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A Independência da Escócia à Luz do Pensamento Liberal

Referendo sobre a independência da Escócia em 2014 - Foto: Repodução

A União Europeia é, talvez, uns dos principais atores internacionais no mundo contemporâneo, cujas decisões acabam por afetar direta ou indiretamente outras nações ao redor do globo em questões variadas, que podem ir desde o valor do câmbio monetário até a política externa de aproximação e cooperação com essa instituição de tamanho prestígio. Todavia, nos últimos quatro anos o mundo assistiu com demasiada surpresa e apreensão para um evento bastante singular ocorrido na Europa, a decisão via referendo popular por parte dos britânicos de deixar formalmente seu status de Estado-Membro da União Europeia.

Em 23 de Junho de 2016, os eleitores do Reino Unido votaram de forma majoritária um referendo proposto pelo então primeiro-ministro à época, David Cameron, em que declararam a vontade por parte destes de querer deixar o bloco após 43 anos de união e cooperação. O projeto recebeu o nome de Brexit, uma junção das palavras Britain e Exit na língua inglesa.

O resultado inesperado em favor da saída teve imediato impacto na política doméstica de Londres: o primeiro-ministro britânico renunciou ao cargo; o parlamentar Nigel Farage fora expulso do partido UKIP; a oposição precisou eleger um novo líder de bancada; e a Libra esterlina atingiu seu maior valor já registrado em décadas (Cardoso, 2016).

Contudo, a saída do RU da UE, para além de questões domésticas, acaba por influenciar uma série de outras questões internas dentro do próprio reino de Sua Majestade e que são bastante pertinentes a todo um conjunto europeu; entre estas, um tópico que vem ganhando recente notoriedade é a questão da possível emancipação da Escócia como um ator independente do Reino Unido e posteriormente talvez até um novíssimo membro da União Europeia.

No dia 31 de janeiro de 2020, a primeira-ministra do governo da Escócia, Nicola Sturgeon, publicou em uma rede social o seguinte comentário “A Escócia vai retornar para o coração da Europa como um país independente” (Sturgeon, 2020). Tal comentário teve fortíssima repercussão no Reino Unido e muito se especulou sobre a plausibilidade da questão, afinal, seria possível a Escócia torna-se independente do Reino Unido, após três séculos de união, e talvez tornar-se um novo membro da UE no futuro?

Uma indagação como esta ao mesmo tempo em que faz emergir uma série de outras dúvidas acerca da problemática, também excita certo desejo por um melhor entendimento da questão. Muitos são os caminhos de análise que se pode apanhar a fim de querer conjecturar hipóteses ou discorrer pesquisas relativas ao tema; neste sentido, este trabalho tem como indagação de partida a seguinte premissa: Em que medida uma possível independência da Escócia, bem como uma adesão desta a UE, poderia ser lida sob uma perspectiva liberal das relações internacionais?

No intuito de responder a esta pergunta de partida, o presente trabalho possui como objetivo geral desenvolver uma análise macro acerca da problemática escocesa, de forma a apresentar o enredo histórico da questão em uma perspectiva mais generalista fazendo uso de registros históricos e periódicos recentes, até chegar ao objetivo específico quando se afunilará o debate no devido enquadramento teórico escolhido.

Sendo assim, este projeto tem início com o desenvolvimento do enquadramento teórico selecionado para a problemática vigente, a perspectiva liberal nas relações internacionais. Posteriormente, tendo desenvolvido o respectivo enquadramento teórico, será feita uma breve adução acerca da Escócia e sua história. Juntamente a esse resgate histórico da Escócia, serão igualmente elucidados alguns dos argumentos existentes hoje em favor de uma possível independência, tais como: Brexit, energia, desenvolvimento regional e ensino.

Por fim, após terem sido expostas e desenvolvidas todas essas questões comentadas a priori, far-se-á uma leitura crítica sobre uma possível independência da Escócia no longo prazo. Neste sentido, este trabalho desenvolverá uma análise mais voltada à perspectiva liberal, com foco nas vertentes de caráter econômico e de interdependência.

