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O Catar e suas características como potência regional

Em Relações Internacionais, a ideia de poder muitas vezes está ligada a abundância de recursos a disposição de um país. Exércitos de grande porte, economias robustas e enormes populações são critérios muito usados para se calcular o peso geopolítico de uma nação no cenário global e, não à toa, grandes potências como EUA, China, Rússia e Europa possuem um ou mais desses recursos. Contudo, esse não é sempre o caso. Existem casos de pequenos países que exercem uma influência desproporcional se comparada com sua base de recursos, e um deles é o Catar. 

Uma Breve Descrição do Catar

Um pequeno emirado às margens do Golfo Pérsico, o Catar tem uma área de 11 mil km2  (menor que a Eslovênia), um Produto Interno Bruto (PIB) aproximado de $147 bilhões de dólares (menor do que o da Grécia), uma força armada de apenas 15 mil homens (menos que Portugal) e uma população de menos de 3 milhões de habitantes (menos que o Estado brasileiro de Alagoas). Ainda assim, esse pequeno país é considerado uma potência regional, projetando uma pegada diplomática capaz de, não apenas de rivalizar com inimigos regionais muito mais fortes, como Arábia Saudita e Emirados Árabes, como também de estender sua influência muito além do Oriente Médio, no coração do próprio ocidente. Para entender esse processo, é necessário conhecer um pouco mais sobre esse país.  

 A história do Catar está associada a família que o governa desde sua fundação, a Casa de Al Thani. Em 1871, essa importante tribo árabe recebeu do Império Otomano a suserania do território que hoje forma o país. Após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), com a queda do império, o emirado foi colocado sob um protetorado britânico que durou até 1971, quando o país finalmente obteve independência via plebiscito. Seguiram-se duas décadas de forte instabilidade política nas quais dois Emires foram depostos por golpes palacianos que terminaram em 1995 com a ascensão de Hamad Al Thani ao poder, o qual foi sucedido por seu filho, Tamim Al Thani, em 2015. Como veremos, esses dois líderes foram fundamentais para a ascensão internacional do emirado. 

Politicamente, o Catar permanece uma monarquia absolutista islâmica na qual todo o poder se concentra nas mãos do Emir e que tem na lei da sharia a base de sua constituição. Contudo, apesar de constantes críticas de observadores internacionais acerca das restrições às liberdades civis, aos direitos das mulheres e o uso de punição corporal, o país desfruta de uma tranquila estabilidade politica, fruto, em grande parte, de seu altíssimo nível de renda: uma petromonarquia que tem nas jazidas de hidrocarbonetos sua principal fonte de renda.

O Catar proporciona aos seus cidadãos a sexta maior renda de PIB per capita do mundo ($68,794 dólares por pessoa), o que ajuda a explicar a estabilidade do regime. É importante lembrar que, dos 2,7 milhões de habitantes, apenas 310 mil são cidadãos. O restante da população (e quase 95% da força de trabalho) é formado por trabalhadores estrangeiros contratados no sudeste asiático (Índia, Bangladesh, Filipinas, etc) pelo controverso sistema kafala, no qual o empregado permanece sob a tutela jurídica de seu patrão. 

Os Fundamentos do Poder Catari

Resta saber quais os mecanismos de poder que permitiram ao Catar se colocar como uma potência regional. Quatro deles podem se enumerados:

O primeiro, e mais importante, fator é o amplo potencial energético do país, que constitui sua principal fonte de riqueza e influência. Assim como as demais petromonarquias do golfo, o Catar tem na exportação de hidrocarbonetos a pedra-angular de sua economia. Diferente deles, que focam principalmente em petróleo, a economia catari vem se especializando cada vez mais na produção de gás natural liquefeito (GNL), uma modalidade de exportação de gás na qual o produto é condensado em líquido para poder ser transportado por navio e depois "re-vaporizado" no país de destino; tornando assim desnecessária a construção de gasodutos. Desde 2016, o país vem dominando esse mercado, se mantendo no topo dos exportadores, com um total de vendas 107 bilhões de metros cúbicos em 2019, em sua imensa maioria, para mercados da Ásia e da Europa. Considerando que a demanda por GNL está prevista para dobrar até 2040, o Catar parece estar na vanguarda de um cada vez mais lucrativo mercado.    

O segundo, de certa forma uma consequência do primeiro, é a capacidade catari de instrumentalizar os lucros provenientes de suas exportações de gás para comprar influência em âmbito global. O Catar não apenas é o principal fornecedor de doações humanitárias no Oriente Médio como também investe pesadamente em instituições estratégicas no Ocidente, como universidades, escolas, museus, jornais, empresas de mídia e companhias privadas.

