A internacionalização de cidades têm sido algo recorrente nos últimos anos, resultante de diversas dinâmicas de âmbito doméstico e internacional, como já apontava Panayotis Soldatos (1990) em seus primeiros estudos sobre o tema. Fatores como a globalização, os processos de integração regional, a interdependência global, são fundamentais para impulsionar a inserção internacional de governos locais e regionais, na medida que facilitam a comunicação e os contatos transnacionais. Outros fatores de âmbito doméstico são igualmente relevantes, como a domesticação da política externa – isto é, quando os assuntos de interesse doméstico, sejam de foro local ou nacional, são envolvidos em tratativas da política externa do país – o que leva os governos subnacionais a reagirem e se interessarem por essas negociações. No nível local, questões como a visão das lideranças políticas sobre o assunto e as condições materiais existentes também vão determinar os rumos da área internacional de cidades ou regiões.
Há ainda outros fatores importantes que impactam a denominada paradiplomacia e que são elencados por Soldatos (1990) em seu modelo de análise, o qual é bastante utilizado para compreender esse fenômeno. De forma geral, muitos desses determinantes estão vinculados às particularidades dos países, como é caso da burocracia e da ineficiência do governo federal, do nacionalismo, das incertezas jurídicas, do crescimento e da assimetria entre as unidades federadas.
No caso do crescimento e da assimetria, o argumento é de que, ao possuir níveis de desenvolvimento distintos, as localidades também teriam capacidades distintas de internacionalização. Sendo assim, a ideia é de que as cidades mais desenvolvidas ou mesmo maiores – que a princípio teriam melhores condições financeiras, institucionais, de infraestrutura, de recursos humanos – estariam mais aptas para desenvolverem a paradiplomacia do que cidades menores, as quais enfrentariam limitações internas para se engajarem internacionalmente. No entanto, a motivação dessas cidades menores, ou mais pobres, para desenvolverem atividades paradiplomáticas seria exatamente a busca por melhorias em suas condições locais. Como destaca Rodrigues (2004: 170), ao analisar o caso brasileiro, a “situação do estado na federação brasileira, aí incluídos os desequilíbrios regionais existentes ou potenciais, constituem poderosa força a impulsionar os estados para relações externas”.
Mas como cidades pequenas fazem uso da paradiplomacia? A sua condição é de fato um impeditivo e tem dificultado o seu engajamento internacional?
As ações paradiplomáticas e a assimetria
Primeiramente, é preciso ressaltar que a paradiplomacia pode ser compreendida como uma ferramenta na qual os gestores públicos podem utilizar-se de ações internacionais para fortalecer a capacidade de gestão dos governos locais e promover o desenvolvimento das suas localidades. O campo da paradiplomacia é bastante amplo e diverso e pode trazer uma série de benefícios para as áreas que compõem o interesse da gestão pública municipal.
Os tipos de atividades paradiplomáticas são variadas. Há a possibilidade de realizar cooperação técnica ou financeira com organizações intergovernamentais, instituições financeiras e agências de cooperação, além de convênios e acordos de cooperação técnica com países e cidades estrangeiras; acordos de irmanamento entre cidades; participação em redes internacionais de cidades; missões ao exterior para divulgação e atração de investimentos.
No caso brasileiro, a prática da paradiplomacia é marcadamente heterogênea, variando de acordo com as capacidades das unidades subnacionais, em que cada governo subnacional define a sua atuação internacional de acordo com as suas condições internas (Barreto, 2005). Mas além das capacidades, em termos de recursos humanos e financeiros, por exemplo, a atuação internacional depende principalmente da decisão política por parte dos prefeitos e governadores.
O que se observa em muitos municípios brasileiros, principalmente nos municípios pequenos, é que os gestores municipais muitas vezes possuem uma autolimitação que impede uma atuação mais ativa e intensa no âmbito internacional (Barreto, 2005). Isso ocorre devido ao desconhecimento sobre as possibilidades existentes na área, a falta de capacidade técnica para traçar estratégias de gestão que incluem o âmbito internacional, bem como o próprio receio em relação à questão legal dessa atuação, devido à inexistência de um marco-jurídico regulatório da cooperação internacional praticada por esses governos.
Diante disso, as entidades de representação das cidades brasileiras, tais como a Confederação Nacional de Municípios (CNM) e a Frente Nacional de Prefeitos (FNP),são utilizadas como um canal facilitador para que municípios tenham contato com países e entidades estrangeiras e para o compartilhamento de boas práticas internacionais. Ao facilitar o contato dos municípios com organismos internacionais e agências de cooperação, essas entidades de representação criam as condições para o estabelecimento de parcerias que podem auxiliar a gestão municipal.
A CNM, por exemplo, busca promover a inserção internacional dos municípios brasileiros através de materiais informativos e eventos voltados para os gestores. Na coleção “Coletânea Gestão Pública Municipal”, a organização se propõe a orientar os gestores em relação a temas ligados à administração pública. A atuação internacional municipal é um dos temas abordados e conta com duas edições da Coletânea, a primeira edição aborda as estratégias de projeção internacional das cidades (CNM, 2008) e a segunda edição foca na cooperação internacional e a implementação de políticas públicas (CNM, 2016).
