O conflito entre Índia e Paquistão tem raízes ainda no período colonial, ambos pertencentes às possessões da coroa britânica até o ano de 1947, compondo um único território culturalmente heterogêneo. Além das diferenças culturais entre a população hindu e muçulmana, o conflito também apresenta os interesses territoriais durante e após o processo de independência (ANUNCIAÇÃO, 2013). Ainda que sejam identificadas fases de maior e menor tensão, este ensaio se debruça sobre a Primeira e Segunda Guerra Indo-Paquistanesa e seu desdobramento com a Declaração de Tashkent.
O início do Conflito
Adentrando ao processo de descolonização, a criação de dois Estados independentes se deu considerando as particularidades religiosas e culturais, esta iniciativa foi proposta pela Liga Muçulmana. Este fato impulsionou a criação da Liga Muçulmana, por haver preocupação com relação à representação dos interesses muçulmanos durante o processo de independência. Neste contexto se observa o primeiro contencioso, uma vez que o pelo Congresso Nacional Indiano (CNI) advogava pela união do Estado. A separação em dois territórios em Índia e Paquistão (esta última subdividida em região Oriental e Ocidental) acompanhou a migração em massa de forma ambivalente, tanto pessoas que professam o hinduísmo atravessando a fronteira para a Índia, quanto muçulmanos situados na Índia migrando para o Paquistão. Não apenas a diversidade cultural e religiosa estremeceu as relações, aspectos territoriais e domínio também se somaram ao conflito, por meio da introdução da Caxemira neste quadro (BERTOLUCCI, 2021)
Como evidência de Anunciação (2013), com a separação dos territórios, a administração da Caxemira, governada pelo Marajá Hari Singh, mantinha a intenção de manter seu status na região e a sua independência frente aos dois novos Estados, Índia e Paquistão. Não obstante, grupos opostos ao governo do Marajá iniciaram ofensivas, compostas por tribos de origem paquistanesa, que resultaram na tomada da capital caxemire. Como efeito, Singh solicitou a intervenção militar da Índia, o que resultou na assinatura de um acordo de anexação como forma de legitimação da atuação militar indiana.
Denominada como Primeira Guerra Indo-Paquistanesa, entre outubro de 1947 a janeiro de 1948, o conflito girou em torno da assinatura do documento de anexação entre o Marajá e a Índia. Este período é marcado por contradições no que se refere às condições pelas quais o documento foi assinado. Por um lado, a posição paquistanesa aponta que o acordo foi assinado de forma coercitiva, enquanto a posição indiana salientava que o Marajá concedeu voluntariamente o território. Neste primeiro conflito não foram registrados grandes avanços no que se referia a administração do território da Caxemira. O Conselho de Segurança das Nações Unidas emitiu duas resoluções durante este período, encorajando que o status da região fosse determinado de forma democrática através de plebiscito entre os cidadãos (IQBAL; HUSSAIN, 2018).
A Resolução 47 de Abril de 1948 do Conselho de Segurança foi criada com o intuito de restabelecer a paz e a ordem no território da Caxemira. Além da realização livre do plebiscito, indiferente de aspectos de casta, etnia e religião, também previa a retirada gradual das tropas indianas do território, sem atuar de forma a intimidar ou coagir a população local. Cabia igualmente ao Governo indiano assegurar o retorno aos civis deslocados pelo conflito; facilitar o processo de libertação de presos políticos; a garantir a proteção das minorias.
Entretanto, tal como evidencia Bertolucci (2021), não foram logrados grandes avanços com o final da Primeira Guerra Indo-Paquistanesa, tampouco foi realizado o plebiscito indicado pela resolução acima mencionada. Como resultado, a Caxemira continuou sem uma autoridade central ou independência, sendo dividida em áreas de controle entre os dois novos Estados. Interessante notar que, assim como cita Majid e Hussin (2020), o plebiscito foi uma proposta delineada pelas então autoridades indianas, o Governador Geral e o Primeiro Ministro, a denominar consecutivamente Lorde Mountbatten and JawaharLal Nehru.
A Segunda Guerra Indo-Paquistanesa
O recrudescimento do conflito entre Índia e Paquistão retornou às dinâmicas da região no ano de 1964, com a retomada de revoltas de civis na Caxemira contra a presença das forças militares indianas. Aliado às insurgências, tropas indianas adentraram o território paquistanês criando o estreitamento das tensões entre os dois Estados. Concomitantemente, o Paquistão respondeu aos acontecimentos na Caxemira com o lançamento de duas operações paramilitares de apoio às reivindicações da população, a Operação Gibraltar e o Grand Slam (IQBAL; HUSSAIN, 2018).
Mais especificamente, as operações desenvolvidas pelas Forças Militares do Paquistão, eram voltadas para dar assistência aos movimentos de libertação. As autoridades paquistanesas consideravam as revoltas no território da Caxemira uma reivindicação implícita dos desejos de libertação da população e do território ocupado. Consistia em ofensivas em forma de guerrilha contra as Forças militares indianas situados na Caxemira, infiltrando-se em diferentes localidades e aproveitando-se do enfraquecimento indiano após a derrota no confronto contra a China (1962) e instabilidade interna vivida naquele período com a morte de JawaharLal Nehru. A Operação Gibraltar não sortiu o efeito almejado, resultando na resposta da Índia que atacou as cidades paquistanesas de Lahore e Sialkot (TARIQ; OWAIS,2020).