Os EUA oferecem um bom estudo de caso sobre as estratégias de lobby de Doha: além de mais de $3 bilhões de dólares investidos em empresas americanas em 2019, o emirado também gastou uma quantia de mais de $16 milhões em 2017 na forma de lobby para congressistas norte-americanos. Entre 2009 e 2017, mais de $30 milhões foram gastos em doações para escolas e universidades dos EUA. Essa política financeira generosa, amplamente realizada em outros países ocidentais, como Alemanha e Inglaterra, ajuda a explicar a boa vontade dos governos e da opinião pública ocidentais em relação a um país que mantém fortes laços com o Irã e que apoia grupos declaradamente fundamentalistas, como a Irmandade Muçulmana.   

O terceiro pilar da estratégia de projeção internacional catari é o uso intensivo de soft power em relação aos esportes, à cultura, ciência e educação. Por meio de seu fundo soberano, a Autoridade de Investimentos do Catar vem adquirindo ações de marcas grandes e famosas, como Porsche, Louis Vuitton, Miramax, Hulu, Carlton Hotels, Credit Suisse e Barclay. No campo da moda e da arte, os catari vem promovendo eventos como o Fashion Trust Arabia (FTA), que atrai celebridades do mundo todo, adquirindo um grande número de obras de arte por meio da empresa Qatar Museums.

Na capital, Doha, recentemente foi inaugurada a Education City, uma instituição de pesquisa que coopta prestigiosas universidades e cientistas do mundo todo, e realiza uma iniciativa de influência digital que ambiciona transformar o país no principal hub de tendências do Oriente Médio. Destaque especial deve ser dado ao futebol: nos últimos 10 anos, o país comprou diversos clubes famosos, incluindo o Paris Saint-Germain, financiou de forma muito generosa outros, como o Bayern de Munique, e investiu pesadamente em estádios ao redor do mundo. A vitória na competição para sediar a Copa do Mundo de 2022 parece representar a apoteose do emirado no campo esportivo.     

E por fim, mas não menos importante, podemos referenciar o poder informacional e midiática do Catar, materializado na forma de sua gigantesca e icônica empresa de notícias, a Al Jazeera. Criada em 1996 por um decreto do Emir, o que a princípio era um pequeno canal local de notícias evoluiu para um conglomerado midiático estatal com alcance de mais de 300 milhões de domicílios em mais de 100 países. Por muitas vezes criticada por transmitir uma versão dos fatos favorável a do regime carati e manter um viés pró-islâmica e pró-sunita em suas reportagens regionais, a Al Jazeera mesmo assim conseguiu expandir além do Oriente Médio e desenvolver um nicho próspero no ocidente, o que se deve em grande parte a sua capacidade de veicular seu material de modo muito sutil, evitando conteúdo deliberadamente religioso ou escrachadamente pró-regime. 

Um exemplo da capacidade do Catar em utilizar esses fatores para manipular de forma drástica a conjuntura global a seu favor nos é dado pela Primavera Arabe, em 2011. Quando os primeiros protestos contra os governos da Tunísia, do Egito e da Síria eclodiram, a Al-Jazeera, em conformidade com a posição do regime, que era favorável as revoltas, foi instrumental em realizar a cobertura dos mesmos e assim contribuir para que disseminassem. Quando os protestos da Síria e da Líbia evoluíram para um levante contra os regimes, foi no Catar que os rebeldes encontraram seu principal beneficiário financeiro. Estima-se que nos 3 primeiros meses de revolta na Síria, Doha tenha enviado cerca de $3 bilhões de dólares aos revoltosos. Embora o Catar não tenha sido o causador das revoltas, sua capacidade de influenciá-las a seu favor graças a seu dinheiro e sua mídia são fatores a serem levados em conta como importantes armas diplomáticas no cenário internacional.

A ascensão como resposta ao ambiente de Incerteza Regional

Nenhum desses reservatórios de poder foi um subproduto da sorte nem um resultado de considerações aleatórias. Ao contrário, eles são o resultado de uma bem pensada estratégia de longo prazo concebida a mais de duas décadas e que vem sendo sistematicamente implementada desde então. Podemos traçar o embrião de todas essas iniciativas à ascensão de Hamad Al Thani ao poder em 1995. Antes de sua chegada ao trono, o Catar, assim como as demais petromonarquias, gravitava na órbita política e diplomática da Arábia Saudita, que historicamente sempre fora reconhecida como a líder da região, mais tarde corporificada sob a forma do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG). A tomada de uma política externa mais ativa, bem como o desenvolvimento de mecanismos de poder a partir dos pontos fortes do país, seu gás e o dinheiro proveniente dele, podem ser entendidos como uma tentativa de se desvincular da dependência considerada excessiva de Riyadh e tomar os rumos de seu próprio destino como um ator independente no cenário global. 

