O campo de estudos da Segurança é composto por diversas narrativas. Dentre elas, está a abordagem feminista, cuja abrangência também é vasta. A presente resenha tratará da análise desenvolvida no livro (En)Gendering the War on Terror, editado por Krista Hunt e Kim Rygiel, que diz respeito à perspectiva de gênero por trás da Guerra ao Terror, liderada pelos Estados Unidos.
Há uma série de discursos construídos, não só pelo governo norte-americano, mas também pela mídia, que buscam legitimar toda a lógica imperialista e violenta intrínseca à Guerra ao Terror. Esses discursos moldam diferentes representações sobre a imagem da mulher, ora retratada como uma figura emancipadora – porém vulnerável – ora como uma figura heróica – mas, ainda assim, vítima – ou até como um símbolo de brutalidade. No capítulo 4 (Benevolent Invaders, Heroic Victims and Depraved Villains: White Femininity in Media Coverage of the Invasion of Iraq) do livro em questão, essas representações são muito bem analisadas, com evidências empíricas sobre essa estratégia discursiva desenvolvida pela mídia, com apoio governamental.
Ainda que haja diversas sub-representações sobre a figura da mulher, a estratégia discursiva permanece muito sólida, sendo capaz de reforçar e legitimar a estrutura de poder vigente. Essa estratégia consegue explorar todas as interseccionalidades de raça, gênero, sexualidade e classe, adaptando a figura construída sobre a mulher de acordo com o que for conveniente diante das circunstâncias. A grande finalidade dessa estratégia é propagar uma imagem da mulher branca e ocidental, mobilizando-a em função de interesses políticos, para legitimar a Guerra ao Terror – mesmo que essas narrativas perpetuem relações de poder e diversas formas de violência. Ou seja, para estruturar a base ideológica que sustentaria a intervenção ocidental no Iraque, são utilizadas ferramentas discursivas, capazes de convencer os civis de que tal intervenção era necessária, não apenas por motivos de segurança, mas também por razões morais.
As narrativas desenvolvidas sobre a figura da mulher foram analisadas, no capítulo em questão, à luz de histórias reais sobre soldadas ocidentais, que atuavam no Iraque na época da Guerra. A primeira história é sobre uma fotografia de uma soldada inglesa (branca) com uma arma e equipamento de combate, sorrindo para um homem iraquiano que está lhe entregando uma flor. Junto com a imagem, havia um artigo de opinião de Randy Scheunemann, que defendia a invasão do Iraque como um projeto de liberalização de tal povo, como um dever moral do Ocidente. A utilização da imagem de uma mulher branca na foto é uma estratégia de representação, a partir da qual se constrói a ideia de que a soldada branca e ocidental é uma figura emancipadora, que iria libertar e salvar o país de suas amarras autoritárias, dando um caráter benevolente à tal figura. Essa representação é baseada na lógica da superioridade ocidental, culminando também na reiteração do estereótipo do homem árabe como o inimigo – representando, no caso da foto, uma ameaça à soldada. O fato do homem estar oferecendo flores para a soldada pode ser interpretado tanto como um gesto de gratidão, como um gesto de insinuação sexual – com esse último, esse estereótipo é reforçado. Dessa forma, desenvolve-se uma figura de vulnerabilidade junto à figura da mulher, insinuando que ela precisaria da ajuda do homem branco para lidar com tal ameaça.
O processo de configuração de um certo ator como ameaça existencial é muito estudado no campo da Segurança. Tal processo pode ser analisado com base no conceito da securitização – que seria o processo pelo qual uma questão é enquadrada como uma ameaça existencial à um objeto referente particular. O ator securitizador, que pode ser um representante estatal (mas não necessariamente), é responsável por enquadrar a ameaça como tal, defendendo a proteção do objeto referente – que pode ser o Estado, ou uma cultura, entre outros. A grande questão está na forma como se lida com essa ameaça: por meios extraordinários, fora do “jogo político tradicional”, como, por exemplo, a tortura. Ademais, para obter sucesso, a securitização deve obter apoio de sua audiência, e essa aceitação se refere não somente ao enquadramento da ameaça mas também à utilização dos meios extraordinários. A Guerra ao Terror se encaixa muito bem nesse conceito – além da figura do árabe ter sido enquadrada como uma ameaça existencial, o processo foi muito marcado pela utilização de meios extraordinários. Com a articulação da mídia no processo, toda a estratégia desenvolvida visava convencer a população da legitimidade e necessidade de tal intervenção.