O Liberalismo nas Relações Internacionais

O pensamento liberal está entre as escolas de pensamento mais antigas da era moderna, sendo junto de seu antagônico, o realismo clássico, talvez uma das correntes teóricas mais antigas para a compreensão do mundo e das relações internacionais.

Ao escavarmos a doutrina até suas raízes iluministas tão influentes no século XVIII percebe-se que o processo de modernização, que o mundo vivenciou com a primeira Revolução Industrial, na qual foram desenvolvidas novas tecnologias e ferramentas que contribuíram para a formação do mundo como conhecemos hoje, e a revolução científica do pensamento, na qual a crença de que os homens poderiam ser governados pela razão teve grande impacto para a ascensão do liberalismo como visão de mundo.

De uma forma bastante sintetizada, o liberalismo tem como sua base uma visão mais otimista acerca do mundo e da natureza humana, partindo do pressuposto de que os homens, em vista do uso da razão e do conhecimento cientifico, estariam mais dispostos à cooperação e ao mútuo entendimento a fim de atingir interesses e objetivos comuns. Logo, percebe-se que em contraposição a abstração realista presente nas RI, que nos traz uma visão mais pessimista da natureza humana focando seus esforços e atenção no Estado, o liberalismo nos apresenta uma perspectiva oposta em que o valor maior não está no Estado, mas sim no indivíduo. Para eles será somente por meio da proteção à autonomia do indivíduo e o incentivo desta ao máximo que a sociedade, como um todo, terá chances de progredir de maneira bem-ordenada (Nogueira & Messari, 2005, p.59).

Tal visão ganhou certa notoriedade com a chegada da industrialização e da ascensão da economia de mercado, em que se teve fim as antigas práticas mercantilistas e novas ideias como: livre comércio, maximização de ganhos e propriedade privada começaram a ganhar maior adesão, especialmente devido a contribuições de intelectuais como o pensador liberal Adam Smith – que curiosamente era escocês.

No entanto, enganam-se aqueles que acreditam que os pensadores liberais em vista de suas abstrações possam ser taxados de ingênuos, pois, embora acreditem que os indivíduos possam sim fazer uso da racionalidade e ter esta como norte para suas decisões, estes reconhecem que ao mesmo tempo em que a humanidade é composta por seres racionais esta também é dotada de egoísmo e ambição, o que contribui, de fato, para a construção de realidades competitivas e desiguais. Todavia, estes acreditam que para além da permissividade e do egoísmo presente como parte indivisível da moral e natureza humana, os interesses comuns acabam por se sobressair a tudo isso, o que levaria os indivíduos a se engajarem em ações sociais cooperativas e colaborativas, tanto a nível nacional como internacional (Jackson e Sorensen, 2018, p.151).

A modernização, cooperação, emergência do conhecimento cientifico, bem como valores democráticos comuns, seriam no liberalismo o combustível essencial para o progresso; sendo hoje esta perspectiva debatida com certo cuidado por alguns teóricos que advertem que alguns liberais confiam demasiado na “possibilidade de progresso cumulativo” (Keohane, 1989, p.174). Entretanto, todos os adeptos desta escola concordam que uma das razões pela qual estes fatores elucidados serviriam como alavancas para o êxito das nações seria em decorrência da interdependência gerada no longo prazo, afinal, quanto mais indivíduos e Estados trabalhando e cooperando uns com os outros, menores seriam as chances de conflito violento entre estes, correto? Essa premissa é fundamental e nos conduz para uma vertente mais específica do pensamento liberal como pensamento econômico e que é bastante aplicada no campo das relações internacionais, a interdependência entre nações.

