O conceito de justiça climática surgiu em resposta às crescentes preocupações com as mudanças climáticas e seus impactos desiguais sobre diferentes grupos sociais e países ao redor do mundo. A justiça climática busca abordar as desigualdades e injustiças relacionadas aos eventos climáticos causados pelo homem, reconhecendo que as responsabilidades históricas, capacidades e vulnerabilidades são distribuídas de maneira desproporcional. Em sua essência, ela procura garantir a equidade no enfrentamento das mudanças climáticas, assegurando que as ações de mitigação e adaptação sejam conduzidas de forma a não agravar as desigualdades e a proteger os direitos humanos e o bem-estar das populações mais vulneráveis.
Em paralelo, o planejamento urbano participativo é uma abordagem inovadora, que visa envolver ativamente os cidadãos no processo de desenvolvimento e transformação das cidades. Neste texto, explora-se a importância e os benefícios dessa prática, bem como os desafios enfrentados na sua implementação. Analisa-se a importância da participação popular para alcançar a justiça climática, com o envolvimento ativo da sociedade civil, das comunidades locais, dos governos e das organizações não-governamentais no desenvolvimento do Plano Diretor das cidades brasileiras.
Ao permitir que os residentes, ONGs e outros atores locais tenham voz nas decisões urbanas, o planejamento participativo cria cidades mais inclusivas, sustentáveis e resilientes. Além disso, a participação popular fortalece o poder de pressão da sociedade civil sobre os governos e outras instituições responsáveis pela formulação e implementação de políticas climáticas. O envolvimento ativo das pessoas pode criar uma cultura de responsabilidade e cobrar ações concretas para combater as mudanças climáticas. A transparência das ações públicas, como a prestação de contas, é reforçada quando a população se mantém vigilante sobre as políticas climáticas e seus impactos.
Justiça climática e adaptação urbana
As mudanças climáticas têm sido um desafio crítico crescente para as cidades no século XXI. Os cientistas do IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change) apontam que as mudanças interagem com tendências globais, como o uso insustentável dos recursos naturais e a crescente urbanização. As áreas urbanas abrigam 4,2 bilhões de pessoas, a maioria da população mundial.
Os processos de urbanização geram vulnerabilidade e exposição que, combinados com os perigos das mudanças climáticas, causam riscos e impactos urbanos. Globalmente, o crescimento mais rápido em vulnerabilidades urbanas tem ocorrido em cidades e assentamentos onde a capacidade de adaptação é limitada – especialmente em assentamentos informais e não planejados em nações de baixa e média renda e em centros urbanos de médio porte. Desigualdade, conflitos, pobreza, governança ineficiente e acesso limitado a serviços básicos aumentam a exposição aos perigos e limitam a capacidade das comunidades de se adaptarem às mudanças climáticas.
Como a justiça climática se conecta aos direitos humanos e ao desenvolvimento com uma abordagem centrada no ser humano, garantindo os direitos dos mais vulneráveis e o compartilhamento de deveres e impactos das mudanças climáticas e sua resolução de forma equitativa e com justiça (Meikle, Wilson & Jafry, 2016), é necessário que todos os atores sejam ouvidos, em especial, os mais impactados por essas mudanças. A justiça climática tem um componente vital de reconhecimento e participação social, e estudiosos urbanos colocam a pesquisa orientada para a justiça no centro da ação ambiental. Desse modo, a adaptação urbana deve se envolver ativamente com as formas de desigualdade espacial já visíveis no ambiente urbano e enfrentá-las de frente, por exemplo, por meio do planejamento urbano.
A adaptação urbana inclusiva exige o afastamento das comunidades como apenas vitimizadas, olhando em vez disso para as causas estruturais da vulnerabilidade e a necessidade de medidas que aproveitem o potencial deleas emresponder aos desafios das mudanças climáticas. O fortalecimento dos instrumentos democráticos de planejamento e gestão urbana possibilita a participação da sociedade civil na elaboração das políticas urbanas, direcionando a atuação do Poder Público no atendimento concreto e efetivo do anseio social por uma vida com qualidade. Como ressalta Guimarães (2019), a prática do planejamento, mais do que estabelecer modelos ideais para o funcionamento das cidades, deve contemplar os conflitos e ter a função de corrigir os desequilíbrios das desordens causadas em decorrência da urbanização. Daí a importância de ser elaborado por meio de um processo democrático, garantindo a participação da população e associações representativas dos diversos segmentos da comunidade.
Como indica o Relatório de Cidades Globais da ONU-Habitat (2022), o planejamento territorial eficaz é fundamental para mitigar os impactos sociais, econômicos e ambientais associados ao crescimento das cidades. O crescimento da área urbana em países de baixa renda, por exemplo, exigirá esforços substanciais em termos de planejamento e investimentos em infraestrutura. Os impactos climáticos e outras crises ambientais interagem com a desigualdade urbana, afetando a capacidade das pessoas de antecipar o impacto, além de responder e recuperar-se deles. Lidar com riscos futuros – incluindo riscos ambientais – deve ser uma das principais preocupações dos governos locais e outros atores urbanos.
