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Desafios da Comunidade Internacional Frente às Violações de Direitos Humanos no Conflito de Darfur 1 Desafios da Comunidade Internacional Frente às Violações de Direitos Humanos no Conflito de Darfur 2

Desafios da Comunidade Internacional Frente às Violações de Direitos Humanos no Conflito de Darfur

Resumo

O presente artigo imerge nas intrincadas complexidades subjacentes às transgressões aos Direitos Humanos em contextos beligerantes, delineando com particular ênfase o cenário de conflito em Darfur, Sudão. Esse último é apresentado como um paradigma ilustrativo que sublinha a imperiosa necessidade de implementar estratégias eficazes, almejando a consecução da justiça, paz e a salvaguarda da dignidade inerente à condição humana, sobretudo em territórios conflagrados. A pesquisa proporciona uma contextualização aprofundada do referido conflito, incorporando eventos cruciais como a queda do ex-presidente Bashir em 2019. Esse arcabouço histórico consubstancia-se como a pedra angular essencial para análise das possíveis intervenções da comunidade internacional frente às violações de natureza complexa que afligem a região. O epicentro da problemática, inelutavelmente, reside na imperatividade de respostas eficazes para resguardar a população local e imputar responsabilidades aos agentes perpetradores.

Introdução

No contexto global atual, as violações dos Direitos Humanos em cenários de conflito apresentam-se como desafios intrincados, demandando uma avaliação criteriosa das possíveis intervenções da comunidade internacional. Este artigo direciona seu foco para o conflito de Darfur, no Sudão, como um caso paradigmático que sublinha a urgência de estratégias eficazes para promover a justiça, a paz e a preservação da dignidade humana em regiões afetadas por conflitos armados. A relevância dessa pesquisa é evidenciada pela necessidade premente de compreender as dinâmicas complexas que envolvem as violações em Darfur e pela busca por abordagens que possam orientar a atuação internacional nesse contexto.

A primeira seção contextualiza o conflito de Darfur, destacando eventos cruciais, como a queda de Bashir em 2019 e o subsequente período de transição. Esse arcabouço histórico fornece a base essencial para a análise das possibilidades de atuação da comunidade internacional diante das violações. O cerne da questão reside na intrincada complexidade dessas violações, que demandam respostas efetivas para proteger a população local e garantir a responsabilização dos perpetradores.

A segunda parte do artigo amplia a discussão para o cenário pós-Segunda Guerra Mundial, com a criação da Organização  das Nações Unidas e a promulgação de sua Carta. Apesar dos avanços significativos na busca pela paz global e resolução de conflitos, a comunidade internacional enfrenta desafios na criação de um consenso normativo sobre o uso da força, especialmente na proteção de populações civis. Portanto, explora o conceito de “absolute peacekeeping” e analisa operações de paz, operações de guerra e intervenções humanitárias como pontos intermediários em um espectro de uso da força.

A introdução da Responsabilidade de Proteger (R2P) pela Comissão Internacional de Intervenção e Soberania de Estado (ICISS) em 2001, posteriormente adotada pela ONU em 2005, destaca a busca por um consenso internacional mínimo para proteger populações contra atrocidades e crimes em massa. No entanto, a implementação controversa do princípio de Responsabilidade de Proteger (R2P) durante a intervenção na Líbia suscita questionamentos sobre sua eficácia. Isso se deve ao fato de que a intervenção na Líbia, inicialmente destinada a proteger civis, evoluiu para um conflito prolongado e complexo, com implicações políticas e humanitárias significativas. A intervenção resultou em consequências imprevistas, incluindo o colapso do governo central, a escalada da violência e o vácuo de poder, que exacerbaram as tensões étnicas e sectárias no país. Essa controvérsia levou à proposição da Responsabilidade ao Proteger (RwP) pelo Brasil em 2011. A RwP visa proporcionar um maior controle e transparência nas intervenções, reconhecendo a necessidade de equilibrar a proteção dos civis com a preservação da soberania e estabilidade dos Estados afetados.