A segunda narrativa analisada diz respeito à história de Jessica Lynch, soldada norte-americana, representada como uma heroína que, ainda assim, é uma vítima. A partir do momento que a lógica de “salvação” da Guerra ao Terror perdeu força – diante da inevitável resistência iraquiana – e a mídia reverteu a retórica de uma figura emancipadora e benevolente, passando a adotar uma figura heróica, mas ainda vulnerável. A soldada foi capturada por soldados iraquianos, sendo estuprada e violentada por dias. Diante desse acontecimento, a estratégia discursiva norte-americana foi de reiterar o estereótipo do homem árabe como o que há de pior para a sociedade, desumanizando-o. Essa história alimenta também a lógica de vulnerabilidade da mulher, perante tal ameaça existencial que o homem árabe representa à todos, mas especificamente à mulher, diante dessa aterrorizante história da soldada.
Vale ressaltar também que a adoção desse caso específico, de Jessica Lynch, reforça uma lógica racista. Shoshana Johnson, soldada norte-americana negra capturada durante o mesmo episódio, não foi representada pela mídia como heroína, na medida em que Lynch fora. Como é apontado no capítulo, por ser negra, Johnson não tem as características “necessárias” para se enquadrar na categoria de feminilidade que precisa ser salva. Há uma outra interseccionalidade presente nessa história, referente à classe, uma vez que a estratégia discursiva em questão também destaca o status de classe trabalhadora da soldada. A mídia salienta suas origens humildes, como uma “small-town girl” de West Virginia. Dessa forma, exploram uma série de interseccionalidades – de gênero, raça e classe – para configurar uma imagem da mulher como uma heroína e vulnerável, legitimando mais uma vez a violência da Guerra ao Terror.
A exploração dessas interseccionalidades também mostra como os “esquecimentos” propositais estão presentes nos diversos âmbitos do estudo de Segurança. A própria construção da disciplina foi marcada pela escolha de uma certa narrativa, em detrimento da outra. Como é apontado pelo autor Sankaran Krishna, o esquecimento permite a narração de certas histórias, ou seja, uma parte da verdade. Mas, para ele, seria inevitável o uso da ferramenta da abstração, para que a análise possa focar em determinados aspectos, em detrimento de outros. Não é possível realizar uma análise abrangente sem ser generalista, o que intensifica a necessidade de se manter vigilante aos efeitos desses esquecimentos. Nesse caso, não há apenas um esquecimento em termos raciais e de classe quando se configura a figura da mulher. Há também um esquecimento do outro lado da história, o das mulheres árabes, cujas vozes foram completamente silenciadas nesse processo de Guerra ao Terror.
A terceira história apresentada no capítulo se refere ao escândalo de Abu Ghraib, focando no papel de Lynndie England nessa narrativa. Os Estados Unidos passaram a enfrentar uma crise pública com o vazamento de diversas fotos e vídeos que mostravam soldados norte-americanos cometendo diversos abusos e atrocidades aos prisioneiros de Abu Ghraib, no Iraque. O ponto principal destacado pela autora do capítulo é a tamanha repercussão de uma foto específica: a da soldada Lynndie England, segurando um prisioneiro iraquiano nu, por uma coleira. Esse escândalo marcou um ponto de inflexão dessa estratégia discursiva, que teve que retratar a soldada da foto em questão como uma figura “anti-Lynch”. As fotografias foram interpretadas como um reflexo da conduta norte-americana no Iraque, marcada pela brutalidade e corrupção. A justificativa do governo era de que tais fotografias não retratavam de forma alguma o comportamento do Exército como um todo, mas sim o de soldados específicos, cuja conduta é condenável e seria punida.
