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O Brasil enquanto potência regional e seus efeitos sobre a integração regional

No âmbito dos processos globais, o que se entende por ordem internacional é, essencialmente, objeto de discussões geopolíticas, uma vez admitido o predomínio dos Estados enquanto sujeitos internacionais (BULL, H, 2002), malgrado o avolumamento de atores. A teorização acerca do sistema internacional, em especial a multipolaridade do mundo pós-Guerra Fria, acompanha uma incursão importante sobre as possibilidades de configuração e tendências no que se refere à aura internacional. Posto isso, atentando-se às assimetrias desse arranjo, parte da literatura coloca em questão quais as frentes de atuação de determinados Estados proeminentes em favor da estabilidade geral. 

Tratando-se, especialmente, do Brasil, sabe-se que a localização geográfica do Brasil no ocidente é importante para sua projeção internacional (Lima e Hirst, 2006). O país figura entre os maiores Estados do mundo em extensão territorial, em questão da América do Sul, é o maior país da região com área superior a 8.510.295,914 Km², seguido da Argentina, com 2.780.400 Km² (IBGE, 2019). Sem embargo, indicadores revelam que o Brasil é a maior economia da região. O país ocupou a 8ª posição no ranking mundial do PIB em Paridade de Poder de Compra (PPC), em 2017, ao passo que o segundo país da América do Sul a aparecer no ranking é a Argentina, na 28ª posição para o mesmo ano. A Colômbia aparece na 31ª posição e o Chile e o Peru aparecem, respectivamente, na 44ª e 46ª posição (CIA, 2019). 

Destarte, tem-se a partir desses dados que em termos demográficos e econômicos o Brasil logra uma posição proeminente na região. A julgar por esses aspectos, e assentado na ideia de determinado Estado enquanto encarregado pela condução da estabilidade, pode-se imaginá-lo como um precursor para a projeção internacional, bem como para o desenvolvimento do continente. Na sequência, uma vez admitido este aparente protagonismo, suscitam-se diferentes abordagens e possibilidades para se pensar a ordem mundial em questão do regionalismo sul-americano. 

Portanto, à luz das teorias de relações internacionais, o presente artigo tem por objetivo geral examinar o protagonismo brasileiro na região, a partir de uma revisão histórica e de literatura. Orientada pelo exposto, enseja-se responder se os elementos aqui avançados conferem ao país a condição de potência regional, e quais as implicações desta para a integração regional na América do Sul. A relevância da discussão reside sobre a latência do tema, haja vista que a contingência do mundo interpela as teorias e abordagens analíticas existentes. Em outras palavras, face ao desmanche da UNASUL, da ênfase no alinhamento unilateral da política externa bolsonarista a Donald Trump, no avanço comercial chinês no continente, bem como outros acontecimentos, faz-se necessário retomar o questionamento de qual o lugar do Brasil no continente. 

Em face ao apresentado, o trabalho organiza-se em cinco seções, sendo a primeira esta introdução, a segunda uma breve revisão de literatura sobre potências e a ordem internacional. A seção seguinte apresenta os elementos que atribuem ao Brasil o lugar de potência na América do Sul, seguido, na próxima seção, de um exame das ações da política externa brasileira para a região. A penúltima seção trata sobre as implicações desta atuação em termos de integração regional e, por fim, a conclusão com a discussão do problema aqui apresentado.

Estados na ordem mundial: hegemonias e multipolaridade

A presente seção tem por objetivo apresentar as teorias de relações internacionais que discutem e tensionam a atuação de Estados proeminentes para a estabilidade e desenvolvimento. Além disso, explora os critérios e elementos que podem tornar determinado Estado uma potência e, consequentemente, ator com capacidade de orientar e conduzir processos.   

