Em 2011, quando o presidente turco Recep Tayyp Erdogan, a luz da eclosão da guerra civil na vizinha Síria, passou, em conformidade com a postura de seus aliados ocidentais da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), a apoiar as forças rebeldes que lutavam contra o governo de Bashar al-Assad sem contudo se envolver diretamente, o que se podia presumir era uma relação de continuidade com a política externa que vinha norteando a Turquia a cerca de 65 anos: amizade e alinhamento com o ocidente, somados a uma postura cautelosa em relação aos assuntos turbulentos do Oriente Médio.
Todavia, 9 anos depois, a situação mudou drasticamente: em pleno 2020, Ancara vê suas relações com os governos ocidentais em frangalhos ao mesmo tempo em que busca expandir agressivamente sua influência em âmbito regional, inclusive intervindo diretamente nas guerras da Síria e da Líbia. O que pode ter causado essa guinada de 180 graus, cujas consequências para a segurança regional ainda não são totalmente claras?
Uma Breve História da Política Externa Turca (1922-2003)
As raízes da política externa turca, que até pouco tempo atrás era vigente, podem ser traçadas até o ano de 1922, ano em que o general Mustafa Kemal Atatürk aboliu a dinastia otomana que governou o país por mais de 5 séculos e proclamou a República da Turquia. Um reformador que atribuía a decadência do país, que já fora na uma das maiores potências mundiais na Era moderna, ao arcabouço institucional obsoleto do império, que impediu que a Turquia se adaptasse às inovações do Iluminismo e da Revolução Industrial, Atatürk buscou um processo de modernização inspirado no Ocidente. No âmbito interno, foi lançada uma série de reformas progressistas que tornaram o país, de uma monarquia oriental absolutista baseada no Islã a um Estado secular, dotado de instituições políticas e econômicas ao estilo ocidental. Já na frente externa, Ataturk norteou sua política exterior em dois critérios chave: uma aproximação estratégica com as nações do ocidente, vistas como os modelos da nova Turquia, e a manutenção de uma abordagem mais pacífica e cautelosa possível em relação aos demais países, rompendo assim totalmente com o passado expansionista dos tempos do império.
Após a morte de Ataturk em 1938, a continuidade de suas políticas foi mantida e assegurada, em grande parte graças à constituição de um poderoso establishment kemalista que neutralizou o surgimento de alternativas a esse projeto de poder. Os golpes militares que esse Istambul sofreu em 1960, 1971 e 1980 podem ser entendidos como um esforço dos militares, considerados “guardiões do sistema kemalista”, de evitar que forças políticas islamitas ou socialistas de chegasse ao poder e colocassem em risco esse sistema.
Durante a Guerra Fria (1945-1991), a aproximação da Turquia com as nações ocidentais se acentuou: motivada pelo medo da expansão do comunismo soviético, Ancara se alinhou ao bloco norte-americano, ingressando na OTAN em 1952 e constituindo, a partir daí, o principal baluarte anticomunista no leste do mediterrâneo. Ao mesmo tempo, o país manteve-se a parte dos crescentes atritos entre as nações islâmicas.
Nesse período, o Estado turco tomou ações mais radicais apenas nos casos em que considerou sua integridade territorial abalada: Ancara invadiu e dividiu a ilha do Chipre em 1974 para fim de evitar que um governo patrocinado pela junta militar da Grécia colocasse em risco a minoria turca do país, um status quo que perdura até hoje, e reprimiu brutalmente os esforços da minoria curda no leste do país de alcançar a independência.
O Fator Erdogan: Desdobramentos Internos e Externos (2003-2016)
O elemento que acabaria por realizar a ruptura com essa continuidade começou a se materializar em 2003, com a eleição para o cargo de primeiro-ministro de Recep Tayyp Erdogan, do Partido Justiça e Desenvolvimento. Esse ex-prefeito de Istambul, que ganhou fama ao resolver problemas urbanísticos históricos da ex-capital, possuía um programa ideológico que ia na completa contramão da tradição kemalista: um autodeclarado islamista, que repudiava o Estado secular do país em favor de um maior papel da religião islâmica na vida política do país, Erdogan defendia, em matéria de política externa, o que chama de Neo-Otomanismo: uma restauração da Turquia a seu papel histórico de grande potência no Oriente Médio, mesmo que isso significasse o uso de métodos agressivos. Ainda assim, em seus oito anos como chefe do governo, Erdogan não buscou ativamente colocar em prática nenhuma dessas pautas. O discurso islamista e otomanista se restringiu ao campo da retórica e a Turquia não conheceu nenhuma quebra de continuidade nesse período.
