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Ibrahim Traoré e a Nova Geopolítica do Sahel: Soberania, Ouro e Influência Externa Ibrahim Traoré e a Nova Geopolítica do Sahel: Soberania, Ouro e Influência Externa

Ibrahim Traoré e a Nova Geopolítica do Sahel: Soberania, Ouro e Influência Externa

"Ibrahim Traoré in Moscow, 2025" by kremlin.ru/Stanislav Krasilnikov, RIA Novosti is licensed under CC BY 4.0

Burkina Faso, país historicamente marcado por instabilidade política, insurgências armadas e dependência econômica externa, tornou-se nos últimos anos o centro de um experimento político radical e de alcance internacional. Desde o golpe de Estado de setembro de 2022, que levou ao poder o então Capitão Ibrahim Traoré, a nação saeliana passou por uma profunda reorientação de sua política interna, externa e simbólica. Jovem, carismático e com forte apelo entre a população — especialmente os jovens e os setores mais empobrecidos —, Traoré se consolidou como um dos principais rostos de uma nova geração de líderes militares na África que desafiam abertamente a hegemonia ocidental, em especial a presença histórica da França na região.

Traoré rapidamente se tornou uma figura controversa e midiática. Em seus discursos, recupera o legado de Thomas Sankara, ícone do pan-africanismo e da soberania continental, promovendo uma retórica de ruptura com o imperialismo, de valorização dos recursos nacionais e de autossuficiência. Sua imagem foi projetada internacionalmente com apoio de redes sociais, campanhas digitais sofisticadas — muitas vezes impulsionadas por atores estatais estrangeiros — e um discurso mobilizador que encontra eco não apenas em países africanos, mas também entre setores da diáspora africana na Europa e América do Norte. Admiradores o veem como um novo Sankara; críticos, como um autocrata com discurso revolucionário, mas práticas autoritárias.

Sob seu comando, o país abandonou formalmente a parceria com a França, estabeleceu uma aliança estratégica com Moscou, fortaleceu laços com Irã, China e Turquia, nacionalizou minas de ouro, expulsou a presença militar francesa, retirou-se da CEDEAO ao lado de Mali e Níger, e anunciou a criação de uma força de defesa regional autônoma. Internamente, Traoré ampliou o recrutamento de civis armados (VDPs), adotou um discurso militarista contra o jihadismo, e consolidou um modelo de poder marcado pela centralização, repressão a opositores e censura à imprensa.

Essa conjuntura complexa insere Burkina Faso no centro de disputas geopolíticas mais amplas, envolvendo Rússia, França, Estados Unidos e China, além de levantar debates sobre o futuro da democracia no continente africano, a ascensão de novas formas de liderança autoritária-populista e os limites das intervenções externas. Ao mesmo tempo em que apresenta avanços econômicos pontuais e melhorias na arrecadação interna, o país continua imerso em uma profunda crise humanitária e securitária, com mais de 2 milhões de deslocados internos, ataques jihadistas frequentes e cerca de 40% do território fora do controle do Estado.

Neste artigo, analisamos a ascensão de Ibrahim Traoré, seu projeto político, os dilemas de sua liderança e os impactos regionais e globais de sua estratégia. A partir de uma leitura crítica e interdisciplinar, buscamos compreender se o capitão representa de fato uma nova revolução soberanista africana ou apenas mais um episódio do ciclo de militarização do poder no Sahel.

A Ascensão de Traoré: Legado de Sankara e Revolução Simbólica

A trajetória de Ibrahim Traoré ao poder está profundamente ancorada em uma estratégia simbólica que evoca os grandes líderes revolucionários do continente africano, em especial Thomas Sankara, presidente de Burkina Faso entre 1983 e 1987. Conhecido como o “Che Guevara africano”, Sankara permanece uma referência histórica de integridade, soberania e combate ao imperialismo, e Traoré tem explorado ativamente essa memória como instrumento de legitimação política.

Ao assumir o poder com apenas 34 anos, Traoré se apresentou como porta-voz de uma nova geração que exige autonomia, dignidade e ruptura com o passado colonial. Seu discurso pan-africanista, anticolonial e de valorização dos recursos naturais do país encontra forte ressonância entre a juventude, cuja idade média no país é de apenas 17,7 anos. Traoré personifica a rejeição da elite política tradicional, associada ao fracasso da democracia liberal em garantir segurança, empregos e serviços públicos de qualidade.