Liberalismo de Interdependência

O termo interdependência pode ser traduzido como um estado de dependência entre uma coisa e outra, ou seja, uma dependência mútua entre pessoas ou coisas. Todavia, nas relações internacionais este termo é sinônimo de algo um pouco mais complexo, pois traz consigo uma série de variáveis que influenciam direta ou indiretamente o processo de dependência mútua entre Estados, que por sua vez podem ser relações temporárias ou definitivas entre os atores envolvidos.

Ao direcionarmos nosso olhar analítico ao passado, torna-se possível dizer que o processo de interdependência entre pessoas e Estados teve início com as chamadas Grandes Navegações, a descoberta e exploração de novos territórios, bem como a busca por especiarias que eram muito demandadas na época pelo comércio no velho continente. Segundo a professora Liliana Reis (201,p.67) “A liberalização do comércio foi a primeira manifestação do desenvolvimento do liberalismo internacional, dado a observância que o mesmo poderia contribuir para a paz entre os povos”. Contudo, embora seja plausível afirmar que as relações de dependência mútua começaram no decorrer das explorações, estas claramente se intensificaram no desenrolar do século XX.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o mundo estava absolutamente devastado, alguns países mais e outros menos, mas todos estavam colhendo as mazelas deixadas pelo conflito e tentando se curar das feridas que ficariam eternizadas na memória coletiva. Porém, fora a partir da década de 1950 que, em virtude das cicatrizes e necessidades deixadas pelo conflito, as relações de interdependência entre nações começaram a se intensificar juntamente com a industrialização dos mesmos e a criação de instituições internacionais multilaterais, como: Organização das Nações Unidas (ONU), Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA).

Neste sentido, pode-se sugerir tal momento histórico como um forte exemplo de prova empírica do liberalismo, afinal, tendo em vista que foi um conflito que durou cerca de seis anos e levou consigo 3% da população mundial, é racional que os Estados e os indivíduos busquem, por via da racionalidade e atividade política conjunta, caminhos que os levarão a um estado de bem-comum em que todos possam maximizar e usufruir dos ganhos, quase como em um jogo de soma nula.

Posteriormente, no transcorrer dos anos em que se seguiu a Guerra Fria, vimos emergir diversos exemplos de união e integração político-econômica entre países, além de diversas teses acerca do mesmo no intuito de melhor compreender tal processo. Uma dessas teses fora desenvolvida no final da década de 1970 por Robert Keohane e Joseph Nye (1977), em que se cunhou o conceito da interdependência complexa.

Para ambos os autores, as relações de interdependência entre países no pós-guerra era algo totalmente diferente do que as relações de dependência mútua que se tinha na antiguidade, ou até mesmo durante os séculos XVIII e XIX; sendo tais relações hoje não mais são conduzidas unicamente por chefes de Estado, aspecto este que dava as discussões e as possibilidades de integração uma conotação quase “oligárquica” em que as decisões estariam inteiramente sujeitas nas mãos de poucos ou inacessíveis.

Neste sentido, hoje você tem numerosos grupos de atores, organizações e indivíduos menores que se relacionam a nível transnacional com muito mais frequência e velocidade do que no passado, o que evidentemente afeta o chamado Balanço de Poder fazendo com que o foco deixe de estar unicamente na cúpula dos representantes legais do Estado e dilua-se por entre as múltiplas camadas da sociedade de maneira gradual conduzindo-a rumo ao progresso. Nas palavras deles, “Questões (e realidades) diferentes geram coalizões diferentes, ambas dentro de governos e entre governos, e envolvem diversos graus de conflito. A política transcende fronteiras” (Keohane & Nye, 1977, p.25).

Outro aspecto interessante do liberalismo da interdependência é que, goste-se ou não, com o mundo mais complexo e as relações entre Estados mais sujeitas a dependências mútuas, isso acaba por produzir, na maioria dos casos ao menos, uma relação mais amigável e cooperativa entre seus respectivos lideres, ponto este bastante interessante para compreender melhor como a busca por interesses comuns pode levar indivíduos diferentes a sentar-se na mesma mesa para discutir pautas de interesse comum.