Faz-se necessário salientar que não apenas a presença militar indiana era a causa das manifestações da população da Caxemira, medidas políticas também causaram revoltas. Como evidência Gauhar (1966), no ano de 1965, a Índia estendeu os artigos de sua Constituição à Caxemira, o que possibilitou ao Governo indiano a promulgar a aplicação de leis e a definição do Governo da Caxemira. Igualmente, figuras políticas da Caxemira foram detidas, tal como Mirza Afzal Bég, fundador do partido político Fronte para o Plebiscito.
A escalada dos ataques adquiriu proporções internacionais ao atingir espaço internacional, com o ataque direto ao território paquistanês, resultando na tomada de montanhas paquistanesas pelas Forças da Índia, em resposta aos avanços do Paquistão na Caxemira. Respostas aéreas foram perpetradas por ambas as partes do conflito, contudo torna-se relevante salientar que os líderes das Forças Aéreas da Índia e Paquistão entraram em acordo tácito para que o uso de bombas em áreas de civis e barragens e postos de abastecimento de água (GANGULY, 1995).
Declaração de Tashkent
Com a Segunda Guerra Indo-Paquistanesa, a ONU resolveu intervir e exigiu o cessar fogo. O Conselho de Segurança, em 4 de setembro de 1965, emitiu a Resolução 209, na qual demonstrou preocupação em relação à situação dos países. Nesse documento fez um apelo às nações para que elas fizessem todo o possível para terminar com o conflito. Em seguida, em 6 de setembro de 1965, o Conselho de Segurança aprovou a Resolução 210, por unanimidade, na qual reiterou a preocupação com a dimensão do conflito e solicitou que as nações retirassem suas tropas. Assim, a partir de pressões internacionais, a Índia e o Paquistão resolveram entrar em um acordo.
Em 10 de janeiro de 1966, o Presidente do Paquistão e o Primeiro Ministro da Índia, com o intermédio da URSS, assinaram a Declaração de Tashkent, na qual ficou determinado que as duas nações iriam estabelecer boas relações entre si. Nesta declaração, ficou estabelecido que ambos os países iriam seguir as recomendações da Carta das Nações Unidas, isto é, não iriam recorrer ao uso da força, mas sim a meios pacíficos. Além disso, eles se comprometeram em não intervir nos assuntos um do outro e estabeleceram que iriam retirar as suas tropas até 25 de fevereiro de 1966. Ademais, também concordaram em pensar na ideia de estabelecer um intercâmbio cultural e uma cooperação econômica. No geral, a declaração não solucionava os problemas, mas dava margem para que os dois países voltassem a dialogar sobre a questão dos refugiados, a devolução dos prisioneiros de guerra, a necessidade de criar um organismo indopaquistanês e outras temáticas que impactavam os países. Por fim, a declaração foi importante porque terminou com a Segunda Guerra Indo-Paquistanesa e possibilitou que a população de ambas as nações vivesse de forma pacífica até 1971, quando um novo conflito se iniciou.
Referências
ANUNCIAÇÃO, Arthur Sá. O conflito em Caxemira: uma luta identitária e a perpetuação de um risco internacional. 2013. Tese de Doutorado. Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Disponível em: <http://hdl.handle.net/10316/24771>. Acesso em 8 nov. 2021.
BERTOLUCCI, Artur Cruz. CONFLITO INDO-PAQUISTANÊS. Dossiê de Conflitos Contemporâneos – Observatório de Conflitos, vol. 2, n. 2, fev./ maio, 2021. Disponível em:<https://gedes-unesp.org/wp-content/uploads/2021/07/Dossie-Obs.-Conf.-vol2-v2-2021-FINAL.pdf#page=16>. Acesso em: 03 nov. 2021.
GANGULY, Sumit. Wars without End: The Indo-Pakistani Conflict. The Annals of the American Academy of Political and Social Science,n. 541, 1995.Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/1048283>. Acesso em 8 nov. 2021.
GAUHAR, Altaf. THE TASHKENT DECLARATION. Pakistan Horizon,v. 19, n. 1, 1966, p 13–25.Disponível em:<http://www.jstor.org/stable/41393260>. Acesso em 8 nov. 2021.
JHA, D. C. INDO-PAKISTANI RELATIONS SINCE THE TASHKENT DECLARATION. The Indian Journal of Political Science vol. 32, no. 4. 1971. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/41854470>. Acesso em 03 nov. 2021.
MAJID, Dr Abdul; HUSSIN, Dr Mahboob. Kashmir: A conflict between India and Pakistan. South Asian Studies, v. 31, n. 1, 2020.
IQBAL, Mohammad Zubair; HUSSAIN, Shabir. Indo-Pak wars (1948, 1965, 1971, 1999): Projecting the nationalistic narrative. Journal of Political Studies, v. 25, n. 1, p. 139-156, 2018.
TARIQ, Azeem; OWAIS, Muhammad. A Case Study of Operation Gibraltar and Indo-Pak War of 1965: An Application of Decision-Making Models. Journalof Indian Studies, v. 6, n. 1, p. 119-126, 2020.