O WikiLeaks, definido pela própria plataforma como uma organização midiática sem fins lucrativos (WIKILEAKS, 2022), foi gênese, ao longo dos anos, da divulgação de diversas histórias de alcance internacional como episódios de lavagem de dinheiro em bancos suíços, em 2008, ou o despejo ilegal de lixo na Costa do Marfim, em 2009 (WIKILEAKS, 2022). No dia 18 de fevereiro de 2010, o website iniciou a publicação de uma série de documentos secretos sobre a atuação estadunidense nas Guerras do Iraque e Afeganistão. Tais documentos foram vazados pela militar Chelsea Manning, analista de inteligência do Exército dos EUA (GARNETT & HUGHES, 2018). Em 2009, Manning foi designada para servir no Iraque onde obteve acesso aos bancos de dados militares CIDNE-I e CIDNE-A, os quais continham, respectivamente, informações sobre atividades no Iraque e no Afeganistão. Manning era um dos aproximadamente 1,4 milhão de militares com o maior nível de autorização (top secret) que poderia acessar os documentos (AFTERGOOD, 2012, apud GARNETT & HUGHES, 2018).
A partir de janeiro de 2010, Manning, consternada com as ações militares estadunidenses (MANNING, 2013), passou a coletar informações dos dois bancos de dados, salvando-as em um CD nomeado “Lady Gaga”, o qual foi, eventualmente, levado de volta aos EUA (LEIGH, 2010, apud GARNETT & HUGHES, 2018). Inicialmente, Manning tentou, sem respota, repassar o material aos jornais estadunidenses Washington Post e New York Times (MANNING, 2013). Assim, antes de retornar ao Iraque em fevereiro de 2010, onde continuou a coletar informações entre os meses de março e maio, a soldado enviou os documentos ao WikiLeaks (GARNETT & HUGHES, 2018).
O primeiro dos documentos, vazado em 18/02/2010, concernia encontros entre o chefe da embaixada dos EUA na Islândia, Sam Watson, e membros do governo islandês, juntamente com o embaixador britânico Ian Whiting (WIKILEAKS, 2010). O que se seguiu foi a revelação de cerca de 500 mil documentos (conhecidos como Iraq War Logs e Afghan War Diary), de diferentes níveis de sigilo, sobre as Guerras do Iraque e do Afeganistão (GARNETT & HUGHES, 2018). Esses documentos, incluindo trocas de mensagens diplomáticas e também do Departamento de Estado dos EUA, forneciam, entre outros, detalhes de encobrimento oficialmente sancionado de estupro e tortura sexual (inclusive de crianças) por empreiteiros militares privados e fuzilamento indiscriminado. O material vazado incluiu também vídeos de dois ataques militares aéreos dos EUA, os quais resultaram na morte de centenas de civis: em 2009 no vilarejo de Granai, Afeganistão, e, em 2007, na capital do Iraque, Bagdá. Neste último, nomeado pelo WikiLeaks “Collateral Muders”, foram registradas também as mortes de dois jornalistas da agência Reuters (GARNETT & HUGHES, 2018). Todo este material, apesar de agora estar em domínio público, nunca foi desclassificado (GARNETT & HUGHES, 2018).
Reação Pública
Em 28 de novembro de 2010, o secretário de imprensa da Casa Branca, Robert Gibbs, através de um comunicado oficial, advertiu sobre o lançamento iminente de ainda mais dados confidenciais, assegurando que tratavam-se de informações incompletas que não representavam a diplomacia americana, mas que tinham o potencial de comprometer as discussões privadas com governos estrangeiros e líderes de oposição, pondo em risco as operações de inteligência e relações externas do país com o resto do mundo. Ademais, ressaltou que o Presidente Barack Obama apoiava a transparência governamental e democrática, mas que neste caso, o roubo e disseminação de informações confidenciais era um crime. Por fim, ponderou que os dados vazados poderiam pôr em risco a vida de inúmeras pessoas que vivem em regimes opressivos e que trabalham ao redor do mundo em prol dos direitos humanos. Desta maneira, condenou as ações da Wikileaks, categorizando-as como “perigosas e irresponsáveis”. (SHANE e LEHREN, 2010).
Jornais internacionais como Der Spiegel (Alemanha), El País (Espanha), Le Monde (França), publicaram extensivas reportagens sobre a natureza dos documentos e sobre o precedente que havia sido aberto, já que, historicamente falando, os telegramas diplomáticos deveriam permanecer secretos por décadas, geralmente sendo revelados somente quando seus participantes já estavam aposentados ou mortos. Neste sentido, o próprio Departamento de Estado dos EUA, na sua série de documentos desclassificados, somente havia publicado eventos datados de 1976. Portanto, o fluxo inesperado de informações confidenciais contemporâneas havia despertado o fascínio de historiadores e jornalistas mundiais. (SHANE e LEHREN, 2010).
Algumas publicações declararam Julian Assange, o fundador da Wikileaks, como um “defensor da liberdade de discurso e de imprensa”. A Revista Time até mesmo o incluiu na lista de candidatos para Pessoas do Ano de 2010. O jornal The Economist defendeu a organização Wikileaks, cujos dados complexos forneciam maiores esclarecimentos aos cidadãos americanos, que deveriam estar a par de operações que dizem respeito à segurança internacional, sendo o vazamento das informações um ato de prerrogativa civil. Contudo, governos ocidentais referiram-se a Assange como um criminoso. O Departamento de Defesa dos EUA também sofreu duras críticas pelas falhas na segurança. (WEAVER e ADAMS, 2010).