Uma vez que para o Direito Internacional tão somente os Estados e as organizações internacionais constituem-se como sujeitos de personalidade jurídica internacional (Neves, 2015), tem-se uma gama de estudos e doutrinas da literatura das relações internacionais que corroboram e/ou interpelam essa colocação. Em primeiro momento, para os realistas, todo o arranjo internacional é resultado da relação de poder entre as nações, isto é, é a relação de forças entre os Estados. Dessa relação, configuram-se cenários hierárquicos em questão de um jogo de soma zero, ou seja, há o mais forte e o mais fraco. Clássicos como Edward Carr e Hans Morgenthau, ambos expoentes do realismo político, trabalham a questão do poder e de como este é, essencialmente, objeto de disputas políticas. Para o primeiro, a governança internacional é “de fato, o governo pelo estado que conta com o poder necessário para o propósito de governar (CARR, E. p.141, 2001)”. E, para o segundo, 

O poder político consiste em uma relação entre os que o exercitam e aqueles sobre os quais ele é exercido. Ele faculta aos primeiros o controle sobre certas ações dos últimos, mediante o impacto que os primeiros exercem sobre as mentes deles (MORGENTHAU, H. p.52, 2003).

No que se refere à natureza da atuação e da interação entre os Estados na esfera internacional, outra vertente teórica das relações internacionais aponta para elementos econômicos e institucionais para discutir o sistema, a saber, o neorrealismo (Lacerda, 2006). Keohane, uma das principais referências dessa doutrina, trabalha a ideia de que regimes internacionais são instituições capazes de facilitar a cooperação, dado que não são orientadas apenas por interesses e poder, como querem os realistas. Com efeito, uma vez que as instituições são criadas e estabelecidas, a figura do hegemon, isto é, do Estado líder que coordena rumo à estabilidade, ainda que sua existência permita algum tipo de cooperação, dificilmente é uma condição necessária para que essa aconteça (Keohane, 1984). Por outro lado, para teóricos como Gilpin (2002) e Kindleberger, a partir da teoria da estabilidade hegemônica, a figura do hegemon é imprescindível enquanto mantenedor do sistema internacional. Somente no cenário cuja premissa do hegemon é verificável, há estabilidade e manutenção da ordem. 

Em terceiro momento, sob outra perspectiva, Gramsci entende que a existência de um hegemon é fundamentalmente relacional, passa por um aspecto de coerção e consenso, isto é, exige, em alguma medida, um “equilíbrio compromissado”. Na ausência desse consenso, o que se tem não é a figura de um líder, e sim, um cenário de dominação coercitiva (Garcia, 2010). Para Cox, assentado na noção de dominação, a hegemonia em si é uma manifestação particular de dominação cuja finalidade é assegurar a supremacia do líder que, no limite, está em busca dos interesses internacionais (ibidem). 

Nas acepções teóricas apresentadas, a multipolaridade do sistema internacional não é objeto central de análise. Nesse sentido, para os fins deste artigo, faz-se necessário adicionar às contribuições mencionadas a noção de um novo mapa geopolítico cujo impacto no sistema regional implica um novo delineamento do mundo em busca de novas lideranças e novas articulações regionais (Serbin, 2009). Deutsch e Singer (1964) também apontam que o crescimento do número de atores independentes é proporcional ao crescimento das oportunidades de interação. Posto isso, aqui importa a ideia de que a multipolaridade existe, e que a figura de um hegemon ou líder, também. O trabalho não irá explorar se este é condição necessária ou suficiente, mas sim os elementos que o atribuem essa prerrogativa, e quais os desdobramentos dessa para a formação de uma liderança voltada para cooperação e para integração na América do Sul. 

Brasil como potência regional

Para Carvalho e Gonçalves (2018), as potências regionais são os países cujas capacidades sobressaem a de seus vizinhos, sem que essa se traduza em uma projeção de poder em nível global. Em tom afirmativo, Lehmann (2017) advoga pela ideia de que o Brasil é o país dominante na América do Sul devido a sua extensão territorial e populacional, a sua economia e ao acesso a recursos naturais. Ao referir-se ao Brasil como monster country, Celso Lafer retoma a classificação de George F. Kennan em que “considerando, na construção desta qualificação, além dos dados geográficos e demográficos, os dados econômicos e políticos e a magnitude dos problemas e dos desafios” (LAFER, Celso, 2000, p.260). Nesse sentido, baseado nas argumentações mencionadas, a presente seção busca apresentar outros indicadores que atribuem ao Brasil o lugar de liderança ou potência regional para, na sequência, explorar a atuação brasileira para a integração regional sul-americana.

