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GPS, Coerção e Dependência: Fragilidade das Infraestruturas Estratégicas Brasileiras
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GPS, Coerção e Dependência: Fragilidade das Infraestruturas Estratégicas Brasileiras

Photo by Maël BALLAND on Unsplash

Nas últimas semanas, surge nos discursos públicos de deputados bolsonaristas — principalmente aliados de Eduardo Bolsonaro — a sugestão de que o presidente Donald Trump poderia lançar uma retaliação sem precedentes contra o Brasil, incluindo a hipótese de bloqueio ao acesso ao GPS. Segundo relatos por representantes próximos a Bolsonaro, essa retórica segue uma estratégia de endurecimento das sanções, indo desde tarifas de até 100%, passando pela aplicação da Lei Magnitsky e ações conjuntas com a Otan, até a expulsão de diplomatas e a suposta suspensão de satélites e GPS.

Entretanto, ao contrário do que afirma a narrativa bolsonarista, não há registro oficial de Trump nem do Departamento de Defesa dos EUA ameaçando bloquear o sinal GPS para o Brasil. Fontes de checagem como Boatos.org e sites especializados classificam a operação técnica como improvável e tecnicamente inviável, já que o serviço civil do GPS é aberto, gratuito e disponível para todo o mundo.

O Brasil, assim como a maioria dos países, depende do GPS — desenvolvido e gerido pelo Departamento de Defesa dos EUA — para sincronização de tempo, navegação, agricultura de precisão, transporte e segurança. Mas essa dependência, embora real, não permite que os EUA cortem seletivamente o sinal apenas para o Brasil, sem afetar outros países ou empresas americanas operando localmente.

Antes de prosseguir, é fundamental destacar um princípio estruturante das relações internacionais contemporâneas: tecnologias e inovações, mesmo quando desenvolvidas por empresas privadas, estão sob o controle direto ou indireto dos Estados. Nenhum outro ator político — seja uma corporação transnacional, organização internacional ou ONG — possui a capacidade soberana de impor restrições geopolíticas sobre o uso e a disseminação de tecnologias sensíveis como os Estados nacionais. Isso inclui o poder de condicionar a exportação, limitar o acesso ou até mesmo bloquear o funcionamento de tecnologias estratégicas.

Um exemplo emblemático dessa lógica foi o bloqueio imposto pelos Estados Unidos à empresa chinesa Huawei, impedindo-a de acessar semicondutores com tecnologia americana — ainda que fabricados por terceiros. A decisão evidenciou como o controle estatal sobre cadeias globais de inovação pode ser utilizado como instrumento de pressão geopolítica.

Esse padrão se repete também no domínio das tecnologias espaciais e de navegação, como os sistemas GNSS (Global Navigation Satellite Systems). Embora operem muitas vezes de forma pública e civil, esses sistemas são desenvolvidos, mantidos e supervisionados por instituições estatais, principalmente agências militares e de defesa. Portanto, sua eventual manipulação ou restrição não é apenas uma questão técnica, mas uma expressão concreta do poder estatal em contextos de disputa internacional.

O objetivo deste artigo é analisar as questões que emergem: por que agenda de sanções ao Brasil ganhou tração? Que vulnerabilidades tecnológicas e estratégicas ela expõe? E quais seriam os impactos reais e as formas possíveis de resposta, caso uma ameaça similar realmente se concretizasse? 

Para tanto, é preciso a contextualização política da crise, e, claro, entender o que é o GNSS (Global Navigation Satellite Systems), finalizando com a avaliação de impacto setorial e proposições robustas de mitigação.

A Crise Brasil–Estados Unidos e a Narrativa Bolsonarista

Em julho de 2025, a relação diplomática entre Brasil e Estados Unidos adentrou um momento de tensão aguda, catalisada por investigações do Supremo Tribunal Federal envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro. No dia 9 de julho, o presidente Donald Trump assinou um decreto impondo tarifas de 50% sobre produtos brasileiros exportados aos EUA, justificando a medida como forma de protesto contra o que chamou de perseguição política ao aliado Bolsonaro sob o governo Lula.

