A violência contra jornalistas não é nenhum furo de reportagem: desde a sua presença em guerras e conflitos até ataques físicos e retóricos por parte das elites e da população, jornalistas exploram a lógica adversarial de pessoas e grupos poderosos e, por causa disso, muitas vezes ficam na linha de tiro. A exposição pública e o contato com ameaças diversas tornam a profissão cada vez mais arriscada, não só por causa do perigo que representa à vida humana, mas também por causa de valores imateriais: segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o assassinato de jornalistas e membros de meios de comunicação constitui a forma mais extrema de censura existente.
A ocorrência de crimes contra jornalistas, portanto, representa não só a violação da liberdade de pensamento e expressão da pessoa atingida, mas também prejudica a própria dimensão coletiva desse direito. Embora os riscos da profissão já sejam conhecidos há décadas, ainda assim, foi apenas após um ápice deste violência – o sequestro e assassinato da dupla de jornalistas franceses Ghislaine Dupont e Claude Verlon no Mali, em 02 de novembro de 2013 – que a Organização das Nações Unidas (ONU) foi compelida a adotar medidas sobre a temática. Em 2013, foi proclamado por meio de Resolução que este dia se converteria no “Dia Internacional pelo Fim da Impunidade para Crimes contra Jornalistas”, uma homenagem que também pretende repudiar quaisquer atos contra a profissão e incentivar os Estados-membros a adotarem ações similares. Neste artigo, trataremos um pouco da história deste dia e sua significatividade para o sistema internacional.
Jornalismo, violência e sociedade internacional
Há uma série de fatores que podem elevar as chances de violência contra jornalistas, desde o sistema político e social ao nível de profissionalização da mídia e a efetividade destes atos em moldar a opinião pública. A violência, de acordo com sua utilização, pode ser utilizada tanto para apagar como para questionar uma informação, o que torna o mensageiro, o jornalista, particularmente suscetível a atos de coerção e hostilidade (LE CAM, PEREIRA e RUELLAN, 2021). Em termos de poder, portanto, a natureza fundamental da profissão de servir como ponto de contato entre o povo e a sua liderança, além de sua influência na formação da opinião pública, representa uma constante vulnerabilidade.
O potencial do jornalismo como ferramenta de Estado já é amplamente conhecido – basta lembrar de como a mídia foi capaz de colocar a opinião pública contra os Estados Unidos frente à Guerra do Vietnã ou apoiá-los no anúncio da Guerra ao Terror. É interesse do Governo central, portanto, controlar as notícias que atingem seus cidadãos, o que pode ocorrer tanto através da censura, propinas, e formas diretas de violência (SAMPAIO-DIAS, 2019; WAISBORD, 2020). Jornalistas, neste sentido, têm a sua atividade controlada seja por delimitações de licenças de trabalho (como ocorre no Iêmen e no Zimbábue), por controle das redes sociais e notícias digitais (como é o caso na Rússia e na China), ou por meios informais de controle que envolvem violência direta (CURRAN, 2019).
No entanto, que a censura não vem apenas do Estado, mas pode também ser implementada por mercados, atores paraestatais, dentre os quais crime organizado e guerrilhas, e da própria população (WAISBORD, 2020). Os riscos da profissão, portanto, vêm de muitos lados: jornalistas se tornam vítimas de uma demonização populista, a exemplo dos ataques realizados por líderes como Donald Trump e Jair Bolsonaro; repórteres são assediados nas redes sociais com ataques extremamente pessoais que, para Waisbord (2020) constituem uma espécie de censura das massas (mob censorship); e a própria mídia como indústria se torna cada vez mais sensacionalista, o que traz um sofrimento subjetivo quando o jornalismo se torna não só um dos principais canais de exibição da violência, mas também passa a contribuir para o seu aumento (LE CAM, PEREIRA e RUELLAN, 2021).
Ainda assim, continua necessário que o jornalista tenha total liberdade para exercer críticas e questionamentos em relação ao governo e as políticas públicas vigentes (WAISBORD, 2020). Isto não escapa da atenção do público, dos governantes ou da academia: apenas nos últimos três anos, têm proliferado a literatura científica que aborda casos de violência e censura jornalística no México (GONZÁLES-QUIÑONES e MACHIN-MASTROMATTEO, 2019), Guiné-Bissau (SAMPAIO-DIAS, 2019), Estados Unidos (WAISBORD, 2020), Europa Central e Oriental (SCHIMPFÖSSL et al., 2020), e Paquistão (JAMIL, 2020). De fato, as instituições das Nações Unidas, além de outras organizações internacionais, já recomendaram países a adotarem mecanismos especializados de proteção de jornalistas em risco.