O Plano Diretor e o planejamento urbano participativo
No Brasil, as diretrizes gerais da política urbana requerem que os municípios com mais de vinte mil habitantes, municípios integrantes das regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, áreas de interesse turístico e de empreendimentos de impacto ambiental tenham planos diretores aprovados ou revisados até outubro de 2006, prazo posteriormente alterado para junho de 2008. Segundo dados do IBGE (2016), das 5.572 cidades brasileiras, mais de 50% contam com um plano diretor aprovado e 12,4% municípios estavam em processo de elaboração de seus planos diretores municipais em 2015. Os Planos Diretores, enquanto instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana e aliados à Constituição Federal e ao Estatuto da Cidade, são marcos legais transformadores da realidade das cidades brasileiras.
Como apontam Espíndola e Ribeiro (2020), apesar de não citar especificadamente as mudanças climáticas em suas diretrizes e instrumentos de gestão urbano-territorial, espera-se que o plano diretor incorpore estratégias que visem a adaptação urbana e redução das vulnerabilidades existentes e futuras da população e do território aos possíveis impactos da mudança climática.
Segundo Espíndola e Ribeiro (2020),
“As cidades, independentemente de suas características geográficas, demográficas, econômicas, sociais e políticas, necessitam dedicar-se à adaptação de seus territórios às consequências e efeitos das mudanças climáticas. Somente assim é possível contribuir para a mitigação e a adaptação a esse problema ambiental que perpassa a esfera global, repercutindo localmente” (p.388).
É impossível incorporar as necessidades e valores de todos os atores no planejamento urbano com um modelo de solução único, pouco adaptado às características das comunidades locais na elaboração dessas estratégias. A discussão acerca da democratização do planejamento e gestão das cidades brasileiras engloba o debate sobre a participação efetiva das populações nos processos de decisão política nas comunidades em que estão inseridas. A concepção de democracia e participação prevista no Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01) prevê a validação das políticas públicas a partir da democracia participativa, através da elaboração obrigatória dos chamados Planos Diretores Participativos pelos municípios. Desse modo, pois, o Plano Diretor é um instrumento que permite um planejamento urbano da cidade, onde o gestor público, juntamente com a população, pode estabelecer propostas de melhoria do município para que a cidade cumpra devidamente sua função social.
A coprodução do conhecimento reconhece as possibilidades de reunir múltiplas perspectivas e tipos de conhecimento para desenvolver ações que melhorem a igualdade e bem-estar em ambientes urbanos e é um meio de construir uma compreensão comum de um problema e fornecer meios mais criativos para pensar sobre a cidade. Baseia-se em mecanismos informais e formais de engajamento, colaboração e parceria. O planejamento urbano, mesmo quando realizado por reconhecidos especialistas, deve levar em consideração os aspectos humanos envolvidos, direta e indiretamente, sendo o homem o objeto fundamental do planejamento, e a busca pela dignidade e qualidade de vida.
Segundo Meikle, Wilson & Jafry (2016), em geral, os grupos de baixa renda têm menos oportunidades de participar na tomada de decisões sobre mitigação e adaptação climáticas. E, na aplicação da justiça climática, deve-se considerar a justiça processual que exige “paridade de acesso à informação de forma prontamente compreensível sobre o clima, impulsionadores de mudança, impactos e suas implicações para indivíduos, comunidades e nações”, “paridade de acesso à representação em várias escalas desde o nível de base às discussões internacionais” e “uma aplicação uniforme e consistente das mesmas regras para todos, para adjudicar conflitos e ouvir propostas e políticas”.
Portanto, há um papel representativo da comunicação no processo de planejamento urbano participativo das cidades e, mais do que apenas a difusão de informação, é necessária a busca por engajamento por parte dos atores da sociedade, favorecendo tanto uma apropriação mais crítica da realidade, por parte dos sujeitos, como o desenvolvimento de uma ação transformadora. Além disso, como mencionam Ntiwane & Coetzee (2018), o sucesso da justiça processual depende de instituições disponíveis para apoiar a participação da sociedade, o que se conecta com a dimensão da justiça substantiva, que segundo os autores, refere-se às ferramentas de governança necessárias e disponibilizadas para treinar os públicos em geral para participar de tomada de decisão. Essas ferramentas de governanças envolvem instituições que observam os públicos e os capacitam sobre seus direitos sobre a participação nos processos de planejamento e tomada de decisão.
Como apontam Oliveira Filho & Vasconcellos (2011), disponibilizar espaços de participação é fácil, o difícil é garantir a qualidade desta participação, em razão dos interesses envolvidos. Segundo os autores, esse talvez seja o maior dilema a ser enfrentado para a efetivação de uma “política urbana” realmente democrática e participativa: a de não transformar a participação em um modelo de decisão a serviço de interesses políticos particulares e demandas de grupos mais organizados da sociedade e, ainda pior, legitimado pelo discurso democrático.