Em seguida, aliados próximos a Eduardo Bolsonaro passaram a divulgar à CNN Brasil um pacote de possíveis retaliações adicionais da Casa Branca — entre elas estavam a expulsão de diplomatas brasileiros, aplicação da Lei Magnitsky, sanções coordenadas pela Otan e, mais surpreendentemente, o bloqueio do sinal de satélites e GPS no país. Vale destacar que essas menções circulam no âmbito político interno, sem qualquer confirmação por parte do governo ou autoridades oficiais americanas.

A retórica foi intensificada com declarações afirmando que operações da Polícia Federal contra aliados de Bolsonaro teriam sido interpretadas como “declaração de guerra contra os EUA” por Trump (CNN Brasil). Isso representa uma forma de escalada discursiva que recorre à infraestrutura tecnológica disponível mundialmente como elemento simbólico de poder — mas, novamente, permanece não oficial.

Nas redes sociais, especialmente no X, a ideia de um bloqueio de GPS ganhou força, embora tenha sido classificada por sites de checagem de fatos como boato técnico e politicamente inviável. Vale adiantar que, embora o GPS seja gerido pelo Departamento de Defesa dos EUA, opera como um serviço civil gratuito, mundial e não sujeito a desligamentos seletivos – qualquer tentativa nessa direção prejudicaria inclusive empresas americanas que dependem do serviço no Brasil.

Ainda que tecnicamente possível degradar o sinal em uma região específica — como ocorreu em zonas de conflito —, fazê-lo no Brasil exigiria ação deliberada que representaria um ato hostil de magnitude internacional, inviabilizando o sistema nas empresas que operam globalmente e desencadeando reações diplomáticas severas, o que torna a hipótese altamente improvável.

Por fim, apesar da divulgação das afirmações bolsonaristas, o Brasil dispõe de alternativas consolidadas ao GPS, como os sistemas Galileo, GLONASS e BeiDou, compatíveis com dispositivos modernos e amplamente utilizados em setores estratégicos, reforçando que a suposta ameaça ao GPS serve mais a uma narrativa política do que a um cenário factual.

Sistemas de Navegação por Satélite

Os Sistemas de Navegação por Satélite, conhecidos internacionalmente como GNSS (Global Navigation Satellite Systems), representam uma das infraestruturas tecnológicas mais estratégicas e onipresentes da contemporaneidade. Estão na base de funções essenciais nas nossas vidas, que vão muito além da navegação civil. Os  sistemas de navegação são essenciais para o funcionamento de redes elétricas, sistemas financeiros, comunicações móveis, agricultura de precisão, defesa nacional e transporte. A crescente tensão entre Brasil e Estados Unidos, com a ameaça de bloqueio ao uso do GPS, obriga uma análise mais profunda sobre o funcionamento e a centralidade desses sistemas na ordem internacional.

O que é um GNSS?

Um sistema GNSS é um conjunto integrado de satélites orbitais, estações terrestres de controle e receptores de usuário capazes de fornecer, em tempo real, informações de posição, velocidade e tempo com elevada precisão. Seu funcionamento baseia-se no princípio da trilateração espacial, que determina a posição de um receptor ao medir a distância até, no mínimo, quatro satélites distintos. Para isso, o sistema utiliza sinais de rádio altamente sincronizados, que incluem códigos únicos e mensagens de navegação embutidas.

A arquitetura de um GNSS se organiza tradicionalmente em três segmentos interdependentes. O segmento espacial é formado por dezenas de satélites distribuídos em órbitas médias (MEO), geralmente a cerca de 20 mil quilômetros de altitude, garantindo cobertura mundial ininterrupta. O segmento de controle envolve redes de estações terrestres responsáveis por monitorar a constelação, atualizar as efemérides (dados orbitais), corrigir os relógios dos satélites e gerenciar eventuais falhas. Já o segmento do usuário é composto por receptores — como os encontrados em celulares, aviões, navios, tratores e mísseis — que decodificam os sinais transmitidos pelos satélites e calculam a posição geográfica com base em algoritmos de correção e sincronização.