Como já elucidamos hoje, as relações não se dão mais unicamente entre Estados; como argumentavam os realistas clássicos, o sucesso ou o insucesso das relações transnacionais não dependem mais unicamente dos Estados. Todavia, estes ainda são, de fato, as peças mais valiosas neste xadrez das relações internacionais contemporâneas e, para atingir seus objetivos, precisam encontrar outros meios que melhor acautelam os resultados almejados.

Em suma, o liberalismo da interdependência pode ser sintetizado nos seguintes pontos: com o advento da modernização, industrialização e a economia de livre mercado, as relações entre Estados tornam-se mais delicadas sujeitas à interdependência entre estes. Devido à globalização e a chamada interdependência complexa, atores e organizações transnacionais ganharam maior relevância no cenário mundial não somente como possíveis agentes moderadores, mas por gozarem de poder e autonomia juntamente com os Estados.

A ideia de conflito torna-se uma alternativa menos convencional, embora saibamos que por conta de questões históricas, culturais, religiosas, étnicas e outras, Estados ou agentes regionais menores podem continuar a entrar em guerra, ainda que por via de digressões em menor escala. O estado de bem-estar e a conservação de boas relações se apresentam como a pauta mais pertinente entre as nações e, ainda que seus líderes tenham desavenças, as relações políticas profissionais ganham maior notoriedade e assim as relações tornam-se mais cooperativas em vista do intuito de todos atingirem e satisfazem objetivos e interesses comuns.

Um Olhar para a Escócia e sua História

A Escócia é um país bastante conhecido no mundo ocidental e por numerosas razões, seja por suas belas paisagens; pela sua cultura enriquecedora e cordialidade de seus cidadãos, ou até mesmo por seu produto mais famoso, o whisky. Nesta segunda parte, vamos abordar um pouco acerca da história local do país, fazendo uma breve adução ao tema a fim de melhor familiarizar o leitor com a história deste, bem como salientando alguns pontos específicos que serão pertinentes para a discussão e a analise a posteriori.

O ano de 1707 marca um importante momento na história, tanto para os escoceses como para os ingleses, pois fora naquele ano que a atual conjuntura do Reino Unido da Grã-Bretanha fora formalmente constituída por meio da chamada União Anglo-Escocesa. Todavia, as relações entre Escócia e Inglaterra nunca foram totalmente “amigáveis”, basta nos lembrarmos de episódios anteriores, como a guerra de independência em que, após a morte do rei Alexandre III da Escócia, e de todos os herdeiros plausíveis a sucessão, o país enfrentou um período de profunda instabilidade do qual a Inglaterra decidiu se aproveitar. Quando John Balliol fora finalmente escolhido para ascender ao trono, o rei da Inglaterra, Edward I, decidiu interferir nos assuntos escoceses, o que conduziria a Primeira Guerra de Independência Escocesa (1296 – 1304) em que surgiram figuras lendárias como William Wallace e Robert Bruce, este último vindo a ser o futuro rei da Escócia após o conflito (Lichon, 2018, p.3).

Podemos dizer em certa medida que o nacionalismo escocês começara já desde o período da guerra da independência, obviamente que aquilo que hoje conhecemos como Partido Nacionalista Escocês (SNP) levaria ainda décadas para surgir como um ator ativo no debate político britânico, contudo, pode-se afirmar que a essência do sentimento nacionalista, compartilhada com ideais de independência e valores patrióticos comuns, estes diluídos na sociedade escocesa, já estava a se formar desde o século XIV. Neste sentido, daremos um salto no tempo rumo ao século XVIII em que temos a tão conhecida União Anglo-Escocesa e a formação do Reino Unido.