A situação mudou drasticamente após a eleição de Erdogan como presidente em 2010: agora na chefia do Estado, o novo mandatário iniciou uma rápida e agressiva consolidação de poder voltada para fortalecer a presidência. As forças armadas, até então um Estado dentro do Estado, foram colocadas sobre rígido controle civil após uma onda de resignações em 2011 e, no ano seguinte, o judiciário foi igualmente desprovido de sua autonomia. A consolidação autocrática chegou ao auge após o fracassado golpe de 2016, quando a retaliação de Erdogan a um malfadado complô militar, supostamente arquitetado por um de seus críticos no exílio, Fethullah Gülen, resultou num expurgo no qual mais de 150 mil funcionários públicos foram demitidos e cerca de 80 mil pessoas foram presas. Se antes havia, dentro da sociedade e do Estado turcos, obstáculos à política externa do presidente, agora não haviam mais.
Paralelamente, no âmbito externo, as relações entre Erdogan e seus aliados ocidentais começaram a se esgarçar, tendo como pomo da discórdia os curdos da Síria: desde a eclosão da guerra civil, Washington e as nações europeias viam o movimento independentista curdo como aliado contra o Estado Islâmico (ISIS) e o governo de Al-Assad, para horror de Ancara, que temia que a independência do curdistão sírio serviria de estopim para que o mesmo ocorresse na Turquia. As relações chegaram a um ponto de extrema tensão em 2016, após críticas abertas do ocidente a forma como Erdogan lidou com o golpe. Tendo seus interesses feridos pela postura ocidental, o Estado turco, num ato inédito de balancing, se afastou de seus aliados históricos e buscou uma aproximação com a antiga inimiga Rússia, com a qual a Turquia quase havia entrado em guerra meses antes por conta de um incidente aéreo relacionado à Síria, onde Moscou, em oposição à Ancara, apoiava fortemente o governo de Al-Assad. Tal manobra produziu o efeito de colocar a Turquia numa zona cinza entre os russos e os ocidentais, o que fortaleceu sua capacidade de agir como ator independente.
Foi, portanto, a soma entre a consolidação de seu poder em âmbito interno e a criação de um cenário internacional mais fluido e incerto que criaram as condições favoráveis para que Erdogan rompesse com quase 100 anos de continuidade de política externa em favor de seu projeto neo-otomanista.
Neo-Otomanismo na Prática: A Expansão da Presença Militar Turca (2016-)
É necessário analisar a forma pela qual a nova política externa turca vem sendo colocada em prática. De um modo geral, as iniciativas exteriores do país não parecem ser fruto de um plano-mestre meticulosamente planejado, mas sim de um cálculo oportunista essencialmente reativo, no qual Ancara, tirando vantagem de oportunidades que vão surgindo à medida que conflitos locais vão eclodindo, procura intervir para aumentar a pegada de sua influência na região. Entre essas iniciativas, podemos citar:
- A formação de uma aliança com o Catar em 2017, na esteira do esgarçamento das relações desse país com as demais monarquias do golfo. O acordo, que objetiva criar um eixo de poder em oposição tanto ao bloco sunita encabeçado pela Arábia Saudita quanto ao bloco xiita liderado pelo Irã, foi selado com a instalação de uma força de 5 mil soldados turcos no território catarense.
- A deflagração de uma intervenção direta na guerra civil síria, focada não em ajudar os rebeldes a derrubar o governo, mas sim em neutralizar as forças curdas. As operações Escudo do Eufrates (2017) e Ramo de Oliveira (2018) asseguraram uma zona de ocupação tampão nas imediações da fronteira turca, enquanto a operação Primavera da Paz (2019) cortou o corredor que permitiria a ligação entre as tropas curdas do noroeste e do nordeste do país. Em um movimento simétrico, Ancara ocasionalmente lança incursões no Iraque a fim de desencorajar as tropas da região semiautônoma do Curdistão Iraquiano de apoiarem suas contrapartes sírias.
- O ingresso, em 2020, na guerra civil líbia, a favor do Governo do Acordo Nacional, reconhecido pela ONU e em oposição ao Exército Nacional Líbio apoiado pelo Egito, Rússia, Arábia Saudita, França e Emirados Árabes. O propósito declarado da operação é garantir o estabelecimento de um regime líbio favorável ao projeto Pátria Azul, uma iniciativa do governo turco para firmar uma esfera de influência sobre o mar mediterrâneo. Um acordo naútico entre o GNA e Ankara em março deste ano criou as bases para um espaço marítimo conjunto englobando grande parte do mediterrâneo oriental.