A qualidade do serviço GNSS depende de três atributos fundamentais: precisão, disponibilidade e integridade. A precisão se refere ao grau de exatidão na localização estimada; a disponibilidade está relacionada à cobertura e ao número de satélites visíveis; e a integridade diz respeito à confiabilidade do sistema, especialmente em aplicações críticas, como pousos de aeronaves ou lançamentos balísticos.

Principais Sistemas GNSS

Atualmente, quatro sistemas GNSS de cobertura global estão plenamente ou parcialmente operacionais. O GPS (Global Positioning System), controlado pelos Estados Unidos, é o mais difundido e utilizado no mundo, tendo sido originalmente desenvolvido com fins militares durante a Guerra Fria. O GLONASS, da Rússia, surgiu como resposta soviética ao GPS, mas foi modernizado nos anos 2000. A União Europeia desenvolveu o Galileo com o objetivo explícito de criar uma alternativa civil e independente dos sistemas militares americanos e russos. Já a China implementou o BeiDou, um sistema robusto que expandiu sua cobertura global em 2020, consolidando-se como uma peça chave na estratégia de autonomia tecnológica do país.

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HK WCN 灣仔北 Wan Chai North 香港會展 HKCEC 創科博覽 InnoTech Expo 北斗衞星導航系統 BeiDou Navigation Satellite System IGSO GEO December 2022 Px3 08” by AKAMGO yalms is licensed under CC BY-SA 4.0

Além desses, sistemas regionais como o NavIC (Índia) e o QZSS (Japão) ampliam a diversidade do ecossistema GNSS, fornecendo redundância e maior resiliência para os países que os operam.

O avanço da multipolaridade geoespacial fez com que a maioria dos receptores modernos adotasse a tecnologia multiconstelação, ou seja, são capazes de utilizar simultaneamente os sinais do GPS, GLONASS, Galileo e BeiDou para melhorar a acurácia e a confiabilidade do posicionamento.

Como os Sinais GNSS Funcionam

Os sinais transmitidos pelos satélites GNSS são ondas de rádio que viajam na velocidade da luz e transportam dois tipos de informações fundamentais: um código pseudorrandômico (PRN), que permite identificar o satélite e medir o tempo de propagação do sinal, e uma mensagem de navegação, que inclui a posição do satélite, correções de tempo e parâmetros orbitais.

Para determinar a posição de um receptor na superfície terrestre, é necessário medir o tempo que o sinal levou para viajar entre o satélite e o receptor. Essa medição é feita com extrema precisão, contando com relógios atômicos a bordo dos satélites, que garantem a emissão de sinais em sincronia com o tempo coordenado universal (UTC). Os receptores, mesmo com relógios menos precisos, conseguem compensar esse desnível ao cruzar os sinais de múltiplos satélites. A equação fundamental da navegação por satélite envolve quatro incógnitas (latitude, longitude, altitude e tempo) e, por isso, exige ao menos quatro satélites visíveis para fornecer uma solução.

A estrutura do sinal GNSS é cuidadosamente desenhada para suportar ambientes adversos e permitir técnicas de correlação, filtragem de ruído e detecção de movimento (via efeito Doppler). A portadora de alta frequência, modulada com o PRN e a mensagem de navegação, permite obter medidas como pseudodistância, fase da portadora e desvio Doppler, cada uma delas contribuindo para diferentes níveis de precisão e aplicações. Algumas técnicas, como o RTK (Real-Time Kinematic), conseguem atingir precisão centimétrica utilizando correções de estações base em tempo real.