Até aquele momento, os dados que Chelsea Manning havia anonimamente fornecido tinham sido selecionados pela Wikileaks, que decidiu publicá-los aos poucos para que houvesse um maior impacto. Contudo, em 2 setembro de 2011, a Wikileaks optou por tornar público a íntegra de todos os seus 251,287 arquivos, o que atraiu uma posição mais severa pela imprensa mundial, pois desta vez, as informações não haviam sido editadas para melhor compreensão, proteção e segurança de seu conteúdo. Neste sentido, os jornais The Guardian, New York Times, El Pais, Der Spiegel e Le Monde condenaram o vazamento dos documentos completos, que revelavam, dentre tantos dados sensíveis, a identidade de ativistas e militantes mundiais. (BALL, 2011).
O julgamento de Chelsea Manning
Ao ser identificada, Chelsea Manning foi presa pelo Comando de Investigações Criminais do Exército Americano em maio de 2010. Suas maiores acusações eram a violação da Lei de Espionagem de 1917, e a “ajuda ao inimigo” (do inglês aiding the enemy) que era passível de pena de morte. Manning foi inicialmente detenta em Kuwait, e depois transferida para a base de Quantico, estando sob forte vigilância, pois seu comportamento causou riscos de suicídio. Em uma cela pequena, e sob condições consideradas como “cruéis, degradantes e desumanas”, seu encarceramento foi criticado por autoridades das Nações Unidas. (PILKINGTON, 2012).
Em julho de 2013, ocorreu o julgamento de Manning, presidido pela Coronel Denise Lind, que atuou como juíza. Chelsea Manning declarou-se culpada por 10 das 22 acusações, afirmando que havia tornado os documentos públicos para mostrar a realidade das guerras. A sentença máxima poderia acarretar até 90 anos de prisão. No fim, foi condenada a 35 anos. Após emitir uma petição à Casa Branca, Chelsea Manning teve sua pena reduzida em janeiro de 2017, pois o presidente Barack Obama a concedeu clemência. Em seguida, ela foi liberada por decisão do Departamento de Justiça Americana. (SAVAGE, 2017)
Em fevereiro de 2019, Chelsea Manning foi convocada pelo governo americano para testemunhar contra o fundador da Wikileaks, Julian Assange. Ao recusar-se a contribuir para o caso em fomento, foi novamente presa por desacato. No ano seguinte, uma decisão judicial a libertou, sob o fundamento de que seu depoimento não era mais necessário, e que sua detenção não servia a mais nenhum propósito. Atualmente, Chelsea Manning está em liberdade. (SAVAGE, 2020).
Referências
BALL, James. WikiLeaks publishes full cache of unredacted cables. The Guardian, Londres, 02 set. 2011. Disponível em: https://www.theguardian.com/media/2011/sep/02/wikileaks-publishes-cache-unredacted-cables. Acesso em: 20 jan. 2022
GARNETT, P. & HUGHES, S. M. Obfuscated democracy? Chelsea Manning and the politics of knowledge curation. Political Geography, v. 68, p. 23-33, 2018. Disponível em: <https://dro.dur.ac.uk/26864/1/26864.pdf?DDD14+hpjc34>. Acesso em: 08 jan 2022
MANNING, C. Transcript | US v Pfc. Manning, Pfc. Manning’s statement for the providence inquiry, 2/28/13. 2013. Disponível em: <http://alexaobrien.com/archives/985>. Acesso em: 08 jan 2022
PILKINGTON, Ed. Bradley Manning’s treatment was cruel and inhuman, UN torture chief rules. The Guardian, Nova Iorque, 12 mar. 2012. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2012/mar/12/bradley-manning-cruel-inhuman-treatment-un. Acesso em: 20 jan. 2022
SAVAGE, Charlie. Chelsea Manning Is Ordered Released From Jail. The New York Times, Nova Iorque, 12 mar. 2020. Disponível em: https://www.nytimes.com/2020/03/12/us/politics/chelsea-manning-released-jail.html. Acesso em: 20 jan. de 2022
SAVAGE, Charlie. Chelsea Manning to Be Released Early as Obama Commutes Sentence. The New York Times, Nova Iorque, 17 jan. 2017. Disponível em: https://www.nytimes.com/2017/01/17/us/politics/obama-commutes-bulk-of-chelsea-mannings-sentence.html. Acesso em: 20 jan. 2022
SHANE, Scott; LEHREN, Andrew W. Leaked Cables Offer Raw Look at U.S. Diplomacy. The New York Times, Nova Iorque, 29 nov. 2010. Disponível em: https://www.nytimes.com/2010/11/29/world/29cables.html?_r=2&hp=&pagewanted=all. Acesso em: 20 jan. 2022
WIKILEAKS. 2022. Descrição da plataforma. Disponível em: <https://wikileaks.org/About.html>. Acesso em: 08 jan 2022
WIKILEAKS. Classified cable from US Embassy Reykjavik on Icesave, 13 Jan 2010. 2010. Disponível em: <https://wikileaks.org/wiki/Classified_cable_from_US_Embassy_Reykjavik_on_Icesave,_13_Jan_2010>. Acesso em: 08 jan 2022