Dizem que a história não se repete, contudo, tal como um poema cujos versos trazem rimas que se conectam ao longo de seu desenrolar, esta também pode rimar com episódios retroativos. Porque estou a dizer isso? Ora, pois quando a Escócia decidiu abrir mão de sua soberania e se juntar a Inglaterra, havia uma atmosfera de otimismo e apoio popular bastante significativa em prol da unificação. Embora a união entre Inglaterra e Escócia estivesse “mais próxima de um casamento celebrado sob a mira de uma arma que da consumação de uma longa relação amorosa” (Speck, 2013, p.35), o apoio entusiasmado de certas camadas da sociedade era cristalino. Muitos imaginavam que esse ato seria o grande milagre político-econômico da época, mas mal se sabia que tal sentimento ressurgiria novamente em 1973, quando o Reino Unido após muito sangue, trabalho, lágrimas e suor, oficializaria a sua entrada na Comunidade Econômica Europeia (CEE).

Mesmo tendo-se formalizado a união entre os dois Estados no século XVIII com a proposta de fortalecimento político-econômico de ambos, a relação entre Escócia e Inglaterra continuava a ser vista com certa preocupação, tal como se esta fosse uma corda frágil que pudesse começar a dar sinais de desgaste sem demora.

Os ingleses conseguiram persuadir o parlamento de Edimburgo em favor da União, concedendo-lhes inclusive condições vantajosas no mercado local bem como proteção a algumas de suas indústrias nacionais, como as de carvão e sal (Speck, 2013, p.37). Contudo oportunidades iguais não significava necessariamente tratamento igual, um exemplo disso é que os ingleses não enxergavam os escoceses como um povo próprio, por vezes referindo-se a eles como a “Britânia do Norte”. Outro exemplo pode ser encontrado na representação política escocesa, a Escócia possuía 45 assentos em Westminster. Todavia, a representação política à época, tal como ainda hoje, não era feita com base no censo da população, que só veio a ocorrer pela primeira vez em 1801, pois nesse sentido, Edimburgo deveria possuir pelo menos 100 cadeiras na Câmara dos Comuns contra 513 da Inglaterra e País de Gales (Speck, 2013, p.38).

Tanto estes aspectos mais sociais e políticos, como questões históricas já salientadas a priori, contribuíram para o fortalecimento do sentimento nacionalista escocês e o papel que este viria a desempenhar na política doméstica do país futuramente. Conforme nos conta Lichon (2018, p.5),

“Em 1885, Westminster percebeu que governar a Escócia da mesma maneira que governar a Inglaterra não era eficiente, e o Escritório Escocês foi criado para lidar com assuntos puramente escoceses. O próximo estágio do nacionalismo político apareceu em 1920, quando foi formada a Liga Nacional Escocesa, que foi o primeiro sinal de um partido político dedicado aos interesses nacionalistas escoceses. Logo após, em 1928, houve o Partido Nacional da Escócia, e 1934 viu a criação do Partido Nacional Escocês com a combinação do Partido Escocês e do Partido Nacional da Escócia. Assim, o nacionalismo e a independência escoceses começaram a deixar sua marca na política do Reino Unido”

Todavia, o sonho de independência não viria tão cedo para os escoceses, pois no decorrer do século XX as relações políticas entre Edimburgo e Londres foram marcadas por muita tensão, divergência e impasses no parlamento. Somente em 1995, quando a pauta retornou a mesa de discussão, que a possibilidade de devolução de poder a Escócia começou a mostrar melhores sinais de reanimação. Àquela altura, após múltiplas tentativas, a maioria dos partidos do RU, salvo somente os conservadores, apoiavam à medida que estabeleceu com sucesso que seria feito um referendo popular, este vindo a ocorrer apenas em 1997. O referendo passou, a Lei da Escócia fora criada e, ainda que seu território continuasse britânico, Edimburgo finalmente teria seu próprio parlamento tal como poder de autonomia dentro do RU (Lichon, 2018, p.10). Este momento fora considerado um marco especial para os escoceses e inclusive serviria de combustível para outra tentativa de referendo que ocorreria em 2014.