A terceira seção do artigo explora o Tribunal Penal Internacional (TPI), criado pelo Estatuto de Roma em 2002, como um marco no direito internacional. Esta instituição é capacitada para investigar e julgar indivíduos acusados de crimes graves, promovendo a responsabilidade penal individual e contribuindo para a prevenção de futuros abusos contra os direitos humanos. O caso de Omar al-Bashir, presidente do Sudão, indiciado por crimes de guerra e contra a humanidade, é analisado em detalhes, destacando os desafios na execução do mandado de prisão e a complexa interseção entre princípios de proteção internacional dos direitos humanos e interesses políticos.

O objetivo principal deste artigo é investigar e discutir as diversas possibilidades de atuação da comunidade internacional frente às violações ocorridas no conflito de Darfur. Essa investigação é justificada pela necessidade de preencher lacunas no entendimento sobre como a comunidade internacional pode contribuir para mitigar estas violações em conflitos específicos. A relevância dessa pesquisa está intrinsecamente ligada à promoção de abordagens mais eficazes e adequadas para enfrentar desafios humanitários significativos.

As contribuições deste artigo se manifestam na análise crítica das intervenções da comunidade internacional, a pergunta orientadora desta pesquisa é: “quais seriam as possibilidades de atuação da comunidade internacional, em face das violações de Direitos Humanos ocorridas no conflito de Darfur?” Essa indagação norteia a investigação, buscando compreender as opções disponíveis para a comunidade internacional diante do desafio.

Ao direcionar sua atenção para esse caso paradigmático, a pesquisa almeja entender as complexidades que permeiam a proteção dos direitos fundamentais em áreas de conflito. Isso engloba a contextualização histórica do conflito, os desafios pós-Segunda Guerra Mundial, bem como os princípios da Responsabilidade de Proteger (R2P) e as contribuições do Tribunal Penal Internacional (TPI). O cerne do problema reside na necessidade de respostas efetivas para proteger a população local e responsabilizar os perpetradores. Assim, a pesquisa busca realizar uma síntese analítica na literatura existente, buscando não apenas uma compreensão mais profunda, mas também orientar ações práticas diante das complexidades das violações em contextos de conflito.

Origens dos conflitos na região de Darfur

A região de Darfur, localizada na parte ocidental do Sudão, possui uma vasta configuração geográfica, compartilhando fronteiras com Líbia, Chade e República Centro-Africana. Com uma população aproximada de seis milhões de habitantes, essa região destaca-se por sua notável diversidade étnica, abrigando grupos tribais distintos como Fur, Masalit e Zaghawa (ONU, 2005, p. 21 e 22). Historicamente, disputas territoriais entre esses grupos eram resolvidas por meio de um sistema legal tradicional, supervisionado por líderes tribais, cujas deliberações eram baseadas em negociações e princípios do direito costumeiro (Buzzard, 2008-2009, p. 904; Falligant, 2009-2010, p. 736.).

Até a década de 1970, a propriedade da terra na região era comunal, compartilhada entre as tribos. No entanto, mudanças na legislação sudanesa permitiram a transição para a propriedade individual (ONU, 2005, p. 22). Na segunda metade da década de 1980, o governo central sudanês aboliu estruturas tradicionais de resolução de conflitos, introduzindo um governo local composto por nomeações de Cartum, a capital do Sudão. Essa reconfiguração institucional resultou na seleção de líderes locais com base em sua lealdade ao governo central (Buzzard, 2008-2009, p. 904; Falligant, 2009-2010, p. 736.).

Esse novo paradigma institucional mostrou-se ineficaz na gestão das interações entre as tribos, especialmente durante períodos prolongados de seca e avanço da desertificação. Esses desafios ambientais intensificaram conflitos por recursos escassos, como água e terras férteis, exacerbados pelo aumento do acesso a armas, principalmente provenientes do Chade e da Líbia (Buzzard, 2008-2009, p. 904; Falligant, 2009-2010, p. 736.).. No final da década de 1980, conflitos tribais predominavam entre tribos sedentárias, especialmente a tribo Fur, e grupos nômades (ONU, 2005, p. 24).