Ano: 2018BrasilArgentinaChileColômbiaVenezuelaPeru
Demografia/Geografia
População (em milhões)209.4644.3618.7249.6628.8831.98
Área (Km²)8.810.295,9142.780.400756.1021.138.910912.0501.285.216
Economia e Desenvolvimento
PIB PPC¹ 20173.248.000.000.000922.100.000.000452.100.000.000711.600.000.000381.600.000430.300.000.000
PIB per capita (em U$$)8.92111.68815.9236.6507.2126.947
Total de Exportações (em US$)239.887.754.93361.558.357.42075.481.713.82141.831.520.22087.961.213.304*47.894.102.577
IDH0,7610,830,8470,7610,7260,759
Pesquisa e Desenvolvimento (em % do PIB)1,266**0,533**0,362**0,244***0,199**0,121***
Militar²
Gastos Militares (em milhões de dólares)2817738435546101358.7***2695
Gastos Militares (em % do PIB)1.50.71.93.10.5***1.2
Gastos Militares como % dos Gastos Públicos³3.12.47.111.80.7
Indicadores Demográficos, Geográficos, Econômicos e Militares para Países da América do Sul | Fonte: Adaptação Carvalho e Gonçalves (2018). Dados: IBGE Países.

A tabela acima é uma adaptação da tabela apresentada em Carvalho e Gonçalves (2018) com dados atualizados para 2018, salvo exceções. Em termos demográficos e geográficos, é inquestionável a predominância brasileira sobre os demais países da América do Sul, o Brasil possui a maior população e a maior extensão territorial do continente. Para os aspectos econômicos e de desenvolvimento, o PIB PPC brasileiro é três vezes maior do que o argentino, que é o segundo maior, e mais de 8.000 vezes o venezuelano, que é o menor. O total de exportações brasileiras supera o somatório das exportações argentinas, chilenas e venezuelanas, as maiores na sequência após o Brasil. No indicador de pesquisa e desenvolvimento, especialmente importante para a projeção de um país, o Brasil lidera sobre os demais países com um investimento de 1,266% do PIB. Por fim, para 2018, os gastos militares do Brasil em milhões de dólares superam o somatório dos gastos dos demais países, cujo valor é de U$ 22.219, em aproximadamente 21%. 

Em segundo momento, para os indicadores em que o Brasil não apresenta predominância, segue-se o PIB per capita, cujo valor do Chile é o maior entre os países, com U$ 13.923, seguido da Argentina, com U$ 11.688, e o Brasil em terceiro, com U$ 8.921. Na sequência, para o IDH, o Chile supera a Argentina e o Brasil em, respectivamente, aproximadamente 5,3% e 8%. Em se tratando de gastos militares, apesar do Brasil liderar o número de gastos absolutos em milhões de dólares, a Colômbia é o país que mais investe em termos de porcentagem do PIB, com 3,1%. O Chile ocupa o segundo lugar com 1,9% e, em seguida, o Brasil, com 1,5%. No ano de 2017, a Colômbia liderou a porcentagem de gastos públicos militares, com 11,8%, seguida do Chile, com 7,1% e o Brasil em terceiro, com 3,1%. 