O caso das pequenas cidades paraibanas
Ao pesquisar especificamente sobre o caso da atuação internacional das cidades paraibanas¹, foi possível identificar as principais características e desafios que dificultam a inserção internacional de algumas cidades da Paraíba, mas também pontuar questões relacionadas à internacionalização das cidades de forma geral, em especial as cidades menores
O estado da Paraíba possui 223 municípios, sendo que 213 possuem menos do que 50 mil habitantes. São 189 municípios com menos de 20 mil habitantes. Somente a capital, João Pessoa, possui população acima de 500 mil habitantes. A segunda maior cidade da paraíba, Campina Grande, tem cerca de 409 mil habitantes e as próximas cidades da lista – Santa Rita, Patos e Bayeux, possuem entre 90 mil e 136 mil habitantes (IBGE). Portanto, é um estado povoado de pequenas cidades.
Em relação à atuação internacional, os municípios paraibanos possuem uma atuação recente, sendo João Pessoa a cidade em que essa atuação é mais preponderante. Embora João Pessoa não tenha área de relações internacionais institucionalizada, a paradiplomacia municipal apresentou avanços a partir de 2013. Contudo, os demais municípios apresentam uma baixa atuação e apenas algumas ações pontuais podem ser observadas.
De acordo com Rosa Márcia França, ex-gestora municipal responsável pelo programa Iniciativas Cidades Emergentes Sustentáveis com o BID, a visão que prevalece entre a maior parte dos gestores municipais paraibanos em relação à área de relações internacionais é no sentido de atração de turistas ao município e captação de recursos financeiros para a realização de obras de infraestrutura. Ana Cristina Barreto que também foi assessora jurídica na Prefeitura de João Pessoa entre 2005-2011, aponta que existe uma grande dificuldade em convencer os gestores de que o município pode se envolver em ações internacionais e que essas ações vão além do turismo e da captação de recursos financeiros.
A partir de diversas outras entrevistas realizadas com gestores locais, observou-se que a percepção dos gestores municipais paraibanos encontra, de modo geral, limitações similares às pontuadas pelos demais gestores municipais de outras regiões do país. Em pesquisa realizada com gestores municipais das cidades brasileiras, Ribeiro (2009) identificou que as principais dificuldades apontadas pelos gestores municipais brasileiros são: a pouca importância conferida à paradiplomacia, os recursos orçamentários limitados e a fragmentação das ações nos órgãos municipais.
A pouca importância dada para área de relações internacionais pode ser em razão do próprio desconhecimento acerca dos possíveis benefícios que a atuação internacional municipal pode trazer para o município. O diretor administrativo da Secretaria de Gestão e Administração da Prefeitura de Santa Rita/PB, José Noberto, relatou em entrevista que o pensamento dos gestores locais é limitado e dificilmente conseguem ter uma percepção sobre a área internacional.
Nos casos dos municípios com gestores que possuem uma percepção mais robusta sobre a paradiplomacia, as ações ainda são incipientes e predomina a falta de pessoas com preparo técnico capacitado, o que dificulta o andamento das possíveis iniciativas que podem surgir. Nesse sentido, observa-se que o tema da internacionalização geralmente chega ao município pela iniciativa pessoal de um gestor público com maior motivação e interesse na área.
O caso da cidade de Pombal (PB), localizada no sertão paraibano e com pouco mais de 32 mil habitantes, exemplifica bem essa questão do personalismo. Durante sua gestão, a prefeita Pollyanna Dutra executou o seu plano de governo alinhado às metas dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM). As políticas implementadas para cumprir os objetivos tiveram êxito em reduzir as condições de vulnerabilidade social da população, melhorando os indicadores sociais do município e tornando-o a cidade brasileira mais próxima de atingir os Objetivos. A partir disso, Pombal se tornou referência na municipalização dos ODM, sendo escolhida para representar os municípios brasileiros na 70º Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em Nova York (EUA) em 2015. Além de falar sobre a experiência de Pombal na Assembléia da ONU, a prefeita Pollyanna participou de diversos fóruns para apresentar os projetos implementados para cumprir as metas e os resultados obtidos pelo município.
Essa iniciativa representa como o personalismo pode ser determinante nas ações da prefeitura municipal. Assim, o interesse e conhecimento prévio na área é o principal ponto de partida para o início da ação, e a decisão política dos gestores é indispensável para a sua continuidade. No caso de Pombal, partindo do interesse e da vontade política da governante, as metas dos Objetivos foram inclusas nas políticas da prefeitura desde o levantamento das demandas da população.
Outra experiência positiva é a do município de Picuí (PB) com o projeto “Fábrica dos Solos”, o qual levou o município a ser finalista do Prêmio ODS Brasil em 2018 e receber uma menção honrosa da Organização das Nações Unidas (ONU). A premiação tem como objetivo incentivar e dar visibilidade às boas práticas locais que contribuam para alcançar as metas da Agenda 2030, e através do prêmio as cidades obtém reconhecimento nacional e internacional.