Nesse contexto, emergiu a distinção entre grupos rotulados como “Árabes” e “Africanos”, ganhando destaque a partir de 1986, quando o governo sudanês começou a fornecer armas a milícias árabes em Darfur. Essas milícias atacaram as populações Zaghawa, Fur e Masalit, buscando reprimir dissidências políticas (Lipscomb, 2006, p. 188.). Simultaneamente ao aumento dos conflitos, o governo liderado por Al Bashir, que assumiu a presidência em 1989 (Lipscomb, 2006, p. 188.), negligenciou efetivamente a região, levando à formação de grupos rebeldes, especialmente o Movimento/Exército de Libertação do Sudão (SLM/A) e o Movimento de Justiça e Igualdade (JEM), que surgiram entre 2001 e 2002. Esses grupos advogam por uma participação mais significativa da população de Darfur nas decisões políticas em Cartum (ONU, 2005, p. 24).

Apesar de agendas semelhantes, o Movimento/Exército de Libertação do Sudão (SLM/A) e o Movimento de Justiça e Igualdade (JEM) tinham influências distintas. O SLM/A baseava-se na política do “Novo Sudão” concebida pelo grupo rebelde Movimento/Exército de Libertação do Povo do Sudão (SPLM/A), ativo na região sul do país. Por outro lado, o JEM baseava-se nos princípios do islamismo político (ONU, 2005, p. 25).

No início de 2003, rebeldes realizaram uma série de ataques contra as forças governamentais em Darfur, especialmente a audaciosa ocupação do aeroporto militar de El Fashir. Nesse contexto, a maioria das forças militares vinculadas a Cartum estava no sul do país, levando o governo a adotar duas estratégias que moldaram os conflitos. Primeiramente, incentivou a participação de tribos locais na repressão a grupos rebeldes, incorporando membros de tribos árabes nômades em milícias que colaboraram com as forças militares oficiais. Essas milícias ficaram conhecidas como Janjaweed (“diabo a cavalo”), conforme nomeado por suas vítimas (Buzzard, 2008-2009, p. 905 a 907). Além disso, o governo de Al Bashir equipou essas milícias, libertou criminosos de prisões, recrutou combatentes estrangeiros e ofereceu cem dólares a quem estivesse disposto a lutar contra tribos não árabes (Falligant, 2009-2010, p. 737).

Num segundo contexto, considerando o apoio fornecido por grupos rebeldes das tribos Fur, Masalit e Zaghawa, as forças armadas sudanesas e milícias Janjaweed iniciaram uma série de ataques indiscriminados contra comunidades civis, incluindo o uso de bombas de fragmentação (Buzzard, 2008-2009, p. 905 a 907). Forças militares regulares e milícias Janjaweed operaram de maneira coordenada, realizando bombardeios aéreos usando aeronaves como Antonovs e caças MiG, além de helicópteros de ataque (Trahan, 2007-2008, p. 1009.).

As milícias Janjaweed no solo cometeram homicídios contra sobreviventes, saquearam e incendiaram propriedades, além de outros crimes, como estupro e tortura. Em certas situações, as forças governamentais visitavam a região dias após o ataque para garantir que a vila tivesse sido completamente destruída (Trahan, 2007-2008, p. 1009). Esses ataques generalizados e sistemáticos levaram o Procurador do Tribunal Penal Internacional a afirmar que o governo sudanês, sob a liderança de Al Bashir, estava planejando “condições de vida destinadas a causar a destruição física, especialmente obstruindo a entrega de ajuda humanitária” às populações das tribos Fur, Masalit e Zaghawa (Tribunal Penal Internacional, 2008).

Considerações sobre o Uso da Força em Operações de Paz: Equilíbrio, Proporcionalidade e Implicações Humanitárias

Após o término da Segunda Guerra Mundial em 1945, o mundo encontrava-se imerso em um cenário de devastação, onde a necessidade urgente de evitar futuros cataclismos e promover a paz global era inegável. Nesse contexto, a assinatura da Carta das Nações Unidas em São Francisco, em 26 de junho de 1945, foi um marco crucial. Esse documento, que entrou em vigor em 24 de outubro do mesmo ano, estabeleceu os pilares essenciais para as relações internacionais, fundamentados em princípios de justiça, igualdade e cooperação.

A Carta das Nações Unidas, não apenas assimilou o Estatuto da Corte Internacional de Justiça, evidenciando o comprometimento com a aplicação da lei internacional, mas também passou por emendas estratégicas ao longo dos anos. Essas emendas, notavelmente aos artigos 23, 27, 61 e 109, testemunham o esforço contínuo da comunidade internacional em fortalecer a estrutura normativa da Carta das Nações Unidas. Essa evolução constante solidifica a declaração como um instrumento dinâmico no fomento da paz, da proteção dos direitos humanos e da promoção da justiça global (Nações Unidas. Carta das Nações Unidas. San Francisco, 1945).

