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Existe uma Ordem Multipolar? 

A estrutura de poder internacional tem sido um dos temas mais debatidos nas Relações Internacionais, especialmente diante das rápidas mudanças geopolíticas das últimas décadas. A hegemonia dos Estados Unidos após a Guerra Fria estabeleceu um sistema unipolar, caracterizado por uma ordem internacional amplamente influenciada por Washington. No entanto, a ascensão econômica e militar da China, a revitalização geopolítica da Rússia e o fortalecimento de blocos regionais e políticos, como os BRICS e a União Europeia, levantam a questão: o mundo está transitando para uma ordem multipolar ou a unipolaridade ainda persiste?

A resposta a essa questão tem implicações diretas para a governança, a segurança e a economia mundial. De um lado, os EUA argumentam que, apesar dos desafios apresentados por outras potências, sua superioridade militar, econômica e tecnológica continua assegurando sua posição dominante. De outro, analistas e potências emergentes sustentam que o poder já está distribuído entre diversos polos, resultando em um mundo multipolar, no qual nenhuma nação isolada consegue ditar a ordem internacional sem contestação.

A competição entre EUA e China pelo domínio econômico, tecnológico e militar tem se intensificado, refletindo-se em sanções comerciais, disputa por mercados e desenvolvimento de novas infraestruturas de influência, como a Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI) chinesa. Ao mesmo tempo, a guerra na Ucrânia demonstrou a capacidade da Rússia de desafiar diretamente o Ocidente, enquanto países como Índia, Brasil e Arábia Saudita buscam expandir sua influência em um sistema internacional menos centralizado.

Conceitos Fundamentais

Antes de adentrar na análise das diferentes perspectivas sobre a existência de uma ordem multipolar ou do mito, vale revistar dois conceitos centrais:

Multipolaridade

O conceito de multipolaridade refere-se a um sistema internacional onde o poder está distribuído entre três ou mais potências com capacidade significativa de influenciar a ordem global. Historicamente, esse tipo de sistema existiu antes da Segunda Guerra Mundial, quando diversas potências como o Reino Unido, Alemanha, França, Rússia e Japão disputavam influência no agenda internacional. Em um sistema multipolar, a dinâmica das relações internacionais é caracterizada por equilíbrios instáveis, onde as alianças podem mudar rapidamente e as potências competem por áreas de influência.

Os defensores da multipolaridade argumentam que, no contexto atual, China, Rússia, União Europeia, Índia e outras potências regionais possuem autonomia suficiente para desafiar a hegemonia dos Estados Unidos. Dessa forma, afirmam que o sistema unipolar pós-Guerra Fria está sendo substituído por uma ordem mais descentralizada.

Multilateralismo

O conceito de multilateralismo está relacionado, mas não é sinônimo de multipolaridade. Enquanto a multipolaridade diz respeito à distribuição de poder entre os Estados, o multilateralismo refere-se à cooperação internacional baseada em instituições internacionais, regras compartilhadas e decisões coletivas. Organizações como a ONU, OMC, FMI e Banco Mundial são exemplos de mecanismos multilaterais que promovem a negociação e a governança mundial conjunta.

No contexto da multipolaridade, o multilateralismo pode ser um fator de estabilização ou tensão, dependendo da disposição das potências em respeitar as regras internacionais. Enquanto algumas potências buscam fortalecer instituições multilaterais, outras, como a China e a Rússia, têm investido na criação de mecanismos alternativos, como o BRICS e o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB).

A Perspectiva dos Estados Unidos

Para os EUA, como levantado no artigo “Myth of multipolarity – American power staying power”, a ordem unipolar se mantém. Os Estados Unidos defendem que, apesar da ascensão da China e do aumento da influência de outras potências, o sistema internacional ainda é unipolar, com os EUA mantendo a posição de principal superpotência. Segundo essa visão, a multipolaridade verdadeira exige a existência de pelo menos três potências de peso equivalente, o que não ocorre atualmente.

Entre os fatores, estão:

1. Domínio Militar e Tecnológico

O argumento central dos EUA baseia-se no fato de que sua capacidade militar é inigualável. O orçamento de defesa dos EUA foi de US$ 877 bilhões em 2023, representando cerca de 39% dos gastos militares mundiais. O país ainda domina os commons globais (mar, ar e espaço), garantindo uma presença militar em escala planetária, algo que que China, Índia e Rússia ainda não podem desafiar diretamente. Além disso, os EUA continuam liderando setores estratégicos como inteligência artificial, semicondutores e inovação militar, possuindo 53% das patentes em IA e controlando 50% da produção mundial de semicondutores de ponta. A frota naval americana conta com 11 porta-aviões nucleares, enquanto a China possui apenas três em operação.