Uma outra forma pela qual ocorre o contato dos municípios menores com o sistema internacional é através de iniciativas da União, que realizam acordos com organismos internacionais nas quais os municípios podem aderir. Um exemplo disso é a experiência dos municípios paraibanos no Programa Nacional de Apoio à Modernização Administrativa e Fiscal dos Municípios Brasileiros (PNAFM), um programa do Governo Federal e que conta com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). A participação no programa era realizada através da Caixa Econômica Federal e esta sub-emprestava aos municípios os recursos advindos do BID. Com o objetivo de auxiliar os municípios que aderissem ao PNAFM, o BID realizou uma parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para prestar consultorias e capacitar os funcionários municipais para a realização de licitações para compra externas de acordos com as normas do banco. Na primeira fase do programa, no início dos anos 2000, sete cidades paraibanas participaram, foram elas: João Pessoa, Campina Grande, Cabaceiras, Gurjão, Livramento, Sumé e Uiraúna.
A partir da experiência com o PNAFM, foi observado que o desconhecimento sobre a atuação internacional vai além do âmbito municipal. As ex-gestoras da Prefeitura de João Pessoa que foram entrevistadas também destacaram que é comum em projetos de cooperação financeira se deparar com a dificuldade dos tribunais de contas, que não entendem a autonomia dos municípios em relação à realização desses projetos com recursos advindos de outros países e de organismos internacionais. Outro ponto destacado foi a dificuldade no entendimento dos auditores fiscais sobre as especificidades da legislação dos organismos internacionais.
A consultora Ana Cristina Barreto também pontuou a importância de promover a imagem do município de forma mais ampla, seja ligada ao turismo ou não, pois essa seria uma porta de entrada para parceiros internacionais conhecerem a cidade e suas potencialidades. Na perspectiva dos gestores municipais entrevistados, o turismo é a principal área destacada. De acordo com Célia Domiciano, fundadora da organização não-governamental Aliança Bayeux Franco Brasileira, uma iniciativa que conta com a parceria da cidade francesa de Bayeux, a divulgação da cidade é um ponto importante e também faz parte de uma estratégia de promoção turística da cidade, a partir disso é possível obter vantagens para além do aumento do fluxo de turistas.
Outras áreas como educação e cultura também foram abordadas como sendo potenciais eixos de parcerias internacionais para os municípios. No âmbito da cultura, uma perspectiva interessante é a valorização das festividades locais como forma de atrair a visibilidade nacional e internacional para o município. A valorização dos aspectos culturais pode trazer pontos de convergência com cidades estrangeiras e a partir dessa perspectiva cultural se ter uma aproximação entre ambas, o que geralmente ocorre na forma de acordos de irmanamentos, em que as cidades se tornariam então cidades-irmãs.
A atuação internacional de cidades pequenas possui, portanto, algumas particularidades e limitações relacionadas às suas condições materiais e locais, mas o que se observa, especialmente no caso relatado das cidades paraibanas, é que a qualificação do corpo técnico e a visão de mundo das lideranças políticas ainda podem fazer a diferença para a projeção paradiplomática das localidades.
Referências Bibliográficas
CNM, Confederação Nacional dos Municípios. Atuação Internacional Municipal: Estratégias para Gestores Municipais Projetarem Mundialmente suas Cidades. Brasília: CNM, 2008.
____. Atuação Internacional Municipal: Cooperação e Implementação de Políticas Públicas. Brasília: CNM, 2016.
BARRETO, Maria Inês. A inserção internacional das cidades enquanto estratégia de fortalecimento da capacidade de gestão dos governos locais. Congreso Internacional Del Clad sobre la reforma del Estado y de la Administración Pública, Santiago, Chile, 2005. Anais. Santiago, 18-21 oct. 2005.
RIBEIRO, Maria Clotilde. Globalização e novos atores: a paradiplomacia das cidades brasileiras. Salvador: EDUFBA, 2009.
RODRIGUES, Gilberto Marcos Antônio. Marco Jurídico para a Cooperação Internacional Descentralizada: Um Estudo sobre o Caso Brasileiro. São Paulo: Frente Nacional de Prefeitos, 2011.
SOLDATOS, Panayotis. (1990). An Explanatory Framework for the Study of Federated States as Foreign-policy Actors. In: MICHELMANN, Hans J.; SOLDATOS, Panayotis. Federalism and International Relations: the role of subnational units. New York: Oxford University Press, pp. 34-53.
¹ Realizada entre 2017 e 2018, a pesquisa de iniciação científica foi coordenada pela Profa. Dra. Liliana Ramalho Fróio e vinculada ao Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba (DRI/UFPB) e teve como objetivo mapear a atuação internacional das 5 maiores cidades paraibanas: João Pessoa, Campina Grande, Bayeux, Patos e Santa Rita.