Essa construção simbólica se fortalece por meio de aparições públicas altamente coreografadas: fardado, de boina vermelha, punho erguido, cercado de multidões, frequentemente em eventos com forte carga emocional e nacionalista. Sua presença em eventos internacionais, como a Cúpula Rússia-África de 2023, também foi amplamente explorada nas redes sociais e na mídia estatal russa como símbolo da resistência africana ao “Ocidente imperialista”.

Traoré mobiliza com habilidade o imaginário coletivo, associando sua figura à de líderes como Kwame Nkrumah, Jerry Rawlings e Patrice Lumumba. Em discursos inflamados, acusa as antigas potências coloniais — principalmente a França — de manterem estruturas neocoloniais de dominação por meio da economia, da cultura e das intervenções militares. O resultado é um projeto político que valoriza a soberania nacional como eixo central, com forte apelo emocional, mas sustentado por medidas concretas de ruptura com o sistema internacional vigente.

Essa estratégia, no entanto, vai além da retórica. O governo de Traoré tem adotado medidas que materializam esse novo nacionalismo, como a criação de uma refinaria estatal de ouro, o estabelecimento de reservas estratégicas nacionais de ouro, e a exigência de participação estatal mínima de 15% em todas as operações mineradoras estrangeiras. Mesmo empresas russas — como a Nordgold — têm de cumprir essas regras, numa tentativa de demonstrar que a aliança com Moscou não implica submissão a um novo tipo de dominação.

Ibrahim Traoré e a Nova Geopolítica do Sahel: Soberania, Ouro e Influência Externa 1
Vladimir Putin and Ibrahim Traoré (2025-05-09)” by Official website of the President of Russia is licensed under CC BY 4.0

Por outro lado, o culto à personalidade, o uso intensivo da propaganda e a centralização crescente do poder evocam preocupações sobre o autoritarismo emergente. A repressão a opositores, o fechamento de rádios e canais de mídia independentes e a instrumentalização do discurso revolucionário para justificar a supressão de direitos políticos indicam que a simbologia sankarista pode estar sendo utilizada mais como escudo do que como guia ético.

A ascensão de Traoré, portanto, revela-se como um fenômeno multifacetado: ao mesmo tempo em que articula um projeto político pan-africanista com forte apelo simbólico, também avança sobre os pilares de uma governança autoritária, marcada por estratégias de mobilização popular, repressão a dissidentes e uso seletivo da memória histórica. A grande questão, que será abordada nas seções seguintes, é se essa liderança poderá transformar o simbolismo revolucionário em resultados concretos para a população — ou se acabará como tantas outras experiências africanas, dominada por personalismo, militarismo e isolamento.

Uma Nova Política Econômica: Ouro, Nacionalizações e Autonomia

A agenda econômica de Ibrahim Traoré tem como eixo principal a reapropriação dos recursos naturais estratégicos, com destaque para o setor de mineração, especialmente o ouro — principal produto de exportação de Burkina Faso. Com um discurso de revolução soberana, o governo lançou uma ofensiva contra o que considera uma estrutura neocolonial de exploração, dominada por empresas estrangeiras, muitas delas com sede em países ocidentais.

Entre as medidas centrais adotadas pela junta militar está a criação de uma refinaria nacional de ouro, o estabelecimento de reservas estatais do metal precioso e a exigência de que toda empresa estrangeira que opere no país ceda, obrigatoriamente, 15% de participação à mineradora estatal recém-criada. Além disso, essas empresas são obrigadas a realizar transferência de tecnologia e capacitação de trabalhadores burquinenses — um esforço deliberado de nacionalização do conhecimento e da cadeia produtiva.

Essa política não se limitou ao plano discursivo. Nos últimos dois anos, o governo nacionalizou pelo menos duas minas anteriormente controladas por empresas britânicas e revogou licenças de exploração de companhias australianas, como a Sarama Resources, que respondeu com processos de arbitragem internacional. A hostilidade crescente a empresas ocidentais é vista por analistas como parte de uma estratégia de desfrancesamento da economia, que caminha em paralelo à retirada militar francesa do país.

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Curiosamente, essas mesmas regras foram aplicadas a empresas russas, como a Nordgold, que recebeu uma nova licença de exploração em 2025. Essa decisão revela um elemento-chave da política externa burquinense: ainda que o país tenha se aproximado geopoliticamente da Rússia, busca manter um discurso de equidistância e soberania nacional. O governo afirma que sua prioridade é a recuperação do controle burquinense sobre os recursos do país, independentemente da origem dos investidores.