Em face ao apresentado, os dados confirmam, por um lado, a preeminência brasileira para alguns indicadores, liderando em seis variáveis. Por outro lado, os demais indicadores, como PIB per capita, IDH e gastos militares como porcentagem do PIB e dos gastos públicos, tensionam a narrativa de que o país ocupa uma liderança estática na região. Ao que parece, para algumas análises, os indicadores em termos absolutos, como área, população e o PIB, seriam suficientes para figurar o Brasil como potência regional. Com efeito, outras abordagens metodológicas e, consequentemente, outra seleção de indicadores, também poderiam apontar na direção de interpelar a retórica do Brasil enquanto potência regional, a saber, se para a existência de uma liderança algum nível de consenso é necessário (Cox, xxx). Seria interessante verificar a percepção dos demais países da América do Sul com relação a liderança continental do Brasil.

No entanto, a oposição não é verdadeira, em outras palavras, o questionamento da hegemonia brasileira na região não torna, por conclusão, contraditório pensar que o país é prevalecente em alguns aspectos e, por sê-lo, poderia dispor de ações que indicassem para maior atenção na região no sentido de promover integração e desenvolvimento. Isto posto, a próxima seção apresenta uma análise da política externa brasileira para a América do Sul e, na sequência, quais os desdobramentos para a integração regional.  

A política externa brasileira: enfoque para a América do Sul

Segundo Gilpin, há uma associação intimamente relacional, substancial à condução da política externa, para ele, “a natureza do sistema internacional é que determina fundamentalmente a política externa (GILPIN, 2002, p.61)”. Desse modo, admitindo a noção do Brasil enquanto potência regional, a presente seção busca investigar a atuação brasileira no continente, a partir da análise da trajetória da política externa brasileira no período pós redemocratização

O processo de redemocratização formalizado na Constituição Federal de 1988 marca um novo paradigma para a política externa nacional. Ao trazer a tônica regional, o artigo 4º, no parágrafo único, diz: “A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.” (BRASIL, 1988, Art. 4). Nesse contexto, a década de 1980 foi um período marcado pelo momento de transição para o país. No contexto internacional, as políticas do governo de José Sarney traçam novos caminhos de aproximação não apenas com a Argentina, mas também com os demais vizinhos da região. Em 1986, foi assinada a criação do Grupo do Rio, cujos países integrantes eram, além do Brasil, Argentina, Colômbia, Peru, Venezuela, Uruguai entre outros (Prado e Miyamoto, 2010). Segundo os autores, nessa época houve o incremento do comércio regional cujas consequências, e até mesmo finalidades primárias, facultaram maior inserção internacional aos envolvidos, em outras palavras: 


O processo de integração regional entre países da América Latina no governo Sarney foi, portanto, consequência da percepção recíproca de interesses comuns entre países que enfrentavam dificuldades semelhantes de inserção no plano internacional, e que não haviam obtido resultado através das iniciativas anteriores como a Alalc e a Aladi (PRADO e MIYAMOTO,  p.75, 2010). 

Ainda sobre os contornos das relações interestatais na região, aprofunda-se o vínculo entre Brasil e Argentina, encabeçada no governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), já em 1995 (Vigevani e Ramanzini, 2014). Nesse período, o Brasil assumiu a posição de reformar o arranjo da política internacional por meio da promoção da cooperação regional na América do Sul (Lehmann, 2017). Sob o enfoque paradigmático do Estado logístico (Cervo, 2003), busca-se o desenvolvimento brasileiro junto à estrutura do continente. A década figurava como o desígnio integrador da modernização pela internacionalização (Vigevani e Ramanzini apud Przeworski, 2014), e culminou na formação do bloco Mercado Comum do Sul (Mercosul), em 1991, por meio do Tratado de Assunção. Em suma, o governo de Cardoso foi marcado por uma agenda de política externa em busca de autonomia pela integração (Vigevani et al. 2003). 

O que vimos na gestão FHC foi a consolidação de uma política já praticada nos governos Collor de Mello e Itamar Franco, pela qual o Mercosul seria prioritário na agenda brasileira por constituir uma proposta inédita na América do Sul e, ao mesmo tempo, ter caráter de regionalismo aberto, sem exclusão de outros parceiros. (…) O Mercosul seria importante por viabilizar, a partir de uma posição de maior poder, a incorporação dos países às grandes tendências internacionais (VIGEVANI et al. p.35, 2003).

