A Análise do Discurso (AD) constitui uma disciplina específica, interdisciplinar, cujo campo de estudo é mais restrito no interior dos Estudos do Discurso, e que se pauta na linguística, mas que define o discurso a partir de um ponto de vista específico (MAINGUENEAU, 2015). Como disciplina específica, a AD tem seu próprio arcabouço teórico-metodológico que busca reconectar o empírico com o campo teórico mediante formas específicas de interpretação; logo, a AD não se resume a um método (MEYER, 2001), diferentemente da análise de conteúdo, da análise linguística, da análise de conversação etc. (MAINGUENEAU, 2015; FAIRCLOUGH, 2001).
Já a Etnografia perfaz uma metodologia importante para a pesquisa qualitativa e sua finalidade envolve compreender fenômenos sociais através de uma microperspectiva e um caráter holístico que se concentra nos significados que sujeitos atribuem às suas ações a partir do seu contexto natural. Com seus próprios procedimentos e ética de pesquisa, a Etnografia examina a profundidade (entender muito sobre um caso) ao invés da amplitude (entender pouco sobre muitos casos) (PORTA; KEATING, 2008), de modo que seu valor reside no processo flexível de priorizar às descobertas empíricas sobre a formulação teórica (BRAY, 2008). Desse modo, a Etnografia é uma abordagem metodológica, não se restringindo, também, em mero método.
Contudo, ainda que a Análise do Discurso e a Etnografia não se reduzem a método, elas também são métodos, conforme são orientadas por abordagens metodológicas específicas. No âmbito desta atividade, serão discutidos a análise do discurso e a etnografia enquanto métodos qualitativos de pesquisa interpretativa. Cumpre informar, que nem todo método de análise do discurso e de etnografia configura como interpretativo – por exemplo, os métodos de análise de discurso desenvolvidos por Norman Fairclough (2001; 2003) seguem outra abordagem metodológica, a do realismo crítico.
Sumariamente, entende-se como pesquisa interpretativa aquela que segue uma abordagem metodológica com foco no processo de criação de significados que são construídos pela relação dialética entre sujeitos ativos e pesquisadoras/es autoconscientes e autorreflexivos, os quais são inseridos em contextos culturais e políticos específicos e em conjunturas históricas amplas, sem aderir ao léxico, aos pressupostos e a lógica de análise ou explicação causal, ao teste e/ou refinamento de hipóteses existentes e a variáveis ou categorias pré-estabelecidas, referenciais ou provisórias, tal como acontece em pesquisas positivistas e pós-positivistas (PORTA; KEATING, 2008; SCHWARTZ-SHEA; YANOW, 2012).
À vista disso, a análise do discurso enquanto método qualitativo interpretativo tem como propósito conduzir uma interpretação dos processos de produção e interpretação textual, mediante uma postura analítica que atravesse “o efeito de transparência da linguagem” (ORLANDI, 2015, p. 59) para se chegar aos sentidos constituídos no/pelo discurso. Tomando o texto como objeto de análise por constituir a “superfície linguística do discurso” (FREIRE, 2014, p. 13), o acesso à análise do discurso se dá, portanto, pela análise do texto. Isso porque, não há para a análise do discurso uma unidade concreta com o discurso, muito menos um ponto de origem; assim, o texto é como um material bruto que oferece à pessoa analista o acesso à interpretação do discurso (ORLANDI, 2020).
A aplicabilidade da análise do discurso enquanto método qualitativo envolve a coleta e a análise em si. O interessante notar é que pela orientação interpretativa não existe nenhuma linha clara entre coleta e análise (FREIRE, 2014; MEYER, 2001). Tendo a pessoa analista delimitada uma noção discursiva (ou conceito-análise) – que, aliás, pode ser antes e/ou durante o processo de análise –, faz-se a escolha dos textos para compor o corpus, um conjunto mais ou menos vasto de textos ou trechos de um único texto para a análise. A quantidade de textos para compor o corpus é determinada pela saturação. Saturação “é o momento em que [a pessoa] analista percebe a recorrência das propriedades do discurso a ponto de poder dar por encerrado o acréscimo de textos ao corpus” (FREIRE, 2014, p. 21). Mas esse acréscimo de textos não termina antes do início da análise, sendo um procedimento em andamento (FREIRE, 2014; MEYER, 2001).
A análise, por sua vez, decorre, inicialmente, pela identificação de marcas textuais na superfície linguística. Marcas textuais são como pistas do discurso passíveis de serem identificadas pela leitura flutuante dos textos, como, por exemplo, palavras, frases, negritos, modalizações, verbos, locuções, presença do enunciador etc. Através de marcas textuais, a função da pessoa analista consiste em recuperar propriedades e processos discursivos através da identificação de sentidos profundos que não se encontram na superfície do texto (FREIRE, 2014). Quanto maior a competência teórica de AD e do conhecimento em linguística pela pessoa analista, maior será a capacidade de identificação de marcas textuais (FREIRE, 2014). Tendo identificado as marcas, o próximo passo envolve construir o dispositivo e as categorias de análise. O dispositivo de análise não é dado a priori, ele é sempre construído pela pessoa analista a cada análise, sendo, portanto, individualizado, em virtude das especificidades da pesquisa, da natureza do material e do problema e objetivos propostos (ORLANDI, 2015; 2020; LARA, 2020). Assim, é pelo dispositivo de análise – a ser construído – que será possível apreender, examinar e interpretar o corpus de análise.