O referendo de 2014 pode ser visto na história escocesa como um momento demasiado importante para o povo e sua política doméstica, contudo, eis que hoje este é visto carregando certa carga de ironia também. Em 2011, após um longo período sem possuir maioria no próprio governo, o principal partido escocês regressa ao cerne do seu parlamento em Edimburgo. O SNP sempre fora, e continua a ser, visto por acadêmicos escoceses como o partido independentista da Escócia, como aqueles que querem a independência a qualquer custo, contudo, ao mesmo tempo em que existe sim uma mobilização social forte no país em prol da independência e muitos são até simpáticos a ela, a estratégia do SNP nunca fora vista como algo solido, não trazendo muita confiança nem em si mesma, o que dirá no objetivo a que tanto aspiravam. No entanto, em 2014 este cenário sofreu uma leve mudança quando o chamado argumento da “aspiração nórdica” passou a ser utilizado bastante pelos separatistas escoceses.

A Escócia hoje, tal como em 2014, é um país que goza de um status de desenvolvimento humano muito semelhante a países nórdicos, tanto que em cálculos feitos pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) naquele ano, o país, se independente fosse, ocuparia o 14° lugar entre os países mais desenvolvidos em renda per capita. Junto a isso se somam outras questões de caráter técnico mais variado, como a exploração de seus recursos, petróleo e gás natural, e o estado de bem-estar social. De fato, a Escócia possui uma forte exploração desses recursos que corresponde a grande porcentagem de seu produto interno bruto (PIB). No entanto, especialistas escoceses se dividem quanto à durabilidade destes e de sua exploração. O mesmo se argumentou durante a campanha quanto ao estado de saúde, pois sendo parte do Reino Unido, a Escócia usufrui de um sistema de saúde público e de qualidade concedido pela União, bem como a estabilidade econômica ocasionada pela libra esterlina (Uchoa, 2014). 

Estas e mais questões dividiram muito o povo escocês em 2014, alguns acreditavam que de início a separação resultaria em uma forte recessão econômica para o Estado, mas que no decorrer dos anos o país se recuperaria quase que naturalmente. No entanto, mesmo tendo uma postura firme, os separatistas foram vencidos pelas campanhas alternativas que aconselhavam ao povo a votar pela permanência no RU, afinal, ainda que de fato a Escócia hoje goze de certo brilho e riqueza, muito disto deve-se a junção desta com o Reino Unido e com a União Europeia, cujas medidas evidentemente beneficiam a Escócia e sua economia. Foi caminhando por esta linha de raciocínio que o povo fora aos postos de votação em setembro daquele ano e, por uma margem de 55% dos votos rejeitando a proposta contra 45% votando a favor (BBC News, 2014), a Escócia permaneceu como parte do território do Reino Unido. Cinco anos depois, este último estaria fora da União Europeia.

Os motivos para uma Independência

Tal como se percebeu na segunda parte deste trabalho, as relações entre Escócia e Inglaterra nunca foram das mais pacificas e isso não é algo proveniente de um evento recente e sim de algo que remete a séculos de digressões e conflitos envolvendo interesses de ambos. Contudo, embora esse casamento entre Escócia e Inglaterra possa ser visto como turbulento, ele sempre fora na medida do possível estável, ou em outras palavras, buscou-se sempre resolver as questões por meio do aparato democrático e da retórica diplomática. No entanto, eis que em 2016 os escoceses sentiram-se traídos e negligenciados pela União em decorrência do Brexit.

Ainda que o voto a favor da saída tenha sido majoritário no reino de Sua Majestade, este acabou por não representar a todos de maneira igual. De acordo com o mapa eleitoral projetado após o apuramento das urnas, os votos em favor da saída tiveram maior adesão na Inglaterra (53,4%) e no País de Gales (52,5%), enquanto que na Escócia (38.0%) e Irlanda do Norte (44.2%) a vontade popular optou por continuar dentro da UE. (BBC News, 2016).