Dentro dessa estrutura, o Capítulo VII da Carta das Nações Unidas surge como um pilar fundamental. Esse capítulo confere ao Conselho de Segurança a autoridade para identificar ameaças à paz, ruptura da paz ou atos de agressão, e determinar as medidas apropriadas para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais. O Conselho de Segurança pode tomar decisões que variam desde a aplicação de medidas econômicas até o uso direto da força militar, como autorizado pelo Artigo 42:

Artigo 42: “No caso de o Conselho de Segurança considerar que as medidas previstas no artigo 41 seriam inadequadas, poderá levar a efeito, por meio de forças aéreas, navais ou terrestres, a ação que julgar necessária para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais. Tal ação poderá compreender demonstrações, bloqueios e outras operações, por parte das forças aéreas, navais ou terrestres dos membros das Nações Unidas” (Carta das Nações Unidas, 1945).

É imperativo salientar que a utilização da força pela ONU, regida pelo Capítulo VII, constitui um tema intrincado e submetido a um sutil equilíbrio político. As operações de paz da ONU, implementadas mediante o consentimento das partes envolvidas, representam um exemplo do empenho da comunidade internacional em prevenir conflitos e fomentar a consecução da paz (Nações Unidas. Carta das Nações Unidas. San Francisco, 1945).

O conflito na região de Darfur, localizada a oeste do Sudão, representa um dos exemplos mais notáveis de como o Capítulo VII da Carta das Nações Unidas foi aplicado para abordar ameaças à paz e à segurança internacionais. Desde seu início em 2003, o conflito em Darfur têm sido caracterizado por uma disseminação generalizada de violência, deslocamento em massa e flagrantes violações dos direitos humanos, emergindo como uma das crises humanitárias mais sérias do mundo contemporâneo (Aguilar; Marquezi, p. 490, 2019).

O Conselho de Segurança da ONU, em consonância com o Artigo 39 da Carta, identificou prontamente a situação em Darfur como uma ameaça à paz e à segurança internacionais. Essa determinação foi crucial, ativando o uso do Capítulo VII e permitindo a tomada de medidas coercitivas para restaurar a paz na região. Dentre essas medidas, destacam-se as resoluções do Conselho de Segurança, incluindo a Resolução 1591 (2005), que impôs sanções contra aqueles envolvidos em violações dos direitos humanos, e a Resolução 1769 (2007), que autorizou o estabelecimento da missão UNAMID  (Aguilar; Marquezi, p. 490, 2019).

Em 22 de dezembro de 2020, o Conselho de Segurança avaliou que os avanços do governo de transição do Sudão permitiriam que este gerenciasse autonomamente o conflito em Darfur. Entretanto, a intervenção em Darfur também enfrentou consideráveis desafios : cooperação limitada do governo sudanês e as dinâmicas locais complexas evidenciaram as dificuldades inerentes à aplicação do Capítulo VII em situações reais. Além disso, as questões de soberania nacional e a intervenção estrangeira em assuntos internos foram amplamente debatidas, destacando os dilemas éticos e políticos subjacentes às intervenções sob o Capítulo VII (Aguilar; Marquezi, p.490, 2019).

As operações de manutenção da paz atualmente em andamento pela ONU, a UNISFA (Força de Segurança Interina das Nações Unidas para Abyei) e a UNMISS (Missão das Nações Unidas no Sudão do Sul), desempenham papéis cruciais na promoção da estabilidade e na resolução de conflitos em regiões africanas historicamente marcadas por disputas territoriais e instabilidade política. A UNISFA, operando na região disputada de Abyei entre o Sudão e o Sudão do Sul, foi estabelecida com o objetivo claro de facilitar a implementação do Acordo de Abyei. Sua presença é essencial para manter a paz e proteger civis em uma área onde as tensões históricas entre as partes envolvidas persistem. A missão desempenha um papel fundamental na promoção da estabilidade e na prevenção de conflitos, agindo como uma força de segurança intermediária nessas circunstâncias delicadas (UNISFA).