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Glonass K Navigation Spacecraft model at Cebit 2011 Satellite, general view from the right” by MKonair is licensed under CC BY-SA 2.0

Limitações e Fontes de Erro

Apesar de sua sofisticação, os sistemas GNSS estão sujeitos a diversos fatores que degradam a qualidade do sinal. Um dos mais relevantes é a refração atmosférica. Ao atravessar a ionosfera e a troposfera, as ondas de rádio sofrem variações em sua velocidade de propagação, o que pode introduzir erros significativos. Modelos de correção ionosférica e algoritmos de compensação são aplicados para reduzir esses efeitos, mas a precisão ainda é sensível a condições climáticas extremas ou atividade solar.

Outro problema recorrente é o chamado multipercurso, quando o sinal chega ao receptor por caminhos indiretos — refletido por edifícios, montanhas ou superfícies metálicas — criando interferências. Há também erros associados aos relógios do receptor, à geometria dos satélites no céu (DOP — Dilution of Precision), e à qualidade da ephemeris enviada.

Além dos erros naturais, existem ameaças deliberadas. Interferências intencionais (jamming) e falsificações de sinal (spoofing) são técnicas que podem ser utilizadas em conflitos militares, sabotagens cibernéticas e ataques terroristas. Os sistemas GNSS, portanto, não são apenas frágeis do ponto de vista técnico, mas também vulneráveis à geopolítica.

A Centralidade Estratégica do GPS e a Dependência Brasileira

O GPS norte-americano é o sistema mais usado no Brasil, tanto na esfera civil quanto militar. Essa dependência, embora tecnicamente vantajosa pela maturidade e cobertura do sistema, representa um ponto crítico de vulnerabilidade estratégica. A gestão do GPS pelo Departamento de Defesa dos EUA inclui a capacidade de negar seletivamente o acesso a usuários ou regiões específicas, por meio de técnicas como degradação intencional da precisão ou bloqueio total do sinal. Durante guerras ou disputas diplomáticas, como a que se desenha no presente momento, essa prerrogativa pode ser utilizada como instrumento de pressão internacional.

A hipótese levantada por interlocutores ligados ao ex-presidente Jair Bolsonaro, de que o governo Trump estaria considerando um bloqueio ao uso do GPS no Brasil, representa um marco sem precedentes na história recente das relações interamericanas. Os impactos dessa medida extrapolam a questão comercial ou simbólica. Trata-se de uma ameaça direta à soberania tecnológica, ao funcionamento da economia nacional e à segurança pública e militar brasileira.

A Geopolítica dos Satélites

O domínio da órbita terrestre tornou-se, no século XXI, uma das expressões mais sofisticadas do poder geopolítico. A capacidade de operar sistemas GNSS está no cerne dessa disputa, pois permite aos Estados controlar não apenas o espaço sideral, mas também as infraestruturas que sustentam a vida cotidiana nas sociedades modernas. O caso do GPS, controlado pelos Estados Unidos, é paradigmático – embora seja disponibilizado como bem público para o mundo, ele continua sendo uma ferramenta estratégica militar, com implicações profundas para a soberania de países que dele dependem.

GNSS como Tecnologia essencial e Instrumento de Poder

Desde a Guerra Fria, os Estados Unidos investiram massivamente na construção de uma constelação de satélites com capacidade de localização e temporização de alta precisão. O GPS, em operação desde a década de 1990, foi concebido desde o início com fins militares — e sua disponibilidade para usos civis sempre esteve subordinada a critérios de interesse nacional dos EUA. Essa característica permanece até hoje, pois o sistema é gerido pelo Departamento de Defesa norte-americano e pode ser desligado, degradado ou restrito regionalmente em casos de ameaça à segurança nacional ou por decisão estratégica.

Esse poder de negação seletiva, conhecido como Selective Availability, já foi utilizado em guerras e crises anteriores. Embora formalmente desativado em 2000 para aplicações civis, os EUA mantêm a capacidade técnica e legal para bloquear o GPS em áreas específicas do planeta ou excluir países inteiros do serviço de alta precisão. Em um cenário de conflito ou tensão diplomática, como o que se desenha com o Brasil, essa prerrogativa pode ser acionada como instrumento de coerção tecnológica.