Todavia, a grande preocupação da mídia se concentrou quase que exclusivamente na fotografia de Lynndie England. Diante do discurso de uma imagem feminina heróica e benevolente, como Lynch, England representaria o extremo oposto: uma mulher brutal. A autora do capítulo chega a sugerir que o motivo pelo qual a foto de Lynndie atraiu tanta atenção seria pelo fato da mesma ter permitido as pessoas à terem fantasias sexuais, por representar a imagem de uma mulher controlando um homem nu. Além disso, as imagens dos soldados iraquianos completamente submissos e violentados permitem a intensificação do processo de desumanização da figura do homem árabe – cujo estereótipo como violento e potencial terrorista, está, mais do que nunca, enraizado na sociedade ocidental.
Esse processo de concretização do medo no outro, naquilo que é considerado diferente do usual, tem diversas implicações. James Der Derrian, autor pós-estruturalista, analisa esse processo à luz do conceito de segurança, o qual possui um forte poder discursivo, uma vez que opera por meio de uma série de discursos, produzindo subjetividades. O entendimento gerado por cada discurso leva à realização de determinadas ações, em detrimentos de outras. Dessa forma, torna-se essencial entender esse poder discursivo do conceito de segurança, de modo a construí-lo respeitando as pluralidade e seus múltiplos significados. Essa prática de concretizar o medo do diferente, faz com que os indivíduos busquem cada vez mais a segurança contra o outro (de fora ou não). Portanto, percebe-se a enorme complexidade presente nos estudos de segurança, quando se analisam as diferenças e as identidades.
A Guerra ao Terror, um importante símbolo das políticas de segurança, reflete tal complexidade. As estratégias discursivas que legitimam a conduta norte-americana têm como um de seus elementos principais a reiteração do estereótipo do homem árabe, como um potencial terrorista, uma ameaça existencial que deve ser combatida. Com essa lógica difundida, a intervenção norte-americana no Iraque torna-se uma necessidade de segurança, na medida em que sua função seria conter tal ameaça. A construção de toda essa base ideológica como sustentação de uma guerra brutal, violenta – e, no mínimo, tendenciosa – tem efeitos imensuráveis. Quando a imagem da mulher ocidental e branca é construída de tal forma, diante de todas suas sub-representações, há simultaneamente uma série de exclusões que, por sua vez, reforçam estruturas de poder hierárquicas. Além de toda a imagem construída acerca do homem árabe, como uma ameaça, que também reforça relações de poder. A manutenção de tais estruturas de poder, por sua vez, leva à intensificação e, em alguns casos, até à naturalização de diversos tipos de violência.
Portanto, a análise feita no livro em questão é essencial para apontar a gravidade dos efeitos dessas ferramentas discursivas tão utilizadas pela mídia e pelo próprio governo. Deve-se atentar à tal construção de narrativas para, de fato, perceber que muito do que é dito pelos veículos “oficiais” pode representar somente uma parte da verdade, que está sendo apresentada de forma estratégica. Com esse processo elucidado, pode-se notar os efeitos dessa lógica discursiva e, de certa forma, se contrapor como uma forma de resistência à essa estrutura hierárquica, excludente e violenta.
Referências Bibliográficas
BRITTAIN, Melisa. Benevolent Invaders, Heroic Victims and Depraved Villains: White Femininity in Media Coverage of the Invasion of Iraq. In: HUNT, Krista and RYGIEL, Kim. (En)Gendering the War on Terror. Aldershot: Ashgate, 2008. p.73-92
BUZAN, Waever et al. Security: A New Framework For Analysis. Londres: Lynne Rienner Publishers, 1998.
DER DERRIAN, James. “The value of security? Hobbes, Marx, Nietzsche and Baudrillard”. In: Ronnie D. Lipschutz (ed). On Security. New York: Columbia University Press, 1995.
KRISHNA, Sankaran. “Race, Amnesia and the Education of International Relations”, In: Decolonizing International Relations. Lanham: Rowman & Littlefields Publishers, 2006.