Por outro lado, a UNMISS, operando no Sudão do Sul, tem a responsabilidade de consolidar a paz em um país que enfrentou desafios consideráveis após a independência em 2011. Conflitos étnicos e políticos abalaram a nação, e a UNMISS é uma peça-chave na proteção de civis, monitoramento de direitos humanos e apoio a iniciativas de reconciliação. A missão desempenha um papel crucial na promoção da reconstrução pós-conflito e na busca por soluções políticas duradouras (UNMISS).

A missão conjunta da ONU e da União Africana em Darfur, conhecida como UNAMID, recebeu a autorização de usar todos os meios necessários, conforme estabelecido no Artigo 42 da Carta, para proteger civis, promover direitos humanos e apoiar o processo político na região. Isso incluiu o emprego de força militar em autodefesa e para salvaguardar os vulneráveis contra-ataques armados. A presença militar da UNAMID desempenhou um papel crucial na criação de um ambiente mais seguro para os civis, além de mediar tensões entre diferentes grupos étnicos e tribais, demonstrando a implementação prática do Capítulo VII (Aguilar; Marquezi, p.490, 2019). Em 31 de dezembro de 2020, a UNAMID encerrou oficialmente suas atividades, conforme determinado pelo Conselho de Segurança da ONU (UNAMID).

Quanto ao uso da força, é essencial encontrar um equilíbrio adequado nas operações de paz contemporâneas. Embora seja crucial para proteger civis e dissuadir spoilers do processo de paz, o uso excessivo de força pode transformar uma operação inicialmente concebida para manutenção da paz em uma operação de guerra. A aplicação do uso da força deve ser proporcional, evitando mandatos excessivamente políticos que possam distorcer o propósito original das operações de paz. O uso da força além de determinados níveis pode criar obstáculos políticos e diplomáticos, afetar a cooperação com organizações humanitárias e ter implicações práticas no campo, incluindo infraestrutura, saúde e suprimentos. Assim, é essencial avaliar cuidadosamente os níveis de uso da força para garantir que contribuam para o sucesso das operações de paz, mantendo ao tempo a integridade de seu propósito humanitário.

Imagem 1 – Direitos Humanos: Missão das Nações Unidas em Darfur

Direitos Humanos Darfur Nações Unidas

Fonte:  UN Photo/Albert Gonzalez Farran (Openverse)

Responsabilidade de Proteger (R2P) e Responsabilidade ao Proteger (RwP)

Após a Segunda Guerra Mundial, a criação da ONU e a promulgação de sua Carta representaram avanços significativos na busca pela paz global e na resolução de conflitos. No entanto, a comunidade internacional ainda enfrenta desafios ao tentar estabelecer um consenso normativo e um entendimento comum sobre o uso da força, especialmente quando se trata da proteção de populações civis.

Introduzindo o conceito de “absolute peacekeeping“, um modelo ideal e abstrato, este artigo explora as operações de paz e guerra como pontos opostos em um espectro de uso da força. Contudo, na realidade, tais operações encontram-se em posições intermediárias desse espectro, sendo uma determinação política definir em qual categoria um conflito se enquadra. Após a Segunda Guerra Mundial, as operações de paz tradicionais foram concebidas como uma alternativa criativa para solucionar conflitos sem a necessidade do emprego da força. No entanto, ao longo do tempo, essas operações tornaram-se mais politizadas, especialmente na década de 1990, permitindo um uso mais robusto da força para atingir seus objetivos. O surgimento das operações de paz robustas, que incluem o uso autorizado da força, suscitou questionamentos acerca das fronteiras entre operações de paz, operações de guerra e intervenções humanitárias (Braga, 2013. p.33-43).

As intervenções humanitárias, caracterizadas pelo uso da força para reprimir violações dos direitos humanos, apresentam dilemas éticos e políticos significativos. O uso seletivo da força em intervenções humanitárias levanta preocupações sobre critérios políticos subjacentes e a capacidade real de proteger populações civis.

A Comissão Internacional de Intervenção e Soberania de Estado (ICISS), em 2001, introduziu o conceito de Responsabilidade de Proteger (R2P) em resposta a um apelo do Secretário-Geral da ONU, destacando a necessidade de um consenso internacional mínimo para proteger populações em face de atrocidades e crimes em massa. O princípio fundamental delineado no relatório da ICISS foi que “o princípio da não-intervenção deve ceder à responsabilidade internacional de proteger” (ICISS, 2001).