Em vista do resultado inesperado a favor da proposta do Brexit, muito se discutiu dentro da Escócia sobre qual seria a posição do Partido Nacionalista Escocês (SNP), se este deixaria que seu Estado fosse simplesmente conduzido pela boa vontade dos ingleses, o que denotaria um comportamento lasso do partido frente à opinião pública, ou se estes tentariam emplacar uma nova tentativa de referendo tal como fizeram em 2014.

A questão certamente pegou os lideres escoceses de surpresa e contribuiu para reacender não somente a velha chama do separatismo romântico dos mesmos como a esperança destes de fazer parte da UE em outra medida, conforme nos conta Lichon (2018, p.26):

“Os líderes do SNP também viam a UE como uma maneira de promover a independência; se a Escócia fosse independente, teria mais influência no cenário mundial por meio da adesão à UE e também seria capaz de negociar políticas da UE que beneficiariam a Escócia sem a contribuição do Reino Unido”

Inicialmente, a ameaça de uma possível independência por parte da Escócia não era tão considerada pelos ingleses, todavia, fora com a dissolução do parlamento inglês e a convocação de novas eleições no ano passado que esta possibilidade passou a ganhar mais fôlego. No dia da eleição, o Partido Conservador do premier Boris Johnson fora o grande vencedor com 365 assentos garantidos na Câmara dos Comuns, contudo, o Partido Nacional Escocês também ressurgiu com uma vitória significativa ganhando 48 assentos e perdendo apenas 11, de acordo com a primeira-ministra Nicola Sturgeon (BBC News Brasil, 2019),

“Boris Johnson tem o mandato de tirar a Inglaterra da União Europeia, mas tem de aceitar que eu tenho o mandato de dar à Escócia a possibilidade de optar por um futuro alternativo (…) A Escócia enviou uma mensagem muito clara”.

Neste sentido, percebe-se que entre todas as motivações plausíveis para uma independência, a retirada da Grã-Bretanha da União Europeia é sem dúvida a tese de maior peso na discussão, contudo, existem outros motivos que se somam a esta tese e aumentam seu grosso impacto no discurso separatista, um deles, como talvez já se possa imaginar, é a questão energética e exploração de recursos naturais.

Quando pensamos na exploração de recursos naturais em pleno século XXI, logo nos vem à mente a exploração de petróleo e de outros combustíveis como o gás natural, e com a Escócia essa realidade não é diferente. Quando nos debruçamos sobre os números, a exploração de recursos energéticos no país surpreende bastante; entre 1991 e 1992 o Reino Unido lucrou cerca de 1,5 milhões de libras em receitas de petróleo, todavia, quando fazemos o balanço comparativo do mesmo cerca de vinte anos depois, esse número já salta para 27 milhões de libras. Para os escoceses entusiastas da independência, esses números trazem demasiado orgulho e autoconfiança, pois até hoje somente 40 mil barris de petróleo foram extraídos, o que estima um prolongamento da produção por mais 30 ou 40 anos (Diário de Noticias, 2014).

Tal como a exploração de recursos, outro ponto importante e favorável a separação seria o desenvolvimento regional que o país hoje possui com a ajuda da União Europeia, por meio de programas de desenvolvimento em larga escala como o European Regional Development Fund (ERDF) e o European Social Fund (ESF). Tais programas auxiliam muito a Escócia, bem como suas empresas locais, injetando dinheiro que é utilizado para criação de empregos, auxilio de start-ups ou apoio de projetos de pesquisa no país. Logo, a retirada do Reino Unido da UE poderia ocasionar uma perda grande de investimentos para a economia escocesa. Até o final de 2020, a estimativa é de que, das 8,3 bilhões de libras que o RU receberia, 758 milhões teriam como destino final a Escócia (People’s Vote, 2018, p.7).