Esse rumo soberanista da política externa catari não foi bem recebido pelos sauditas e seus demais parceiros na CCG. Entre 2002 e 2008, as relações entre Doha e seus vizinhos permaneceram tensas e estagnadas, devido a uma série de decisões diplomáticas tomadas em contrariedade a linha oficial do bloco, como as críticas à postura saudita no Afeganistão e a decisão de permitir que tropas norte-americanas usassem o país como base para a invasão do Iraque, algo que os demais membros do CCG não autorizaram em seus territórios. Foi só em 2008, frente ao fracasso da pressão diplomáticas, que as relações foram normalizadas.        

Contudo, a situação não tardou a desandar novamente. Com a eclosão da Primavera Árabe em 2011, o Catar passou a financiar vários movimentos de protesto contra regimes locais, o que acendeu a luz vermelha em diversas nações da região, muitas delas perturbadas por esses mesmos protestos. O ponto de ebulição parece ter sido o apoio declarado do Catar para com a Irmandade Muçulmana, associação internacional islâmica com presença em vários países e por muitos deles considerada como organização terrorista.

O breve regime da Irmandade que se estabeleceu no Egito entre 2012 e 2013, após a queda do ditador militar Hosni Mubarak, teve apoio entusiasmado de Doha, o que serviu para envenenar as relações do país não apenas com os militares egípcios que recuperaram o poder quanto com as petromonarquias do CCG, tradicionais aliadas do regime militar do Cairo. O resultado foi uma grave crise diplomática em 2014 nas quais as relações entre o Catar e seus vizinhos chegaram a beira da ruptura. Foi necessário novamente um esforço conciliatório para apaziguar os ânimos e, num gesto de conciliação, Doha aceitou enviar tropas para a intervenção da coligação chefiada por Riyadh no Iêmen. 

A ruptura definitiva veio em 2017, desta vez tendo como pomo da discórdia a relação entre o Catar e o Irã, o arqui-inimigo xiita das monarquias sunitas do golfo. A relutância de Doha em cortar seus laços com Teerã, os quais foram sempre cultivados como parte da estratégia pragmática do país para se manter independente diplomaticamente, serviu como o estopim de uma grave crise na qual Arábia Saudita, Emirados Árabes, Bahrein e Egito emitiram um ultimato no qual impunham uma série de demandas que, se aceitas, teriam posto fim à soberania diplomática catari. A não aceitação dessas demandas levou a ruptura definitiva da relação com esses Estados e marcou o início de um bloqueio político, econômico e diplomático que dura até hoje. 

Se o propósito dessa manobra era colocar pressão diplomática para forçar o Catar a reentrar a órbita saudita, ele falhou miseravelmente, em grande parte graças a grande margem de manobra diplomática que o país obteve após décadas de Política Externa Independente. As boas relações com o ocidente, somadas a importância dos investimentos e do auxílio humanitário para a região evitaram uma contaminação da crise em outros países. Mesmo outras nações islâmicas que tomaram o partido de Riyadh, como a Jordânia e o Senegal logo buscaram a reconciliação ao perceberam o impacto econômico de uma ruptura total. A ampla teia de relações que Doha constituiu ao longo do tempo aliviou o impacto do bloqueio e garantiu um reordenamento mais suave da economia do país. Em termos de defesa, o colapso da cooperação militar com o golfo foi rapidamente preenchido por meio de uma aliança estratégica com a Turquia, a qual foi selada com a instalação de 5 mil soldados turcos em uma base no país. Desde então, o eixo Doha-Ancara vem evoluindo como um terceiro polo de poder no Oriente Médio, em contrapartida tanto ao bloco sunita chefiado por Riyadh quanto ao bloco xiita sob a liderança de Tehran.   

Olhando em retrospectiva o esforço e, até agora, o sucesso do Catar em se projetar como uma potência regional, dotada de significativa influência em âmbito mundial e capaz de manter uma política externa independente frente a grandes adversidades, talvez a principal lição a ser tirada é como um bom planejamento, o uso inteligente das vantagens comparativas e uma alta dose de iniciativa podem ser recursos tão valiosos quanto soldados, populações e dinheiro.       

Referência bibliográfica:

AL-HORR, Abdulaziz. Rethinking Soft Power in Post-Blockade Times: Case of Qatar. 2019.

ANTWI-BOATENG, Osman. The Rise of Qatar as a Soft Power and the Challenges. 2013.

CHERKAOUI, Tarek. Qatar’s Public Diplomacy, International Broadcasting and the Gulf Crisis. 2019.

FELSCH, Maximillian. Qatar’s Rising International Influence: A Case of Soft Power. 2016.

FROMHERZ, Allen James. Qatar: A Modern History. 2012.

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