Após resistência inicial e ajustes, a Responsabilidade de Proteger (R2P) foi finalmente adotada pela Cúpula Mundial da ONU em 2005. A R2P enfatiza a prevenção e a responsabilidade primária dos Estados na proteção de suas populações, ao mesmo tempo em que busca um consenso para intervir em crises humanitárias. Isso implica a aceitação global da responsabilidade coletiva de proteger as populações contra genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade. A R2P propõe uma resposta oportuna e decisiva, através do Conselho de Segurança, quando os meios pacíficos falham e as autoridades nacionais não conseguem proteger seu povo (Nações Unidas, 2005).

A adesão ao conceito de Responsabilidade de Proteger (R2P) na Cúpula Mundial foi considerada um passo promissor na implementação de uma nova norma para alcançar esse consenso desejado. Contudo, o caso da Líbia revelou um uso controverso e, por vezes, politicamente motivado da R2P, levantando dúvidas sobre sua eficácia real na proteção das populações civis. Muitos países, especialmente no Sul Global, argumentaram que a aplicação da R2P na Líbia foi manipulada por interesses geopolíticos, não cumprindo os ideais humanitários de proteger civis (Braga, 2013. p.33-43). Como resultado, a comunidade internacional ficou profundamente dividida, incapaz de alcançar um consenso mínimo, especialmente no contexto da crise na Síria.

Diante das implicações políticas e humanitárias da Líbia e da Síria, o Brasil propôs o conceito inovador da Responsabilidade ao Proteger (RwP) em setembro de 2011. A RwP busca garantir maior controle e transparência durante as intervenções, priorizando o sucesso na proteção das populações em relação aos riscos de deterioração ainda maior da situação humanitária (Braga, 2013. p.33-43).

Em 2009, o Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-moon, delineou a R2P como uma abordagem composta por três pilares: a responsabilidade primária dos Estados de proteger suas populações, a responsabilidade da comunidade internacional em apoiar os governos nacionais e a responsabilidade internacional de intervir se as autoridades locais falharam em proteger suas populações de forma evidente. Embora a R2P seja frequentemente defendida para reduzir o caráter político das intervenções e conferir mais legitimidade a elas, sua aplicação na Líbia levantou preocupações sobre intervenções humanitárias politicamente motivadas (Braga, 2013. p.33-43).

A RwP propõe uma abordagem sequencial aos pilares da R2P: o segundo pilar seria implementado após o primeiro, e o terceiro apenas se os outros falharam. A RwP enfatiza a prevenção e a resolução pacífica de disputas, garantindo que o uso da força seja uma medida excepcional, autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU somente em casos extremos (ONU, 2011). Nesses cenários, a força seria usada dentro de limites claramente definidos para evitar danos maiores do que os que busca evitar, garantindo monitoramento, controle e limitação rigorosos para evitar a deterioração da situação humanitária.

TPI e a responsabilidade internacional

O Tribunal Penal Internacional (TPI), criado pelo Estatuto de Roma, representa um marco no campo do direito internacional, sendo uma instituição permanente autorizada a investigar e julgar indivíduos acusados de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão. Sua estrutura organizacional compreende a Presidência, as Seções Judiciais, a Promotoria e o Secretariado, e a Promotoria pode iniciar investigações por meio de denúncias de Estados Partes, encaminhamentos do Conselho de Segurança da ONU ou por sua própria iniciativa, após exames preliminares. A jurisdição do TPI, iniciada em 1º de julho de 2002, incide sobre crimes cometidos após essa data, baseando-se nos princípios de territorialidade e nacionalidade ativa. Estados terceiros também podem aceitar sua jurisdição, e o Tribunal opera subsidiariamente aos sistemas jurídicos nacionais, intervindo quando os Estados não têm capacidade ou vontade de julgar os acusados (ICC,2002).