No plano macroeconômico, os primeiros resultados foram ambíguos. Embora o país enfrente uma grave crise humanitária, com mais de dois milhões de deslocados internos e ataques jihadistas constantes, o crescimento econômico chegou a 5% em 2024, segundo o FMI, impulsionado principalmente pelo setor agrícola e pela reorganização da indústria de mineração. A redução da pobreza extrema, de 26,7% para 24,9%, e o aumento da arrecadação interna foram apontados como sinais de eficácia inicial da nova política.

Por outro lado, o ambiente de negócios se deteriorou. Investidores estrangeiros relataram insegurança jurídica, riscos operacionais elevados e crescente imprevisibilidade institucional. A forte dependência do ouro como fonte de receita — que representa mais de 70% das exportações — expõe a economia burquinense à volatilidade dos preços internacionais, o que pode gerar instabilidade futura.

Adicionalmente, o uso político dos recursos minerais tem sido alvo de críticas internacionais. O chefe do Comando Africano dos EUA (AFRICOM), General Michael Langley, declarou em abril de 2025 que o ouro de Burkina Faso estaria sendo utilizado pela junta para garantir sua permanência no poder — uma acusação que gerou forte reação nacionalista no país e protestos de apoio a Traoré em várias cidades, incluindo em comunidades da diáspora africana.

Em síntese, a política econômica do governo Traoré é, ao mesmo tempo, uma tentativa de reconfiguração estrutural da dependência externa e uma aposta de alto risco num modelo estatista e soberanista, operando sob forte pressão social, militar e geopolítica. Resta saber se essa “revolução do ouro” será suficiente para consolidar um projeto sustentável de desenvolvimento ou se servirá apenas como instrumento de poder no curto prazo.

O Fator Rússia: Cooperação Militar e Disputa de Narrativas

Desde a chegada de Ibrahim Traoré ao poder, a Rússia passou a ocupar um papel central na política externa de Burkina Faso, marcando uma reconfiguração das alianças tradicionais do país. O movimento de afastamento da França e de aproximação com Moscou não se deu apenas por conveniências táticas, mas como parte de uma narrativa ideológica de soberania, ressonante com o pan-africanismo e o anti-imperialismo promovido por Traoré. Nesse processo, a Rússia tem desempenhado um papel tanto militar quanto simbólico.

A aliança com Moscou se intensificou especialmente após a Cúpula Rússia-África de 2023, onde Traoré teve destaque ao conclamar os países africanos a “pararem de agir como marionetes dos imperialistas” — uma frase amplamente divulgada pela mídia estatal russa (BBC News, 2025). Desde então, cerca de 100 militares e especialistas russos foram destacados para Burkina Faso com a missão oficial de treinar forças locais e garantir a proteção do próprio capitão, em um modelo de cooperação similar ao já existente no Mali (CRS, 2025).

A presença russa no país, no entanto, é cercada de ambiguidade. Embora Traoré negue abertamente a atuação do Grupo Wagner em Burkina Faso — afirmando que “nosso Wagner é o VDP” —, diversas fontes ocidentais e africanas apontam que elementos ligados ao antigo grupo paramilitar russo estariam operando no país sob diferentes designações (FES, 2023). A concessão de novas licenças de mineração à Nordgold, uma empresa russa sob sanções norte-americanas, reforça a suspeita de que o apoio russo não é altruísta, mas parte de um acordo estratégico envolvendo acesso a recursos minerais em troca de proteção política (CRS, 2025).

No campo da informação e da comunicação, a guerra de narrativas é evidente. A cobertura de veículos como a Moscow Times enfatiza os aspectos de solidariedade internacional, cooperação antiterrorista e respeito mútuo, alinhando-se ao modelo de jornalismo de paz proposto por Galtung (Abdel Aziz, 2024). Já os veículos franceses, como Le Monde, tendem a destacar o recrudescimento autoritário do regime, o fracasso no combate ao jihadismo e a repressão à sociedade civil — aproximando-se, em muitos casos, do jornalismo de guerra (Abdel Aziz, 2024).

Essa batalha comunicacional busca legitimar, de lados opostos, dois projetos concorrentes de presença estrangeira na África: o modelo francês, associado a valores liberais e presença militar direta; e o modelo russo, centrado em não interferência, discurso anticolonial e apoio técnico-militar. Traoré se posiciona explicitamente ao lado do segundo, utilizando-se da retórica anticolonial para mobilizar apoio interno e externo, inclusive entre afrodescendentes e militantes da diáspora na Europa e nos Estados Unidos.