Outro motivo bastante discutido é a pauta relativa à educação, bem como o apoio às pesquisas científicas. A União Europeia tem como um de seus princípios o investimento e o aprimoramento da educação, em virtude disso que foram criados programas como o chamado Horizon 2020, que é o maior programa de incentivo a pesquisa e inovação acadêmica (People’s Vote, 2018, p.8). Curiosamente, o Reino Unido fora o país membro mais beneficiado do programa, o que por consequência também alavancou a qualidade de ensino e pesquisa das universidades escocesas. Deste modo, a saída dos britânicos da União poderia representar futuramente uma queda brusca nestes investimentos bem como o chamado intercâmbio cultural em instituições de ensino e pesquisa. Atualmente, muitos estudantes, docentes e pesquisadores europeus realizam estudos em instituições e universidades que não necessariamente são do seu país de origem, o que permite um aprimoramento técnico do nível de pesquisa, bem como a troca de dados e conhecimentos.

A Independência que Bate à Porta

Conforme vimos no tópico anterior à pauta principal que norteia um possível cenário de independência, é categoricamente a questão relativa ao Brexit, embora existam outras variáveis de caráter econômico e social, mencionadas todas elas em alguma medida, que serão afetadas pela retirada britânica da União Europeia. Deste modo, como este fenômeno poderia ser entendido a luz do pensamento liberal?

De uma forma bem sucinta, este poderia ser visto dentro das perspectivas liberais que comentamos como um reflexo natural do jogo da oferta e demanda presente no livre mercado, afinal, enquanto que para o Reino Unido a oferta de parceria e cooperação junto ao bloco europeu não soa enriquecedora, para a Escócia esta não tem o mesmo peso e significado, por razões diversas que já salientamos. Neste sentido, quando o Partido Nacional Escocês (SNP) ameaça Westminster por meio da retórica política e dos resultados eleitorais, o que se tem é um Estado enviando uma mensagem nítida a outro. Assim como um indivíduo que busca no livre mercado as ofertas que lhe trarão melhores ganhos, a Escócia também esta disposta a fazer isso, quase que em um jogo de soma zero em que aquele que possuir a melhor estratégia adquire melhores ganhos.

Logo, podemos perceber que um processo de emancipação da Escócia, tendo em vista o contexto político-econômico da realidade na qual está imersa, não poderia se assemelhar a outros movimentos e digressões em prol da independência, como os movimentos independentistas na Catalunha ou até mesmo os protestos que ocorreram recentemente em Hong Kong.

De forma nenhuma a querer entrar no mérito de contestar a legitimidade destes protestos, estes e outros exemplos históricos não estão a acontecer em vista de uma questão econômica unicamente, mas sim em vista de pautas variadas que convergem entre si. Neste sentido, a hipótese de separação da Escócia não flerta com este particular, ficando por sua vez acometida ao aspecto propriamente liberal econômico e de cooperação internacional, aspecto este no qual é possível identificar no texto liberal diversas vozes que, ao mesmo tempo em que se complementam também digladiam entre si. Sendo assim, talvez a mais compatível para o caso seja a da interdependência.

Ao relembrarmos os pilares que sustentam o conceito de liberalismo da interdependência, torna-se possível perceber que para um pouco além do aspecto econômico, este é a principal engrenagem que move a ideia de independência.  Afinal, a UE sendo uma entidade importante e cujas decisões possuem reflexos para o restante dos atores imersos no tabuleiro das relações internacionais, torna esta um aliado sedutor a se ter do lado em uma possível ruptura de laços históricos. Logo, percebe-se o conceito de liberalismo da interdependência presente na pauta escocesa justamente aqui, pois uma possível adesão deste a UE não é sinônimo apenas de oportunidade, estabilidade e ganhos político-econômicos para um, mas também é para o outro a chance de ter mais um aliado cooperando consigo e aumentando sua capacidade de influência.

Como a Inglaterra muito provavelmente continuará a ser este velho navio que Deus na Mancha ancorou, uma potência de capacidade e influência regional emblemática, torna-se mais plausível uma relação de interdependência entre Escócia e UE. Cenário este que, se em breve chegar, garantiria maior autonomia, capacidade e influência à União Europeia como um ator global.

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