), o pós-feminismo deve ser considerado como uma abordagem emancipatória e mais propícia para compreender as questões de gênero por uma ótica que esmiúça as condições sociais construídas historicamente para além de discussões que tratem do ceiling glass[2].
Logo, notado que a violência de gênero pôde ser apresentada e promovida pelo próprio Estado brasileiro, tendo em vista a violência simbólica e institucional operada enfaticamente por construções sociais, orientadas por uma matriz patriarcal, encontramos graves problemas com o que poderia ser leviano sem uma reflexão com o recorte de gênero.
De acordo com Alves, Nascimento e Freitas (2018), por meio de uma revisão bibliográfica do material produzido pela EMBRATUR, das 44 propagandas realizadas, durante o período da ditadura militar, 14 faziam uso da mulher como objeto atrativo, onde 87% delas são de raça negra (cor parda 73% e negra 14%). Além disso, em 59% dos anúncios as mulheres aparecem de frente, ante 18% em que aparecem de costas, e 23% de perfil, tampouco se pode identificar o rosto, reforçando a objetificação da mulher brasileira, em especial negra, nas propagandas realizadas pelo governo (ALVES; NASCIMENTO; FREITAS, 2018, p. 11-12 ).
Desta maneira, seguindo a lógica foucaultiana de arque-genealogia, Gomes (2009) desenvolve uma leitura robusta da construção e uma naturalização acerca dos corpos das mulheres brasileiras, especificamente, as denominadas “mulatas”. Alicerçado na conceituação de Hall (2003) de identidade, tomamos sua forma adjacente às construções históricas interpeladas e representadas conforme os sistemas culturais envolventes. Para afunilar ainda mais tal observação da construção da identidade equivocada da mulher “mulata”, partimos da noção do recorte de gênero constituído por Butler (2008), a qual evidencia as relações de poder assimétricas, e edificam os saberes, ou seja, a definição de quem é o outro, por uso do biopoder de disciplinarização da definição do outro, por sua vez, seguindo uma matriz patriarcal, onde os homens brancos estiveram historicamente no domínio das relações de construção e produção da característica do outro.
Todavia, haja vista a construção social brasileira, adiciona-se o poder colonial usurpado por homens brancos para, portanto, de acordo com Gomes (2009), seguindo uma análise histórica dos discursos que tangem essa estereotipação, emergida diante da gestão de mestiçagem que busca disfarçar o período de aplicação do projeto de branqueamento, o qual foi agregado às configurações de relações de poder, ausentando as vozes negras que se manifestavam por clamores de políticas para combater o racismo e de inclusão da população negra. Além disso, é com apoio da literatura brasileira em sua periodização do movimento modernista e com escritos como Iracema de José de Alencar, que o imaginário da mulher brasileira denominada “mulata” é consolidado e, ao mesmo tempo, erotizado.
O que não foi limitado para o corpo da mulher, o mesmo foi sendo reproduzido acerca das culturas não ocidentais, retificando interpretações totalmente equivocadas do outro, principalmente da cultura afro. Como também, não se bastou em uma única referência, até Gilberto Freyre esteve contribuindo discursivamente para erotização das mulheres negras, tendo como uso o termo “mulata”, Além de sua iniciativa em construir o imaginário de democracia racial que camuflava as lutas de anos dos movimentos negros por inclusão e reparação histórica. Neste sentido, acontece que a replicabilidade, tanto na ciência como na literatura, puderam associar a sexualidade da mulher negra e ainda lhe denominar do termo “mulata”, formulado como pretexto de harmonização racial com discursos e performances que montaram a miscigenação por uma ótica indolor e sem referência qualquer das vozes das retratadas (GOMES, 2009, p. 31-45).
A datar do período da administração Médici, o investimento colossal para usar fotografias das mulheres brasileiras com intuito de expor seu corpo e endossar uma identidade que promovesse uma imagem diferente do que o país vivia de censura, não só contribuiu para potencializar estereótipos acerca da mulher brasileira, como também colaboraram, em certa medida, com o turismo sexual no país (KAJIHARA, 2010, p. 8-9). Concomitantemente, as políticas nacionais e públicas de marketing para o turismo não estampava fotos de mulheres seminuas por pura exibição, era como uma ferramenta mercadológica, posto que, a década de 1970 é o marco do intenso avanço da transição da globalização e dos seus efeitos conjugado ao capitalismo neoliberal (GOMES, 2009, p. 50).
Conforme as análises dos materiais fotográficos, segundo Gomes (2009), tomamos consciência do quão arquitetado foi a vinculação da mulher ao seu corpo como um atrativo turístico, não é à toa que até há uma imagem de diversos corpos de mulheres como uma caixa de texto imensa escrita “atração” na parte inferior do layout e na parte superior o nome “mulher” com o texto preenchido por fotos de brasileiras com biquínis. Além de que, o material foi distribuído por um órgão do governo federal (EMBRATUR), surgisse “a mulata – uma invenção discursiva e performativa de raça, gênero e sexualidade – é consolidada como identidade espetacularizada e vendida como atrativo turístico” desenvolvida, historicamente, desde o século XIX (GOMES, 2009, p. 55).
Conclusão
No decorrer desta pesquisa buscamos, amplamente, mostrar a conjuntura internacional e doméstica no período da administração Médici, bem como, transmitir estudos que revelaram os aspectos adjacentes a sua política externa, como a disseminação de propaganda ilusória no setor turístico para mitigar as características do autoritarismo de seu governo. Diante disso, é nesse ínterim de elaboração e exposição de uma identidade nacional pautada por uma única ótica, sendo ela, a patriarcal/colonial, que trazemos em consideração os efeitos rebotes desta estratégia usada para comercializar uma falsa imagem das realidades tanto dos acontecimentos sociais da época, como também das culturas e identidades não pertencentes aos formuladores deste marketing, homens brancos e heterossexuais.
Assente em estudos que dão destaque a abordagem de gênero, conforme visto, tanto o plano simbólico como institucional corresponderam em marcas danosas de violência contra a mulher brasileira, desde o momento de uma construção de seu corpo objetificado até a formulação dessa identidade, difundida como um atrativo turístico. Neste sentido, para além de um marketing pautado em generalizações e apropriação cultural, sob o domínio de um órgão público atrelado ao governo Médici, considera-se que as intensas ações de simbolização do corpo feminino, operado por uma visão dominante e opressiva, usurparam e conduziram, de forma irresponsável, as funções do Estado de garantir a segurança de seus concidadãos, neste caso, das mulheres brasileiras.
Notoriamente, percebemos que lidar com uso do fator cultural requer um planejamento meticuloso, ainda mais, quando uma estrutura patriarcal e colonial são perpetuados por conta das relações de saber e poder assimétricas que fazem vigorar a violência estrutural e ausência de co-constituição para promoção de projetos que não firam a existência e integridade do outro. Portanto, tornou-se perceptível, segundo as exposições feitas nesta pesquisa, de que as relações de dominação de saberes e produção destes são preocupantes e urgem emergência para se refletir como a matriz patriarcal pode tornar o Estado agente e produtor de violência, precipuamente, quando não há referências às minorias ocupando papéis sociais que pudessem opor ao enquadramento destes comportamentos de aniquilação, seja da identidade, do corpo e da segurança do outro.
Referências
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[1] Chanceler durante a administração de Médici.
[2] Metáfora usada por teóricas feministas retratando uma barreira invisível que obstaculiza as mulheres a alcançarem cargos de alto nível na sociedade.