2 Superioridade Financeira e Econômica

Os EUA também possuem vantagens significativas no setor financeiro. O dólar continua sendo a principal moeda de reserva, sendo utilizado em 88% das transações cambiais mundiais e representando 59% das reservas cambiais mundiais. Isso confere aos EUA grande influência sobre transações internacionais, sanções econômicas e acesso a mercados de capital. Além disso, os EUA dominam o sistema bancário internacional através do FMI, Banco Mundial e SWIFT, instrumentos que permitem restringir o acesso de adversários aos fluxos financeiros internacionais. A Bolsa de Valores de Nova York e o NASDAQ somam um valor de mercado superior a US$ 50 trilhões, enquanto as bolsas chinesas combinadas não ultrapassam US$ 10 trilhões.

3 O Fracasso do Balancing

Historicamente, a multipolaridade foi acompanhada por alianças de equilíbrio de poder (balancing). No entanto, não há evidências de que blocos e países como a União Europeia, Índia ou Japão estejam formando uma coalizão contra os EUA. Pelo contrário, muitos desses Estados mantêm relações estratégicas com Washington. A OTAN expandiu-se para 31 membros, reforçando o domínio dos EUA sobre a segurança europeia, e a aliança QUAD entre EUA, Japão, Índia e Austrália fortaleceu sua influência no Indo-Pacífico. A Índia, apesar de sua crescente economia de US$ 3,7 trilhões, ainda mantém laços estreitos com os EUA para equilibrar a influência chinesa. Assim, a ausência de um bloco consolidado contra os EUA reforça a continuidade da unipolaridade.

A Formação de uma Ordem Multipolar: Argumentos e Evidências

Por outro lado, ao observar outros aspectos e  outras perspectivas, há argumentos que sustentam a tese da ordem multipolar. Se no período imediatamente após a Guerra Fria os Estados Unidos eram a única superpotência inquestionável, hoje o cenário internacional apresenta múltiplos polos de influência que desafiam essa predominância. A seguir, destacam-se cinco argumentos principais que sustentam essa transição para um sistema multipolar.

Entre os principais argumentos, temos:

1. O Crescimento Econômico das Potências Emergentes

O argumento mais evidente para a multipolaridade está na ascensão econômica de países fora do eixo tradicional do poder ocidental. A China, com um PIB de US$ 17,8 trilhões, já superou os Estados Unidos em paridade do poder de compra (PPP) e representa cerca de 18% da economia mundial. Além disso, o BRICS, agora expandido para incluir Egito, Arábia Saudita, Irã, Emirados Árabes e Etiópia, ultrapassou o G7, respondendo por 31,5% do PIB mundial. A Índia, que atualmente ocupa o posto de quinta maior economia do mundo, segue um ritmo de crescimento acima de 6% ao ano, o que a posiciona como um ator central na nova arquitetura econômica internacional.

O comércio internacional também reflete essa mudança. A China consolidou-se como a maior exportadora do mundo, com 14% da participação, enquanto os EUA ficam atrás com 8,1%. O avanço da industrialização na Índia, Vietnã, Indonésia e Etiópia demonstra que a concentração da produção mundial nos EUA e na Europa está sendo gradativamente substituída por uma diversificação produtiva incorporando outras regionais.

2. A Desdolarização e o Enfraquecimento da Hegemonia Financeira dos EUA

Outro pilar da multipolaridade é a contestação da hegemonia do dólar e das instituições financeiras ocidentais. Tradicionalmente, o sistema financeiro internacional esteve atrelado ao dólar como moeda de referência, mas essa supremacia está sendo questionada. China, Rússia e Arábia Saudita firmaram acordos para realizar a maior parte de seu comércio bilateral em yuan e rublos, reduzindo a necessidade de transações em dólar.

Além disso, o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) do BRICS já forneceu mais de US$ 30 bilhões em empréstimos, sem as condicionalidades impostas pelo FMI e pelo Banco Mundial. Essa mudança permite que países emergentes financiem seus projetos sem depender dos critérios do Ocidente. Outra evidência da fragmentação financeira é a expansão das moedas digitais soberanas, como o yuan digital, que permite transações internacionais fora do alcance do sistema bancário ocidental.

3. O Declínio da Influência Militar e Geopolítica dos EUA

Apesar de sua superioridade militar, os EUA vêm enfrentando desafios para manter sua influência política e estratégica ao redor do mundo. O fracasso da ocupação no Afeganistão, a dificuldade em consolidar um desfecho favorável na guerra na Ucrânia e a incapacidade de conter a influência chinesa no Indo-Pacífico demonstram que Washington já não dita os rumos da geopolítica mundial de forma unipolar.

A Rússia, apesar das sanções, manteve sua resiliência militar e econômica, redirecionando suas exportações de energia para a Ásia. No Oriente Médio, a China assumiu o papel de mediador entre Arábia Saudita e Irã, um movimento que mostra a perda de protagonismo dos EUA na diplomacia regional.