A questão do bloqueio do GPS ilustra de forma concreta como a dependência tecnológica se converte em vulnerabilidade estrutural. Tais medidas não só comprometem a autonomia de setores estratégicos, como também expõem a fragilidade da inserção periférica de países como o Brasil em cadeias globais de infraestrutura digital.

A Fragilidade da Soberania Tecnológica

Embora o discurso da interdependência tecnológica sugira uma lógica de colaboração mútua entre Estados, a realidade é marcada por profundas assimetrias de poder. Países que controlam constelações de satélites — como EUA, China e Rússia — exercem uma forma de soberania extraterritorial sobre usuários estrangeiros, estabelecendo regimes de vigilância, acesso e negação de serviço que operam para além do direito internacional tradicional.

No caso dos GNSS, essa assimetria se manifesta na forma como o acesso ao serviço pode ser condicionado por critérios políticos, sem a mediação de organismos multilaterais. Embora a ONU tenha promovido a criação do Comitê Internacional sobre GNSS (ICG) e defenda a universalização do acesso, ainda não há um marco regulatório robusto que impeça o uso estratégico de bloqueios ou exclusões unilaterais.

A capacidade de um país em manter sua autonomia estratégica está diretamente relacionada à sua capacidade de operar, acessar ou negociar múltiplas constelações GNSS. Essa é a lógica por trás do desenvolvimento do Galileo europeu — projetado explicitamente como uma resposta à dependência do GPS — e do BeiDou chinês, que faz parte do esforço nacional de redução da dependência das tecnologias ocidentais, integrado à estratégia Made in China 2025.

Brasil e sua Posição Geopolítica Subordinada

O Brasil encontra-se, nesse cenário, em posição particularmente delicada. A sua adesão quase exclusiva ao GPS nas últimas décadas consolidou uma dependência tecnológica unilateral em setores importantes da nossa sociedade, como agricultura de precisão, transporte aéreo, defesa e monitoramento ambiental. Embora o país tenha acesso técnico ao GLONASS e ao Galileo em dispositivos modernos, não há, até o momento, uma política nacional de diversificação ou integração de constelações em serviços públicos estratégicos.

A ausência de investimentos em infraestrutura de suporte GNSS nacional, como sistemas de aumentação baseados em solo (GBAS) ou satélite (SBAS), limita a capacidade do país de mitigar um eventual bloqueio. Tampouco há, atualmente, acordos de cooperação robustos com China, Rússia ou União Europeia que garantam acesso prioritário ou interoperabilidade plena com os demais sistemas em caso de crise.

Além disso, o Brasil não possui um programa autônomo de satélites de navegação, o que significa que está estruturalmente exposto à decisão soberana de terceiros. Essa soberania delegada é uma característica das assimetrias tecnológicas que estruturam a ordem internacional, especialmente no campo digital e espacial.

Militarização do Espaço

A possibilidade de sanções tecnológicas envolvendo o GPS insere-se em uma tendência mais ampla de militarização do espaço. Embora tratados internacionais, como o Tratado do Espaço Exterior de 1967, limitem formalmente o uso do espaço para fins pacíficos, na prática os sistemas GNSS são ferramentas de duplo uso, integradas tanto a operações civis quanto a estratégias militares e cibernéticas. A própria existência de satélites anti-GNSS, sistemas de guerra eletrônica e técnicas de interferência confirma que o espaço entra na agenda de segurança e na política internacional.

Neste contexto, a disputa entre Brasil e Estados Unidos pode vir a se tornar um caso de estudo emblemático sobre como a dependência tecnológica se converte em vulnerabilidade política. A retórica utilizada por aliados de Trump — tratando decisões do STF brasileiro como declarações de guerra — revela a interseção perigosa entre conflitos institucionais domésticos e sanções de natureza tecnológica e diplomática internacional.