Em março de 2009, uma ordem de prisão preventiva foi emitida contra Omar al-Bashir, presidente do Sudão na época, pelo Tribunal Penal Internacional (TPI). Al-Bashir, nascido em 1º de janeiro de 1944 na província de Hoshe Bannaga, Shendi, e membro da tribo Jaali, foi condenado por sete crimes de interesse internacional. Estes incluíam dois crimes de guerra (ataques a civis e pilhagem) e cinco crimes contra a humanidade (homicídio, extermínio, deslocamento forçado, tortura e estupro), cometidos sob sua liderança na região de Darfur desde 2003 (ICC,2002)

O indiciamento de Omar al-Bashir representa um marco histórico na justiça internacional, sendo o primeiro pedido de detenção e entrega de um presidente de um Estado soberano enquanto ele estava no exercício de seu mandato.Os crimes pelos quais o Presidente do Sudão, Omar al-Bashir, foi condenado, incluindo crimes contra a humanidade e crimes de guerra nos termos dos artigos 7º e 8º do Estatuto de Roma, são definidos conforme estabelecido no próprio Estatuto. Para fins do Estatuto de Roma, o artigo 7º, inciso I, lista uma série de atos que podem ser considerados “crimes contra a humanidade”. Estes atos incluem homicídio, extermínio, escravidão, deportação ou transferência forçada de população, prisão ou privação grave da liberdade física em violação das normas fundamentais do direito internacional, tortura, agressão sexual, perseguição por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, desaparecimento forçado de pessoas, crime de apartheid e outros atos desumanos de caráter semelhante que causem intencionalmente grande sofrimento ou afetem gravemente a integridade física ou mental (ICC,2009).

Os crimes de guerra, conforme definidos no artigo 8º do Estatuto de Roma, abrangem violações graves das Convenções de Genebra de 1949. Estes incluem homicídio doloso, tortura ou tratamentos desumanos, atos que causam intencionalmente grande sofrimento ou ofensas graves à integridade física ou à saúde, destruição ou apropriação ilegal de bens em larga escala, compelir um prisioneiro de guerra ou outra pessoa protegida a servir nas forças armadas inimigas, privação intencional do direito a um julgamento justo, deportação ou transferência ilegal, tomada de reféns, entre outros. Estes crimes de guerra e contra a humanidade são claramente definidos no Estatuto de Roma para estabelecer uma base legal sólida para a responsabilização dos indivíduos que cometem tais atos graves em conflitos internacionais e não internacionais (ICC,2009).

A sentença foi baseada nos artigos 19, item 1, art. 58, item 1, alínea “b” (i, ii, iii) e art. 25, item 3, alínea “a” do Estatuto de Roma. Após analisar todas as evidências apresentadas, a Câmara de Julgamento concluiu que havia provas suficientes para acusar al-Bashir pelas atrocidades em Darfur. A sentença foi fundamentada em indícios sólidos de autoria e materialidade, considerando os seguintes fatos:

a) Ocorrência de um conflito armado não internacional, conforme definido no art. 8º, item 2, alínea “f” do Estatuto, entre o governo sudanês (conhecido como “GS”) e grupos armados, como o Movimento/Exército Libertador do Sudão (M/ELS) e o Movimento pela Justiça e Igualdade (MJI), de março de 2003 até pelo menos 14 de julho de 2008;

b) Lançamento de um apelo geral pelo GS para a mobilização da milícia Janjaweed em resposta às atividades dos grupos armados de oposição. Isso resultou em uma campanha de contra-insurgência em Darfur, envolvendo crimes de guerra, ataques a civis e pilhagem, conforme especificado nos artigos 8º, §2º, alínea “e” (i) e art. 8º, § 2º, alínea “e” (v) do Estatuto;

 c) Formação de um núcleo da campanha contra-insurgência que atacou ilegalmente parte da população civil de Darfur, resultando em homicídios, extermínio, transferência forçada e tortura. A maioria das mulheres pertencentes aos grupos atacados foi vítima de estupro, caracterizando crimes contra a humanidade;

d) Al-Bashir foi considerado criminalmente responsável como autor indireto e co-autor indireto, devido ao seu papel como presidente do Sudão e comandante-chefe das forças armadas desde março de 2003 até 14 de julho de 2008. Ele coordenou a campanha contra-insurgência e utilizou todas as agências estatais para garantir sua implementação e impunidade (ICC,2009).

Apesar da condenação, a execução do mandado de prisão contra al-Bashir enfrentou desafios. Mecanismos para extraditá-lo ao Tribunal Internacional são limitados, e os militares sudaneses em solo sudanês não possuem mandato para cumprir tal ordem. O apoio de países como China, União Africana e Liga Árabe a al-Bashir destacou a complexa interseção entre princípios de proteção internacional dos direitos humanos e interesses políticos e econômicos (MAMORU,2009, P.30-33).