Esta pode ser uma faca de dois gumes, como defendem González-Quiñones e Machin-Mastromatteo (2019): Estados como o México possuem uma moral dupla quando assumem a responsabilidade de manter liberdade de expressão e proteger os jornalistas e, ao mesmo tempo, exercem mecanismos para reprimir a atividade que confronta as linhas dominantes de pensamento. Por isso, para prevenir a violência contra jornalistas e funcionários dos meios de comunicação, é indispensável que o ordenamento jurídico puna essas condutas de modo proporcional ao dano cometido. Em um sentido mais geral, o artigo 2 da Convenção Americana obriga os Estados a adotar as medidas legislativas ou de outro tipo que sejam necessárias para efetivar os direitos e as liberdades reconhecidas no tratado (CIDH, 2013).
Compreender a dimensão e a modalidade dos atos de violência contra jornalistas e funcionários dos meios de comunicação é uma condição fundamental para a implementação de políticas efetivas de prevenção, como, por exemplo, a elaboração de mapas de risco confiáveis (CIDH, 2013). Mas também é preciso olhar para o lado mais humano: “não se prega ética ao faminto”, é a discussão que se abre quando as elites utilizam a precarização da profissão para comprometer o jornalismo independente e criar um conflito de interesses entre a responsabilidade de prover a verdade e os interesses daqueles que pretendem controlar a agenda sócio-política (SAMPAIO-DIAS, 2019). O reconhecimento e ação sobre estes riscos é um passo fundamental para tornar o jornalismo mais seguro.
A proclamação do dia internacional pelo fim da impunidade para crimes contra jornalistas
Devido a todos estes fatores explorados, em 2010, com um pedido do Conselho Intergovernamental do Programa Internacional para o Desenvolvimento da Comunicação (IPDC), ocorreu a criação do Plano de Ação sobre a Segurança dos Jornalistas e a Questão da Impunidade da ONU. O plano propunha uma ajuda aos governos para elaboração de leis sobre segurança e liberdade de expressão, sensibilização pública, treinamento de segurança e segurança eletrônica, prestação de atendimento médico, mecanismos de respostas de emergência, zonas de conflito, descriminalização da difamação e remuneração de jornalistas. Por impunidade, neste sentido, entende-se o ato de não se levar à justa punição os autores de violações aos direitos humanos, perpetuando um ciclo de violência contra jornalistas e deve ser enfrentada.
A segurança dos jornalistas e a luta contra a impunidade de seus assassinos são essenciais para a preservação do direito fundamental à liberdade de expressão, assegurada pelo Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, um direito individual, pelo qual ninguém deve ser perder a vida, mas é também um direito coletivo, que empodera as populações por meio da facilitação da disseminação de informação, do diálogo, da participação e da democracia, o que, dessa forma, torna possível o desenvolvimento autônomo e sustentável. Dessa forma, o Plano de Ação ainda concluía que enquanto o problema da impunidade não se restringe à não investigação dos assassinatos de jornalistas e de trabalhadores da mídia, a redução da sua capacidade de expressão resulta em um impacto mais amplo na liberdade de imprensa.
Uma vez proclamado o Dia Internacional pelo fim da Impunidade para crimes contra jornalista, através da Resolução 68/163 de 18 de dezembro de 2013 – em honra a Claude Verlon e Ghislaine Dupont, que se encontravam no Mali para entrevistar um líder do movimento que defende a independência da região conhecida como Azawad e foram assassinados por isto – a data é comemorada pela primeira vez no ano seguinte, em 2014, como uma forma de chamar a atenção aos inúmeros crimes que a classe vinha sofrendo nos últimos anos.
Crimes contra jornalistas: uma preocupação atual
Durante a década passada, mais de 800 jornalistas foram assassinados em virtude de suas profissões. Apenas 10% destes crimes resultaram em condenações. Em 2018, em comemoração aos cinco anos da proclamação da data, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), lançou mundialmente a campanha #TruthNeverDies (a verdade nunca morre), objetivando a publicação de artigos que foram publicados por jornalistas que perderam suas vidas em razão da profissão, uma forma de prestar uma homenagem a eles. Em 2018 e 2019, cerca de 156 jornalistas foram mortos em todo o mundo, sendo o maior número de ataques advindos da região da América Latina e Caribe, em seguida encontra-se a região da Ásia e do Pacífico.
O Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa, que avalia a cada ano a situação da liberdade de imprensa em 180 países e territórios, mostra que o exercício do jornalismo está gravemente comprometido em 73 dos 180 países do Ranking elaborado pela organização Repórteres sem Fronteiras, e restringido em outros 59, num total de 73% dos países avaliados. Em 2021 o Brasil ficou em 111º lugar no ranking mundial, país entrou em uma zona vermelha do ranking, ou seja, para a organização, a situação da imprensa é precária.
No Brasil, durante os últimos anos, pelo menos 15 projetos de lei buscam proteger profissionais de imprensa de ataques e agressões. Entre eles, há propostas para considerar como hediondos crimes contra jornalistas, federalizar a investigação destes crimes, agravar penas de lesão corporal e homicídios e até mesmo tipificar como crime a hostilização a profissionais de imprensa, inclusive um deles tipifica como crime de abuso de autoridade condutas que impeçam ou dificultem o livre exercício do jornalismo.
Conclusões
O jornalismo é uma profissão de grande importância para a informação global e opinião pública ao mesmo tempo em que é uma carreira de grande periculosidade, censura e violência. Não obstante ao papel do próprio jornalismo na sensacionalização da violência, não se pode esquecer que o jornalista, como indivíduo, é um ser humano detentor de uma vida privada autônoma, liberdade de expressão e emoções. O primeiro ponto a definir é este: não obstante sua profissão, o jornalista detém o direito de viver decentemente como qualquer outra pessoa.
Ainda assim, esta questão é mais profunda: quando se leva em consideração os motivos por trás de crimes contra jornalistas – isto é, censura contra uma mensagem – é possível extrair que estes representam, de muitas formas, ações diretas contra a própria liberdade de expressão. Para parafrasear o famoso poema de Martin Niemoller: primeiro, vieram buscar os jornalistas, e eu não protestei, pois não era jornalista. O segundo ponto a afirmar, portanto, é que estes crimes representam apenas um sintoma de um problema muito mais amplo no âmbito do controle de informação.
Sim, estes fatores já são amplamente reconhecidos, pelo que a sociedade internacional já reconheceu a necessidade de tomar medidas paliativas contra as formas violêntas de censura, bem como os altos níveis de impunidade contra estes crimes. O que o leitor deve se perguntar agora, tomando como base o que foi discutido aqui, é isto: as medidas tomadas até agora foram suficientes? Não há mais que as instituições internacionais, governos e demais atores possam fazer para garantir a efetiva sanção contra este tipo de censura? O reconhecimento destas problemáticas é um primeiro passo inevitável na abertura de espaço para a discussão a nível internacional. O terceiro ponto, no entanto, é este: o reconhecimento não é suficiente. É preciso tomar medidas mais rápidas relativas à questão, e enquanto isso, pessoas morrem, a informação é censurada, e criminosos andam livres. Que não perdure a impunidade.
Referências Bibliográficas
CURRAN, J. Triple crisis of journalism. Journalism, v. 20, n. 1, pg. 190-193, 2019.
JAMIL, S. Red lines of journalism: digital surveillance, safety risks and journalists’ self-censorship in Pakistan. In: LARSE, A. G., FADNES, I., e KRAVEL, R. (org.). Journalist Safety and Self-Censorship. Routledge, 2020.
GONZÁLES-QUIÑONES, F. e MACHIN-MASTROMATTEO, J. D. On media censorship, freedom of expression and the risks of journalism in Mexico. Information Development, n. 35, v. 4, p. 666-670, 2019.
LE CAM, F.; PEREIRA, F. H.; RUELLAN. D. Public violence against journalists and media. Sur le journalisme, v. 10, n. 1, 2021.
SAMPAIO-DIAS, S. Per Diem Payments as a form of Censorship and Control: The Case of Guinea-Bissau’s Journalism. Journalism Studies, v. 20, n. 16, p. 2349-2365, 2019. DOI: 10.1080/1461670X.2019.1593883.
SCHIMPFÖSSL, E. et. al. Self-censorship narrated: Journalism in Central and Eastern Europe. European Journal of Communication. v. 35, n. 1, p. 3-11, 2020.
WAISBORD, S. Mob Censorship: Online Harassment of US Journalists in Times of Digital Hate and Populism. Digital Journalism, v. 8, n. 8, p. 1030-1046, 2020.