Alternativas e Estratégias de Mitigação

Diante da possibilidade de um bloqueio ao GPS por parte dos Estados Unidos, torna-se imperativo discutir alternativas técnicas, institucionais e diplomáticas que permitam ao Brasil reduzir sua vulnerabilidade e preservar sua soberania tecnológica. A dependência quase exclusiva do sistema norte-americano não é apenas um erro estratégico, mas uma ameaça existencial a setores vitais do país. Essa seção apresenta caminhos possíveis para mitigar os riscos e construir resiliência sistêmica frente a sanções geotecnológicas.

  1. Diversificação de Constelações

A primeira e mais imediata alternativa técnica é a adoção de receptores multiconstelação, capazes de operar com sinais simultâneos de Galileo (União Europeia), GLONASS (Rússia) e BeiDou (China), além do próprio GPS. Essa capacidade já está presente em muitos dispositivos modernos, mas não é amplamente explorada em sistemas públicos, militares e críticos.

O sistema europeu Galileo, por exemplo, foi concebido com o propósito explícito de oferecer uma alternativa civil, sob controle político autônomo, livre da tutela de potências militares. Com precisão superior ao GPS em muitas aplicações civis, ele oferece serviços abertos, comerciais e regulamentados — este último voltado para governos e forças de segurança.

O GLONASS, sistema russo operacional desde os anos 2000, fornece cobertura robusta e é particularmente útil em altas latitudes. Já o BeiDou, desenvolvido pela China, vem se consolidando como um sistema estratégico completo, com dezenas de satélites em órbita, cobertura total e crescente adoção em países do Sul Global.

O uso combinado desses sistemas não só melhora a precisão e a disponibilidade dos sinais, como também permite a construção de redundância geopolítica, crucial em contextos de sanções.

  1. Implementação de Sistemas de Aumentação (SBAS e GBAS)

Outra estratégia técnica é a implantação de sistemas de aumentação, que corrigem e refinam os sinais GNSS para aplicações de alta precisão. Entre os mais comuns estão:

SBAS (Satellite-Based Augmentation Systems) → utilizam satélites geoestacionários para transmitir correções em tempo real. Exemplos incluem o WAAS (EUA), o EGNOS (Europa) e o MSAS (Japão). O Brasil poderia desenvolver ou aderir a um sistema regional sul-americano de aumentação, como já sugerido por instituições acadêmicas e agências espaciais latino-americanas.

GBAS (Ground-Based Augmentation Systems) → operam por meio de estações terrestres que transmitem correções locais altamente precisas, utilizadas especialmente em aeroportos, agricultura e obras de engenharia.

Tais sistemas aumentam a resiliência local e permitem manter serviços críticos mesmo com degradação parcial do GNSS primário.

  1. Cooperação Internacional e Paradiplomacia Tecnológica

A dimensão geopolítica da mitigação exige também uma política externa ativa na construção de acordos de interoperabilidade e cooperação técnica com as potências operadoras de constelações GNSS alternativas. O Brasil poderia, por exemplo, negociar com a Agência Espacial Europeia (ESA) o acesso prioritário aos serviços regulamentados do Galileo, ou firmar memorandos de entendimento com a China para uso conjunto do BeiDou em áreas como transporte, agricultura e defesa civil.

Além disso, estados e municípios com capacidade tecnológica — como São Paulo, Campinas ou Porto Alegre — podem lançar programas locais de adoção de receptores multiconstelação, criando experiências subnacionais de resiliência digital, articulando a chamada paradiplomacia tecnológica.

  1. Desenvolvimento de Capacidades Nacionais

A médio e longo prazo, a resposta mais estruturante passa pela construção de capacidades nacionais em tecnologias espaciais e temporais. Isso inclui:

  • Investimento em relógios atômicos nacionais para geração de tempo UTC independente.
  • Criação de uma infraestrutura nacional de tempo e frequência, capaz de substituir parcialmente o GNSS em data centers, redes elétricas e telecomunicações.
  • Ampliação dos programas da Agência Espacial Brasileira (AEB) e do INPE para incluir pesquisa em navegação, sincronização e orbitais médias.