E os motivos da dificuldade de garantir a participação efetiva população são apontados por Lima (2012) como o fato de a população estar desvinculada de associações, que atuam efetivamente na busca de direitos, e a falta de capacitação técnica dos representantes da sociedade civil para lidar com a máquina estatal. Com isso, os sujeitos têm comprometidas a autonomia e a qualidade da participação, com assimetrias no conhecimento, o que pode levar a um desequilíbrio de poder que gera a reprodução de mecanismos de dominação e exclusão em espaços que, ao menos, em teoria, deveriam ser democráticos.
Além disso, o planejamento deve ser concebido como um processo contínuo que requer um sistema eficiente de acompanhamento e monitoramento e que reflita o confronto interativo entre as propostas e sua implementação, com ajustes sucessivos se necessários. Ao analisar o planejamento urbano participativo em Palmas (TO), Rodovalho, Silva & Rodrigues (2019), constataram que “o modelo de planejamento urbano participativo e gestão democrática, implantado após a aprovação do Estatuto da Cidade, encontra muitas dificuldades em seu processo de consolidação e produção de espaços urbanos mais justos e inclusivos. Seja dificuldades na institucionalização dos espaços democráticos de deliberação, de planejamento e gestão popular, ou pela cidadania pouco fortalecida e em construção da sociedade brasileira, ainda pouco compromissada com a função social da cidade e da propriedade urbana” (p.12).
É um grande desafio a adoção do planejamento como uma ação colaborativa envolvendo múltiplos agentes heterogêneos que podem ajudar na transição para práticas mais justas de adaptação e mitigação climáticas. No entanto, quer olhemos a partir de uma perspectiva de mitigação ou adaptação, ambas exigem abordar questões estruturais de desigualdade e exclusão, que se entrelaçam com questões de equidade e justiça.
Considerações Finais
A justiça climática aborda a necessidade de combater as mudanças climáticas de forma equitativa, considerando as diferentes responsabilidades históricas, capacidades e vulnerabilidades dos países e grupos sociais. Um aspecto importante da justiça climática é a inclusão das vozes e perspectivas das comunidades afetadas nas tomadas de decisão relacionadas às políticas climáticas. Isso implica em garantir a participação ativa da sociedade civil, especialmente das comunidades vulneráveis, nas negociações internacionais, nos processos de formulação de políticas nacionais e na implementação de projetos locais de adaptação.
Ao envolver diretamente as pessoas afetadas pelas mudanças climáticas, é possível obter uma compreensão mais abrangente dos desafios e necessidades específicas de cada região, bem como promover soluções mais adequadas e eficazes para enfrentar esses problemas. Essa abordagem também promove a apropriação das políticas climáticas pela população, aumentando a probabilidade de implementação bem-sucedida.
A participação popular é uma premissa fundamental nesse processo, pois permite que as vozes de comunidades marginalizadas e afetadas de maneira desproporcional pelas mudanças climáticas sejam ouvidas e levadas em conta na formulação de políticas e estratégias de mitigação e adaptação. O planejamento urbano participativo é um mecanismo valioso para garantir o desenvolvimento sustentável e inclusivo das cidades. Ao engajar ativamente os cidadãos no processo de planejamento e gestão urbana, é possível criar comunidades mais conectadas, resilientes e com maior qualidade de vida. Os desafios na implementação dessa prática são reais, mas com determinação e colaboração entre diversos atores, é possível superá-los e construir cidades mais justas e sustentáveis para as gerações presentes e futuras.
A gestão participativa e democrática garante a participação da população nas discussões e debates sobre o futuro da cidade para que os cidadãos possam expressar sua opinião, influenciando assim o destino do município. Porém, esses processos de coprodução enfrentam as mesmas dinâmicas de poder que influenciam a vida social, e comunidades vulneráveis podem se ver desempenhando um papel no processo de coprodução que não reconhece plenamente suas capacidades. Portanto, os processos de elaboração de planos e projetos precisam prever métodos e etapas que permitam a compreensão e participação dos cidadãos de diferentes segmentos da sociedade. O acesso à informação adequada e ao conhecimento técnico, para isso, são fundamentais, e a sociedade deve ser mobilizada para esse processo, com divulgação adequada.
Como Habermas afirma, o centro da democracia é comunicação, deliberação e argumentação entre as partes interesses diferentes. Portanto, o processo participativo no planejamento urbano deve ser, assim, emancipatório e educativo, se pretende ser, de fato, democrático. Só a partir desse processo participativo e democrático é possível desenvolver ações eficazes de combate às injustiças climáticas, com práticas direcionadas para o enfrentamento das causas das injustiças sociais e ambientais, promovendo mudanças estruturais em na relação entre humanos e natureza. Essa construção coletiva deve acontecer com ações socioambientais pautadas pela justiça e não por soluções pontuais e considerando a voz de todos os atores, em especial, aos mais impactados pelas mudanças climáticas.
A participação popular é a espinha dorsal da democracia e confere legitimidade às decisões relacionadas ao clima. A inclusão de diversos atores sociais nas discussões e tomadas de decisão garante que os interesses de todos os segmentos da sociedade sejam representados. Além disso, o diálogo aberto e inclusivo aumenta a transparência das políticas climáticas e a confiança nas instituições responsáveis por implementá-las.
Referências
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