Por fim, a visita de Traoré à Rússia em maio de 2025, onde participou da celebração da vitória soviética contra o nazismo ao lado de líderes militares do Mali e do Níger, serviu para solidificar simbolicamente essa aliança e promover uma identidade comum baseada na resistência. Em suas palavras, trata-se de uma nova “guerra contra o terrorismo e o imperialismo”, onde a vitória histórica da URSS serve como inspiração estratégica contemporânea (BBC News, 2025).

Entretanto, esse alinhamento com a Rússia não vem sem riscos. Ele aprofunda a ruptura com Estados Unidos e União Europeia, limita o acesso a programas de cooperação e desenvolvimento, e coloca Burkina Faso no centro das disputas geopolíticas globais, como uma peça estratégica entre os blocos rivais. Além disso, fortalece o isolamento diplomático do país no âmbito da CEDEAO e de outras instituições regionais.

Assim, a relação com a Rússia é tanto um recurso de poder simbólico e estratégico para o regime de Traoré, quanto um elemento de polarização política e internacional, que pode reforçar a estabilidade do governo a curto prazo, mas comprometer suas margens de manobra no longo prazo.

A Estratégia de Segurança: VDPs, Violência e a Guerra Contra o Terror

Desde sua ascensão ao poder, o governo de Ibrahim Traoré tem tratado a luta contra o terrorismo como prioridade absoluta e como justificativa central para o adiamento das eleições e a consolidação do regime. A estratégia de segurança adotada por sua administração é marcada por um modelo que combina repressão direta, expansão de forças civis armadas e uma retórica de guerra total contra os inimigos do Estado.

O instrumento mais visível dessa estratégia é a mobilização dos Voluntários para a Defesa da Pátria (VDPs) — civis armados recrutados em massa para atuar ao lado das forças armadas regulares no combate aos grupos jihadistas. Desde 2022, o número de VDPs cresceu exponencialmente, com mais de 50 mil voluntários incorporados ao esforço de guerra (FES, 2023). Essa mobilização popular tem sido apresentada como um exemplo de soberania popular armada e patriotismo. Contudo, organizações internacionais e relatórios independentes apontam que os VDPs têm sido responsáveis por diversos abusos, incluindo massacres étnicos, sobretudo contra comunidades Fulani (CRS, 2025).

As ações militares também têm sido acompanhadas por restrições severas às liberdades civis, com denúncias crescentes de prisões arbitrárias, censura à imprensa, desaparecimentos forçados e envio de críticos do governo — incluindo juízes e jornalistas — à linha de frente do conflito (Human Rights Watch, 2025). O regime argumenta que tais medidas são necessárias diante da magnitude da ameaça jihadista, mas críticos apontam que isso configura um deslocamento do foco antiterrorista para a eliminação da dissidência interna.

Em maio de 2023, o governo adotou a Estratégia Nacional de Contra-Terrorismo (SNCT), que estabelece uma abordagem oficialmente holística, baseada em quatro pilares: (1) combate às causas estruturais do terrorismo, (2) prevenção e resposta, (3) fortalecimento das capacidades estatais, e (4) respeito aos direitos humanos e ao Estado de Direito (FES, 2023). No entanto, na prática, o modelo implementado até aqui tem se concentrado quase exclusivamente na dimensão militar e securitária, o que levou diversos analistas a caracterizá-lo como uma estratégia tudo militar.

Além disso, o país vive uma das piores crises humanitárias da África Ocidental, com mais de 2 milhões de deslocados internos, colapso parcial da educação pública e grande parte do território — especialmente no norte e leste — fora do controle governamental. O grupo jihadista JNIM, afiliado à Al-Qaeda, mantém o cerco a diversas cidades, bloqueando o acesso a alimentos e medicamentos, e promovendo estratégias de guerra de desgaste prolongado (CRS, 2025).

Enquanto isso, o Estado responde com operações militares intensivas, que frequentemente resultam em baixas civis, destruição de vilarejos e aumento da hostilidade entre comunidades locais. Essas ações alimentam um ciclo de recrutamento jihadista motivado por ressentimento, medo e desejo de vingança, enfraquecendo a já precária coesão social do país (FES, 2023).