Cada dispositivo de análise deve envolver categorias linguístico-discursivas (ou dispositivos linguísticos), que também são construídas apenas durante a análise (ORLANDI, 2015; 2020; LARA, 2020), não tendo como fornecer ou indicar uma lista de categorias antes de iniciá-la (MEYER, 2001). Isso ocorre porque é durante a análise que se pode verificar como os textos expressam suas próprias dinâmicas, propriedades e processos linguístico-discursivos. Além disso, a análise do discurso, dependendo fortemente de uma linguagem linguística de categorias, está em um “movimento constante para frente e para trás entre a teoria e os dados empíricos” (MEYER, 2001, p. 27) para a construção de tais categorias. Uma vez construído o dispositivo de análise e as categorias linguístico-discursivas, a escrita do relato da análise do discurso envolve a descrição das propriedades discursivas identificadas com a interpretação dos sentidos a partir da demonstração do funcionamento do discurso a partir de exemplos extraídos do corpus – os excertos (FREIRE, 2014). Desse modo, há um movimento circular constante entre descrição e interpretação. A aplicabilidade do método encerra com um retorno à análise no sentido de apresentar uma visão dos fatos sociais sobre o que foi identificado nos textos (FREIRE, 2014).
Já a etnografia enquanto método qualitativo interpretativo, trata-se da realização de um trabalho em campo com o objetivo principal de adquirir conhecimento profundo a respeito de uma comunidade social e de seus indivíduos (BRAY, 2008). A etnografia, ao combinar descrição e interpretação, fornece uma forma de registrar e analisar informações através da convivência com as pessoas integrantes da comunidade, da adaptação ao ambiente e a cultura local e da utilização de técnicas como observação participante e entrevistas abertas (BRAY, 2008). Como dito anteriormente, nem toda etnografia – ou análise do discurso – tem no seu centro metodológico uma orientação metodológica interpretativa. A etnografia que adota a metodologia interpretativa é aquela que a pessoa pesquisadora parte em campo sem ideias pré-formadas, categorias de análise, conceitos delimitados ou referenciais teóricos, ainda que provisórios; isso porque, foca-se no processo de autoconsciência da pessoa pesquisadora para mergulhar no contexto dos fenômenos a serem estudados para apreender as sutilezas e as complexidades dos significados atribuídos pelos sujeitos a seus objetos e ações de acordo com suas crenças, convenções, relações etc. da sua comunidade (BRAY, 2008).
A aplicação da etnografia abarca três etapas intercambiáveis: a) formulação inicial de sujeito(s) de pesquisa e identificação do objeto de pesquisa; b) coleta de dados; c) redação e análise de material empírico. Cada uma das etapas, que não são isoladas entre si, exige da pessoa pesquisadora reflexão sobre posturas adotadas, visando refinar o estudo final (BRAY, 2008). Assim, a primeira etapa compreende na indicação da direção que a pessoa pesquisadora possa olhar através de conceitos sensibilizantes. Na segunda etapa, a pessoa etnógrafa busca conhecer o seu objeto de estudo ao passar um tempo significativo em campo, exposta a diversas situações, com intervalos regulares, a fim de permitir a reflexão do objeto de estudo com novo olhar; aliás, pode-se partir para o campo sem objeto e/ou problema preestabelecido, apenas com um conjunto de questões, e, realizar uma reformulação do que seria o objeto de estudo e o problema de pesquisa no decorrer da pesquisa em campo. Inobstante, a coleta ocorre durante o trabalho em campo, que pode assumir a forma de notas etnográficas em diários ou outros materiais a serem identificados e coletados, como documentos, artefatos, fotografias, filmes etc. A terceira etapa trata-se da escrita etnográfica, onde o trabalho em campo realizado toma uma forma de redação analítica, cuja interpretação advém dos contatos, observações e anotações. O registro dos achados sempre se dá por meio de descrições densas e autorreflexivas (BRAY, 2008).
Além da própria etnografia enquanto método, métodos e ferramentas de cunho etnográfico podem ser atrelados a ela. Assim, a observação participante perfaz a principal forma de coletar dados na etnografia, que se trata do envolvimento da pessoa etnógrafa com a comunidade de sujeitos que esteja estudando em seu ambiente natural. Nesse processo, busca-se desenvolver um grau de empatia e sensibilidade com os sujeitos e com a comunidade, ao invés de vê-los como mero “outro” objeto de estudo. Outra forma de coletar informações em campo são as entrevistas, que em uma etnografia interpretativa segue com uma estrutura aberta, discursiva ou semidirigida. Discursiva é aquela que se inicia com um relato pessoal da forma como a pessoa entrevistada deseja, escolhendo livremente o que considera relevante, enquanto que semidirigida depende do modo como a pessoa pesquisadora direciona a entrevista para perguntas mais pontuais do seu estudo. E permanecem abertas no sentido de a pessoa entrevistada responder sem qualquer quadro restrito ou questionário delimitado. De toda forma, as perguntas na entrevista não devem sugerir opções ou categorias pré-definidas (BRAY, 2008).