Em outro momento, tratando-se da transição governamental, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) articula uma nova interação em termos de aprofundamento de vínculos na região, dado que no cenário internacional a atenção dos EUA se volta para o Oriente Médio no combate ao terror (Carvalho e Gonçalves, 2018). Das iniciativas regionais, tem-se o projeto do Fundo para Convergência Estrutural do MERCOSUL (FOCEM), em 2005; o Parlasul, em 2006; o projeto de criação da UNASUL, em 2008; o Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento (COSIPLAN), em 2009 e o encontro que reuniu 33 países Latino-americanos e Caribenhos, que originou a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), em 2010 (Carvalho e Gonçalves, 2018). 

Embora a imagem que tenha perdurado durante muito tempo na América do Sul sobre o Brasil fosse a de um país que não priorizava a região, mas sim seu alinhamento com os EUA (Lima, 2005), percebe-se que durante os anos 2000 o Brasil conseguiu reverter o quadro de uma baixa identidade regional. (…) Com efeito, parte do ativismo regional brasileiro se inscreveu nesse movimento de busca por ampliar a capacidade de ação coletiva e obter maior autonomia frente à grande potência, confirmando a sua disposição de assumir a liderança na região (Carvalho e Gonçalves, 2018, p.12 e 13).

A agenda do governo Lula traçava, com prioridade, projetos multilaterais cujos objetivos eram avençar o país enquanto porta-voz da capacidade de negociação e de desalinhamento, nas palavras de Vizentini, “ao consenso do Atlântico Norte” (Pecequilo apud Vizentini, 2008, p.145).  

Na sequência, a política externa do governo da ex-presidente Dilma Rousseff (2011-2016) teve um exercício limitado na região da América do Sul, em partes, devido à emergência de problemas no cenário doméstico, que levaram ao seu impedimento no ano de 2016. À luz dos discursos apresentados pela então presidente, esperar-se-ia que a América do Sul seguisse como prioridade na agenda da política externa, buscando a tendência de permanência dos elementos que assinalaram a presença brasileira no continente (Santos, 2013). No entanto, conforme apontado por Carvalho e Gonçalves (2018), apesar dos compromissos terem sido mantidos, indicando continuidade das políticas da gestão Lula, dissolveram-se as iniciativas de coordenação para a região. Em outras palavras, 

Em relação à América do Sul, Dilma Rousseff procurou manter as estratégias de política externa então em vigor de manutenção da estrutura de governança regional criada e adaptada durante o mandato do Presidente Lula. (…). A ascensão de Rousseff esvaziou a dimensão política do comportamento brasileiro frente à região no que diz respeito às ações do Brasil como ator estruturador das instituições regionais e definidor de agendas, embora a UNASUL tenha seguido sendo a referência de atuação brasileira frente a situações de crise (SARAIVA, M. 2014, p.32). 

Finalmente, sob a atual chefia do Governo Federal, a gestão da Política Externa do governo Bolsonaro (2019) é um ponto fora da curva das tradições diplomáticas do Brasil, é a “diplomacia da ruptura” segundo Spektor e a “diplomacia da subserviência”, segundo Fuser (Rodrigues apud Spektor e Fuser, 2019). Faz-se necessário acrescentar ao que já foi referido em outras seções deste artigo que o projeto em curso da atual chefia do Ministério das Relações Exteriores é o desmantelamento de agendas internacionais não apenas referentes à América do Sul, como outras sólidas plataformas de atuação externa do país. Em se tratando, todavia, da região, a radicalização do ethos ocidental é centralizada, não por acaso, no hemisfério Norte. Rodrigues (2019) diz que:

Em seus 100 primeiros dias, Bolsonaro elegeu os EUA, o Chile e Israel —governados por políticos de direita— como prioridades de sua PEB. Quebrando tradição diplomática nas relações bilaterais, a Argentina, principal parceira na América do Sul, ficou de fora da agenda (RODRIGUES, p.1, 2019).