Países como a Índia, o Irã e até mesmo a África do Sul vêm estruturando programas próprios de posicionamento regional, conscientes de que o domínio do tempo e do espaço é parte fundamental da soberania no século XXI.

  1. Educação Estratégica e Cultura de Contingência

Nenhuma dessas estratégias terá sucesso sem uma mudança cultural e institucional no país. É necessário inserir o tema da soberania tecnológica e das infraestruturas críticas digitais na formação de profissionais de defesa, ciência de dados, relações internacionais e políticas públicas. A criação de protocolos de contingência, simulações de bloqueio e redes de alerta precoce são medidas urgentes que devem ser coordenadas entre governo, universidades e setor privado.

Considerações Finais

A crise entre Brasil e Estados Unidos, marcada por ameaças de bloqueio ao GPS, tarifas comerciais punitivas e pressões diplomáticas, escancara as novas fronteiras do poder internacional, onde o domínio do tempo, do espaço e da infraestrutura digital torna-se um instrumento central de coerção entre Estados. O episódio é exemplar de uma era marcada não apenas pela competição militar ou comercial, mas por conflitos híbridos que envolvem tecnologias civis transformadas em armas silenciosas de submissão geoestratégica.

A dependência brasileira do sistema GPS — projetado, operado e controlado pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos — é o resultado de décadas de negligência na formulação de uma estratégia nacional de soberania tecnológica. Ainda que o Brasil disponha de competência técnica e institucional para operar com múltiplas constelações GNSS, a ausência de uma política articulada de diversificação, cooperação internacional e desenvolvimento interno coloca o país em uma posição vulnerável e reativa.

Ao longo deste artigo, demonstramos como o funcionamento dos sistemas GNSS está no cerne de atividades civis, militares e econômicas modernas. O GPS deixou de ser apenas um sistema de navegação para se tornar uma infraestrutura essencial, que coordena desde o pouso de aviões até o horário de transações bancárias, passando pelo controle de usinas elétricas, o agronegócio e o deslocamento de ambulâncias. Um bloqueio — mesmo parcial ou temporário — não significaria apenas um transtorno logístico, mas um choque sistêmico à soberania funcional do Estado brasileiro.

Mais do que um episódio bilateral, a ameaça de sanções tecnológicas revela um dilema mais amplo enfrentado por potências médias e países do Sul Global: como se inserir em uma ordem internacional cada vez mais fragmentada, onde os bens públicos globais são instrumentalizados em disputas políticas, e onde a autonomia depende da capacidade de investir em tecnologias críticas e redes de cooperação multipolar.

A resposta a esse desafio não pode ser setorial nem pontual. O Brasil precisa estruturar uma agenda estratégica de autonomia tecnológica, que envolva:

  • A adoção massiva de receptores multiconstelação em setores sensíveis;
  • A criação de infraestruturas próprias de tempo e posicionamento, com investimento em relógios atômicos, redes de aumentação e controle de dados geoespaciais;
  • A construção de alianças técnicas com blocos e potências não alinhadas;
  • E a incorporação definitiva da questão tecnológica à formação de políticas de Estado e à cultura institucional brasileira.

Em última instância, o que está em jogo não é apenas o acesso a um sinal de navegação, mas a capacidade de um país definir os termos de sua presença no mundo digitalizado, sua resiliência frente à coerção internacional e sua soberania sobre o território, o tempo e o futuro.

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Analista de Relações Internacionais at ESRI | Website |  + posts

Analista de Relações Internacionais, organizador do Congresso de Relações Internacionais e editor da Revista Relações Exteriores. Professor, Palestrante e Empreendedor. Contato profissional: guilherme.bueno(a)esri.net.br

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