A reconfiguração das alianças militares também reforça esse argumento. Embora a OTAN tenha expandido sua presença na Europa, países como Turquia e Hungria demonstram independência estratégica, negociando com Rússia e China. Enquanto isso, a consolidação do Eixo Pequim-Moscou-Teerã sugere que novas coalizões militares podem emergir fora do escopo de influência americana.

4. A Emergência de Governos e Movimentos Antineocoloniais

A política internacional tem testemunhado a ascensão de governos que questionam o modelo neocolonial e rejeitam a interferência das potências ocidentais. Na América Latina, líderes como Lula no Brasil, Gustavo Petro na Colômbia e Andrés Manuel López Obrador no México têm buscado maior autonomia política e fortalecimento das relações Sul-Sul.

Na África, países como Mali, Burkina Faso e Níger expulsaram tropas francesas e estreitaram laços com Rússia e China, recusando a dependência de antigas metrópoles coloniais. A formação da Aliança dos Estados do Sahel (AES) é um exemplo de como nações africanas estão se unindo para construir soluções próprias, livres da influência ocidental.

No Oriente Médio, a reaproximação entre Arábia Saudita e Irã, mediada por Pequim, é um dos maiores sinais da redução do domínio diplomático dos EUA na região. Além disso, a independência econômica e política dos Emirados Árabes e do Qatar evidencia que os países do Golfo não estão mais totalmente subordinados às diretrizes de Washington.

5. A Expansão da Produção Científica e Cultural no Sul Global

A transição para um mundo multipolar também se manifesta na produção científica e cultural. A China ultrapassou os Estados Unidos como o país que mais publica artigos acadêmicos no mundo, sendo responsável por 23% da produção científica mundial. Em setores estratégicos como inteligência artificial, semicondutores e energia renovável, Pequim já lidera investimentos e patentes.

Na Índia, universidades e centros de pesquisa em tecnologia e saúde vêm ganhando destaque global, enquanto países como Brasil e Coreia do Sul expandem suas indústrias criativas e tecnológicas. O avanço da pesquisa científica na África do Sul e Nigéria também ilustra como o conhecimento está deixando de ser monopólio do Ocidente.

Além disso, a ascensão de novas epistemologias e literaturas críticas tem desafiado o eurocentrismo nas ciências sociais e na filosofia política. Conceitos decoloniais, teorias africanas de governança e novas perspectivas sobre desenvolvimento sustentável estão sendo incorporadas em discussões internacionais, desestabilizando o domínio intelectual do Ocidente.

O que podemos concluir?

As recentes ações dos Estados Unidos, como a ampliação das sanções contra a Rússia, a intensificação da disputa tecnológica com a China e o reforço de alianças estratégicas no Indo-Pacífico, demonstram um esforço contínuo para preservar sua posição hegemônica. No entanto, essas medidas podem ter um efeito paradoxal, acelerando a formação de uma ordem multipolar ao invés de consolidar a unipolaridade americana. 

O argumento central do Mito da Multipolaridade, defendido por Washington, sustenta que nenhum país ou aliança é capaz de desafiar sua supremacia americana. Entretanto, a realidade geopolítica demonstra que essa postura agressiva tem incentivado maior cooperação entre potências revisionistas e países emergentes, fortalecendo blocos como os BRICS, a Organização de Cooperação de Xangai (OCX) e alianças energéticas alternativas, como os acordos de comércio de petróleo em moedas não ocidentais.

Enquanto os Estados Unidos insistem que seu poder econômico e militar garante a continuidade da unipolaridade, outros atores, como China e Rússia, argumentam que o sistema internacional já se configura como multipolar. A crescente desdolarização do comércio internacional, impulsionada pela adoção do yuan e do rublo em transações energéticas, a criação de mecanismos financeiros alternativos como o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) do BRICS, e a consolidação de zonas de influência regionais mostram que a resistência à hegemonia americana está em ascensão. Além disso, o distanciamento de países emergentes das instituições dominadas pelo Ocidente reflete a busca por maior autonomia estratégica e econômica, reduzindo a influência de Washington sobre suas políticas externas.

Dessa forma, embora os EUA ainda detenham vantagens estruturais significativas, sua capacidade de ditar unilateralmente as regras do jogo internacional está cada vez mais sendo contestada. A tentativa de conter adversários por meio de sanções e pressão militar pode estar precipitando a emergência de uma ordem multipolar consolidada, onde múltiplos centros de poder disputam a definição das normas do sistema internacional.

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Analista de Relações Internacionais, organizador do Congresso de Relações Internacionais e editor da Revista Relações Exteriores. Professor, Palestrante e Empreendedor.

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