A militarização da política e da sociedade burquinense levanta preocupações quanto à possibilidade de institucionalização de um regime de exceção permanente. A justificativa da guerra ao terror tem servido como escudo para prorrogar o mandato da junta militar, que já estendeu formalmente seu governo até 2029. As promessas iniciais de retorno à ordem constitucional foram substituídas por um discurso de “prioridade à sobrevivência nacional” (CRS, 2025).

Apesar disso, parte da população continua a apoiar Traoré, vendo nele uma alternativa às elites políticas desacreditadas, mesmo diante dos riscos autoritários. Esse apoio tem sido alimentado por uma narrativa que mistura heroísmo, sacrifício coletivo e soberania popular armada, combinada com o uso estratégico das redes sociais e da propaganda oficial.

Em suma, a estratégia de segurança de Ibrahim Traoré constitui uma resposta radical a uma ameaça real, mas cujo custo humanitário e democrático é crescente. Ao apostar em uma solução militarizada, nacionalista e centralizadora, o regime corre o risco de alimentar as próprias dinâmicas que deseja combater — perpetuando a violência, minando a legitimidade estatal e bloqueando saídas políticas e inclusivas para o conflito.

Isolamento Regional e Ruptura com a CEDEAO

Um dos aspectos mais marcantes da política externa de Burkina Faso sob o comando de Ibrahim Traoré é sua ruptura com os marcos tradicionais de cooperação regional, em especial com a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO). Após anos de crescente tensão entre os governos militares do Sahel e os líderes civis da CEDEAO, Burkina Faso, Mali e Níger anunciaram em 2025 sua retirada conjunta do bloco, culminando na criação da Aliança dos Estados do Sahel (AES) — um novo agrupamento de cooperação político-militar com forte caráter soberanista e anti-intervencionista (CRS, 2025).

Essa decisão marca o fim de uma era em que a CEDEAO atuava como principal mediadora dos conflitos e garantidora da ordem democrática na região. A saída dos três países evidencia a erosão da confiança nas instituições regionais, vistas pelas juntas militares como instrumentos de influência francesa e de imposição de uma ordem liberal exógena. Traoré e seus aliados acusam a CEDEAO de priorizar a defesa de interesses estrangeiros em detrimento das realidades locais (FES, 2023).

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Ecowas” by Scantyzer1 is licensed under CC BY-SA 4.0

Em substituição ao antigo arranjo regional, a Aliança dos Estados do Sahel propõe uma agenda centrada em segurança compartilhada, soberania econômica e integração defensiva, com apoio explícito da Rússia. Em abril de 2025, Moscou comprometeu-se a fornecer armamentos, treinamento e apoio logístico à nova força militar conjunta da AES (CRS, 2025). Trata-se de uma clara tentativa de criar um eixo alternativo de poder no continente africano, alinhado a uma visão multipolar e desvinculada das normas ocidentais.

A postura de Traoré, contudo, não se limita ao plano simbólico. Burkina Faso passou a impor tarifas de 0,5% sobre importações vindas de países vizinhos, encerrando unilateralmente o regime de livre comércio estabelecido pela CEDEAO. Esse movimento impactou negativamente as cadeias de suprimento regionais e gerou fricções diplomáticas com Costa do Marfim, Gana e Benin, países que defendem a permanência no bloco e o respeito à ordem constitucional regional (FES, 2023).

Apesar das tensões, Traoré tem buscado manter pontes pragmáticas com alguns vizinhos. Houve encontros bilaterais com os presidentes de Benin e Gana, além de visitas diplomáticas à Costa do Marfim, mesmo com sanções da CEDEAO que proibiam o sobrevoo de autoridades burquinenses (FES, 2023). Também há cooperação pontual em segurança de fronteira e operações conjuntas, como no Parque Nacional W e na região do triângulo entre Burkina, Níger e Mali — áreas fortemente atingidas pela presença jihadista.

No entanto, analistas destacam que a estratégia burquinense de autonomia radical enfrenta limites estruturais importantes. A natureza transnacional da ameaça terrorista exige coordenação regional efetiva — algo que dificilmente será alcançado apenas por meio de alianças ad hoc ou arranjos militares bilaterais (FES, 2023). A ausência de confiança mútua entre as lideranças militares e civis da África Ocidental compromete a construção de um modelo regional sólido e coeso.

Por fim, a ruptura com a CEDEAO também tem implicações econômicas significativas. Burkina Faso, país sem saída para o mar e altamente dependente das trocas regionais, corre o risco de aumentar seu isolamento comercial em um momento de profunda crise humanitária e insegurança alimentar. A degradação das relações com os principais países costeiros pode dificultar o acesso a portos estratégicos, encarecendo importações e prejudicando exportações, sobretudo de algodão e ouro.