- O envio, em 2020, de tropas e armas para o Azerbaijão, em resposta aos crescentes choques armados entre esse país e a Armênia, uma consequência do conflito territorial sobre a posse da região de Nagorno-Karabakh, não resolvida desde 1992.
- A abertura, em 2017, de uma base militar na Somália, acompanhada de uma missão militar para treinar o exército somali. Também foi instalado um destacamento militar na Albânia, em 2020, e existem planos para a colocação de outro no Sudão.
Os Impactos da Nova Política Externa Turca
Resta saber quais as consequências da guinada belicista de Ancara para o futuro do próprio país e estabilidade regional do Oriente Médio. A curto prazo, o expansionismo fortaleceu a posição estratégica do país, o qual soube se aproveitar das fraturas históricas expostas pelos conflitos locais para se inserir e avançar sua agenda econômica e geopolítica. Ainda considerada uma nação emergente, sem o poderio bélico ou econômico para competir com a UE, os Estados Unidos ou a Rússia nesses critérios, Ancara soube se projetar como um competidor de peso graças ao dinamismo agressivo de suas ações e a sua capacidade de cooptar aliados, estatais ou não, para servirem como baluartes de sua influência. É inegável que a pegada de poder da Turquia é inegavelmente maior hoje que a 5 anos atrás.
Contudo, esse expansionismo agressivo vem cobrando um preço alto para o status diplomático do país, que se vê envolvido em conflitos simultâneos com grandes potências com às quais não seria sábio se indispor. Se continuar agindo como fonte de instabilidade, Ancara pode ser ver como um pária internacional ou, ainda pior, unir antigos inimigos contra si. O caso das potências ocidentais ilustra essa possibilidade: os ataques contra os curdos, feitos na contramão da política da OTAN, somados aos expurgos políticos pós-golpe caíram na desgraça de Washington e Bruxelas, cujas críticas os turcos responderam no início de 2020, como a ameaça de permitir que os 3 milhões de refugiados sírios em território turco partam para a Europa, agravando a crise migratória do continente. Se esse esgarçamento evoluir para uma ruptura permanente, Ancara será privada dos aliados que por mais de 65 anos foram parte essencial de sua política de segurança, além de suas principais fontes de investimento estrangeiro.
A questão com a Rússia é ainda mais complexa: em teoria oponentes nas guerras da Líbia e Síria, os dois lados, cujas relações foram adoçadas pela compra do sistema antiaéreo S-400 russo pelos turcos, souberam calibrar sua atuação para alcançar objetivos de interesse comum: o ataque contra os curdos, longe de antagonizar Moscou, forçou os curdos a se aproximarem do governo sírio, fortalecendo os planos russos de reunificar o país sobre o jugo de Al-Assad. O subsequente “processo de Astana”, onde os dois países reservaram para si o processo de paz do país, efetivamente eliminou o pouco de influência ocidental que restava, para deleite do Kremlin. Contudo, uma solução permanente com relação aos territórios ainda ocupados pelos turcos na fronteira ainda parece longe de ser encontrada e, como os tiroteios de março de 2020 entre soldados turcos e sírios nos mostram, a questão tem potencial para evoluir para uma crise facilmente. A intervenção turca na questão Armênia-Azerbaijão pode ser outro fator de atrito, dado que Moscou os considera parte de sua esfera de influência.
A iniciativa “Pátria Azul” acrescentou novos inimigos, incluindo a Grécia e o Egito, ambos os quais terão suas zonas marítimas engolidas pelo espaço econômico turco-líbio. Este último se encontra duplamente prejudicado, dado que uma vitória do Governo do Acordo Nacional, cuja base possui partidos islamitas, poderia reacender o surgimento da Irmandade Muçulmana, considerada associação terrorista pelo Cairo. Por último, temos também Arábia Saudita e Emirados Árabes, desgostosos com as ações contra seu aliado líbio e a aliança com o Catar, agora desgarrado de sua influência.
Como um jogador que faz várias apostas arriscadas, a Turquia, com sua nova política externa, foi capaz de expandir sua influência agressivamente sem, até o momento, causar uma ruptura permanente. Seria aconselhável que Ancara reconhecesse a fragilidade de sua posição a longo prazo e tentasse moderar seu apetite para poder negociar um novo status quo que consolidasse seus ganhos antes que uma aposta mais alta e imprudente ponha todos a perder.
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