Comparando a análise do discurso e a etnografia enquanto métodos qualitativos interpretativos, uma similaridade entre elas consiste na flexibilidade no uso delas, tendo em vista que as etapas de coleta e de análise interagem entre si, não havendo uma divisão muito clara; fica a critério da pessoa pesquisadora conduzi-las com consciência reflexiva durante o processo de pesquisa. Além disso, os conceitos, as categorias e o próprio dispositivo de análise ou a forma de conduzir a pesquisa em campo são construídos durante a análise, não sendo pré-estabelecidos anteriormente. Outra similaridade é o escopo de generalização. A generalização é bem limitada porquanto as análises são restritas ao corpus da análise do discurso e a investigação em campo de certo contexto natural no caso da etnografia, não podendo realizar suposições para além dos dados e do contexto de pesquisa, pois toda análise é única às condições de produção da pesquisa e as características da pessoa pesquisadora – analista do discurso e etnógrafa. Ainda, a respeito das similaridades, o uso de ambos os métodos exige da pessoa pesquisadora sensibilidade e reflexividade para identificar sutilezas nos textos ou em campo. Contudo, nisso também se apresenta uma diferença: no caso da análise do discurso, a capacidade de identificar sutilezas nos textos advém do quanto a pessoa pesquisadora detém conhecimentos da linguística, enquanto que na etnografia, a capacidade de identificar sutilezas em campo deriva do quanto a pessoa pesquisadora consegue estabelecer empatia com a complexidade da comunidade e seus sujeitos de estudo, e não de um conteúdo teórico.
Partindo, assim, para as diferenças, enquanto a análise do discurso trabalha com um tipo de material de análise e de dados mais restritos, textos e dados linguísticos, a etnografia tem o potencial de trabalhar com materiais de análise mais amplos, como documentos, estatísticas, narrativas, artefatos, práticas, entre outros, refletindo isso na própria diversificação de dados coletados e analisados pela etnografia. Outra diferença está no suporte da teoria: na análise do discurso, a aplicabilidade do método e da construção das categorias de análise envolve um constante movimento entre o empírico e a teoria, afinal, o método da análise do discurso é orientado pela teoria de AD. Já com a etnografia, enquanto método, não se adota necessariamente uma teoria de apoio, podendo ser construída durante a análise, a partir das condições particulares que se apresentam no campo de pesquisa.
Por fim, cumpre apontar uma limitação comum de ambos os métodos. Na etnografia, devido a necessidade de a pessoa pesquisadora passar um tempo significativo em campo, não é possível trabalhar com distintas comunidades ao mesmo tempo. Algo parecido ocorre na análise do discurso porquanto não se trabalha com grande quantidade de textos – como na análise do conteúdo; contudo, a pessoa pesquisadora pode arbitrariamente escolher quais textos representativos e de qualidade serão inseridos em seu corpus, ainda que antagônicos entre si, permitindo, caso deseja, realizar uma comparabilidade. Comparabilidade essa que muitas vezes não é possível na etnografia devido o tempo de pesquisa e mergulho da pessoa pesquisadora em campo.
Referências
BRAY, Zoe. Ethnographic approaches. In: PORTA; Donatella della; KEATING, Michael. (Orgs.) Approaches and methodologies in the social sciences: a pluralist perspective. UK: Cambridge University Press, 2008, p. 296-315.
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.
FAIRCLOUGH, Norman. Analysing Discourse: textual analysis for social research. Routledge: London and New York, 2003.
FREIRE, Sérgio Augusto. Análise do discurso: procedimentos metodológicos. Manaus: Instituto Census, 2014.
LARA, Glaucia Muniz Proença Lara. A semântica global em análise do discurso. In: EMEDIATO, Wander; MACHADO, Ida Lucia; LARA, Glaucia Muniz Proença. (orgs.). Teorias do discurso: novas práticas e formas discursivas. Campinas, SP: Pontes Editores, 2020, p. 79-99.
MAINGUENEAU, Dominique. Discurso e análise do discurso. 1. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.
MEYER, Michael. Between theory, method, and politics: positioning of the approaches to CDA. In: WODAK, Ruth; MEYER, Michael. Methods of Critical Discourse Analysis. London: SAGE Publications, 2001, p. 14-31.
ORLANDI, Eni. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 12. ed., Campinas: Pontes, Editores, 2015.
ORLANDI, Eni. P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Campinas, SP: Pontes Editores, 2020.
PORTA; Donatella della; KEATING, Michael. How many approaches in the social sciences? An epistemological introduction. In: PORTA; Donatella della; KEATING, Michael. (Orgs.) Approaches and methodologies in the social sciences: a pluralist perspective. UK: Cambridge University Press, 2008, p. 19-39.
SCHWARTZ-SHEA, Peregrine; YANOW, Dvora. Interpretive research design: concepts and processes. New York and London: Routledge, 2012.