Por esse alinhamento, foram promovidas mudanças curriculares na formação de diplomatas do Instituto Rio Branco com a exclusão da disciplina referente à história dos países da América Latina. A tração da extrema-direita vinculada às bases ideológicas domésticas logrou a substituição do símbolo dos passaportes brasileiros, recolocando o brasão da República no lugar do símbolo do Mercosul. Na sequência, sobre manifestações nocivas, tem-se o ataque à ex-presidente Bachelet ao defender a ditadura chilena e o apoio a Juan Guaidó como presidente autoproclamado da Venezuela. O carro forte da gestão, porém, é o acordo comercial entre Mercosul e a União Europeia, em que o primeiro retorna a sua atribuição primeira de relevância comercial (ibidem), é objeto de críticas devido às incertezas quanto aos termos comerciais de benefícios assimétricos do acordo e, até mesmo, da efetiva contribuição brasileira para a finalização deste. 

A integração sul-americana

Uma vez apresentada a trajetória da política externa brasileira, a presente seção apresenta uma discussão referente à integração regional entre os países da América do Sul. Com efeito, o exposto demonstra um movimento pendular entre enfoques pragmáticos, estratégicos e omissões. Em outras palavras, a política externa brasileira para a América do Sul é marcada por rupturas entre os intentos de continuidade. De acordo com Lima e Hirst (2006), o fato de o Brasil ter assumido o lugar de liderança para a condução da coordenação na região gerou demandas imprevistas e cujos requerimentos ultrapassam a inquestionável habilidade do Itamaraty. Com efeito, segundo Weiland (2015), ao tratar das iniciativas do Mercosul enquanto estratégia de projeção internacional para o Brasil, percebe-se que, por um lado, há um sentimento de desconfiança de outros países do continente, a saber, Paraguai e Uruguai, quanto aos avanços brasileiro e, inclusive, argentinos. Dessa forma, entende-se que o reconhecimento do país enquanto uma potência regional, dado que alguns indicadores corroboram essa afirmação, não impede a desconfiança de seus vizinhos. 

Na sequência, a não coordenação brasileira que assume o papel de liderança também se manifesta no atraso dos repasses ao Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul. Ao fazê-lo, o país não somente deixa de atuar como líder, mas esvazia a instituição que, em origem, promove o desenvolvimento em conjunto dos estados membros. Sob outro aspecto, conforme Carvalho e Gonçalves (2018), o exercício limitado, no aspecto geral, do Brasil enquanto potência regional cedeu espaço para novos atores que busquem exercer o papel de liderança na região. Na atualidade isso se verifica com o avanço das relações comerciais entre Argentina e China, o que, no limite, esvaece o horizonte da solidificação da integração regional no longo prazo.

Considerações finais

O trabalho buscou realizar um exame que tenciona os elementos que atribuem prerrogativas de liderança ao Brasil, e de que forma se deu o exercício dessa liderança por meio de uma análise da política externa brasileira. Se por um lado alguns indicadores aqui externados admitem o Brasil enquanto potência regional, outros indicadores tensionam essa afirmativa. Sem embargo, quanto ao exercício de liderança enquanto potência regional, entende-se, após um exame, que essa ideia que se verifica em partes, uma vez que se observa uma centralização em determinados governos, no período analisado, da política externa voltada para promoção da integração.

Admite-se que para o cenário do sistema internacional, uma integração sólida entre os países da América do Sul tenderia a interpelar a correlação de forças desse arranjo, em favor dos países cooperantes na busca pela mitigação das assimetrias. Com efeito, não é um debate que se dá por encerrado. Cabe endereçar aos futuros pesquisadores o empreendimento de verificar o que é atributo contingencial e, portanto, não pode ser considerado como efeito residual na atenção da política externa brasileira à região; do mesmo modo, seria interessante verificar, a partir de uma análise de dados sofisticada, se o direcionamento do Brasil enquanto líder regional é um equívoco e, portanto, a direção para a coordenação deveria ser outra. 

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