Desde a emissão do mandado de prisão, al-Bashir permaneceu em liberdade, recusando-se a reconhecer a jurisdição do TPI, mesmo com o apoio declarado de Estados Signatários do Estatuto de Roma. A evidência revela que a responsabilização internacional de indivíduos é profundamente influenciada pela dinâmica política entre os Estados. A moral internacional, portanto, está intrinsecamente ligada à política, demonstrando que a busca pela justiça global é frequentemente condicionada por fatores geopolíticos complexos.

Considerações Finais

A trajetória do Sudão ao longo do século XX foi caracterizada por uma série de desafios políticos, econômicos e sociais, desde a sua independência em 1956 até o regime autoritário de Omar al-Bashir a partir de 1989. Este período foi marcado por conflitos internos, notadamente no Sul, resistência política e instabilidade econômica. O governo de Bashir, por sua vez, ficou conhecido por suas medidas autoritárias, envolvimento em conflitos, como o de Darfur, e a subsequente secessão do Sudão do Sul. Assim, o Sudão enfrenta, atualmente, um cenário desafiador, com uma crise humanitária em curso e um impasse político entre civis e militares.

Nesse contexto complexo, a análise das operações de paz da ONU revela a complexidade do uso da força, regulado pelo Capítulo VII da Carta das Nações Unidas. A Carta, elaborada no pós-Segunda Guerra Mundial, estabeleceu princípios fundamentais de cooperação e justiça, concedendo ao Conselho de Segurança a autoridade para agir em face de ameaças à paz. A aplicação prática do Capítulo VII no conflito em Darfur exemplifica o uso da força para proteger civis e promover direitos humanos, mas também expõe desafios, como a cooperação limitada do governo sudanês e as complexidades locais.

A necessidade de um equilíbrio cuidadoso no uso da força em operações de paz é enfatizada, destacando a importância da proporcionalidade para evitar desvios dos objetivos originais e transformar missões em conflitos armados. O excesso de força pode resultar em implicações práticas, políticas e diplomáticas adversas, comprometendo a integridade das operações humanitárias. Em última análise, a avaliação criteriosa dos níveis de uso da força é crucial para garantir que as operações de paz alcancem seu propósito primordial de proteger civis e promover a estabilidade, contribuindo para a construção de um mundo mais seguro e cooperativo.

A evolução das abordagens da Responsabilidade de Proteger (R2P) e da Responsabilidade ao Proteger (RwP) destaca a complexidade da comunidade internacional na proteção de populações civis diante de crises humanitárias. O pós-Segunda Guerra Mundial contou com avanços notáveis com a criação da ONU, mas desafios persistem, especialmente na definição de normas consensuais sobre o uso da força em contextos de proteção civil. A introdução da R2P em 2001 buscou estabelecer um consenso mínimo para a proteção global contra atrocidades, mas sua aplicação controversa na Líbia levantou preocupações sobre a politização e o uso seletivo da intervenção humanitária.

O caso de Omar al-Bashir ilustra a complexidade da aplicação da justiça internacional. Embora tenha sido emitido um mandado de prisão preventiva contra um chefe de Estado em exercício, sua execução enfrentou obstáculos significativos, destacando a interseção entre a responsabilização internacional e interesses políticos e econômicos.

O conflito em Darfur revela não apenas a destruição física de grupos étnicos, mas também a intenção sistemática de eliminar suas identidades. Nesse contexto, a comunidade internacional enfrenta o desafio de buscar justiça, promover a responsabilização e prevenir futuros genocídios. É imperativo que a comunidade internacional continue a fortalecer e aprimorar os mecanismos de responsabilização, superando desafios políticos e diplomáticos. A busca pela justiça global deve persistir, reafirmando o compromisso de combater crimes contra a humanidade e preservar a dignidade de todos os povos. O caminho a seguir demanda cooperação internacional, diálogo constante e a promoção contínua dos princípios fundamentais do direito internacional para construir um local seguro.

Referências

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Leia também: Omar al-Bashir recebe um mandado de prisão pelo Tribunal Penal Internacional por crimes de guerra e contra a humanidade em Darfur

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