Em suma, a ruptura com a CEDEAO e a criação da AES representam uma tentativa audaciosa de reconfiguração geopolítica do Sahel, mas também envolvem riscos consideráveis de isolamento, fragmentação regional e agravamento das vulnerabilidades econômicas. Resta saber se o novo bloco conseguirá se consolidar como alternativa funcional e legítima ou se se tornará mais um capítulo na crônica da instabilidade africana.

Entre o Carisma e a Autocracia: Dilemas da Liderança de Traoré

A figura de Ibrahim Traoré representa um dos casos mais emblemáticos da nova geração de líderes militares africanos que combinam carisma popular, discurso revolucionário e centralização do poder. Sua trajetória, marcada por uma ascensão fulminante, forte apelo simbólico e desafios colossais, levanta questões centrais sobre os limites e contradições da liderança personalista no contexto africano contemporâneo.

Aos olhos de parte da população — sobretudo entre jovens e setores nacionalistas urbanos — Traoré é visto como um herdeiro legítimo de Thomas Sankara, encarnação de um novo modelo de Estado soberano, anticolonial e defensor do interesse público. Sua comunicação direta, o uso frequente das redes sociais e a adoção de símbolos da resistência africana o transformaram em um ícone para muitos que se sentem abandonados pela elite política tradicional (Abdel Aziz, 2024).

No entanto, esse capital simbólico tem sido cada vez mais utilizado para justificar práticas autoritárias. Sob o pretexto da “defesa da soberania nacional”, o governo vem promovendo o enfraquecimento sistemático de instituições de controle e da imprensa livre, além da repressão a vozes críticas no interior do próprio Exército. Casos de prisões arbitrárias, censura, fechamento de veículos independentes e uso de milícias digitais para atacar opositores nas redes têm se tornado rotina (CRS, 2025).

Outro traço marcante do estilo de liderança de Traoré é a adoção de um discurso binário de guerra total, no qual todo opositor pode ser associado ao terrorismo ou ao imperialismo. Essa lógica alimenta um ambiente político polarizado, onde a lealdade ao líder se sobrepõe à institucionalidade, e onde a narrativa de ameaça constante serve para postergar indefinidamente a transição democrática (FES, 2023).

Mesmo aliados internacionais, como a Rússia, parecem desconfortáveis com o grau de personalização do poder. Ao mesmo tempo, grupos da sociedade civil que inicialmente apoiavam o governo começam a expressar preocupações com o “culto à personalidade” e a militarização da vida pública. A figura de Traoré passou a ser exibida de forma onipresente em murais, camisetas, faixas e transmissões estatais, o que levanta alertas sobre a transformação simbólica do capitão em mito político vivo — um fenômeno que tem precedentes trágicos na história africana.

Apesar dessas críticas, o regime tem conseguido manter apoio popular expressivo, ancorado em três pilares: (1) o fracasso da classe política anterior, que não entregou segurança nem desenvolvimento; (2) a rejeição às potências ocidentais, especialmente a França, cujas intervenções são vistas como neocoloniais; e (3) a capacidade de mobilizar esperança e orgulho nacional em meio a um cenário de crise prolongada (Abdel Aziz, 2024).

O grande dilema de Traoré, portanto, é se será capaz de canalizar seu capital simbólico e popular para construir instituições duráveis e inclusivas, ou se optará por consolidar um regime autoritário centrado em sua própria figura. A história recente do continente africano mostra que o personalismo carismático, quando não contrabalançado por mecanismos de controle e participação, frequentemente leva ao autoritarismo, ao isolamento e, por fim, à instabilidade.

Burkina Faso caminha assim por uma linha tênue: entre o renascimento de um projeto revolucionário de autonomia africana e o risco de reprodução de lógicas autoritárias que já marcaram tragicamente o passado da região.

Referências

ABDEL AZIZ, Abdoul Karim. Between Peace and War Journalism: The Role of International Media in the Construction of the Traoré Regime. Sankara Journal of Social Justice, v. 27, p. 17–26, 2024.

BBC NEWS. Burkina Faso’s Leader in Moscow: A New Era for the Sahel?. BBC News Africa, 9 maio 2025. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-africa. Acesso em: 4 jul. 2025.

CRS – Congressional Research Service. Burkina Faso: Political Transition, Security Crisis, and U.S. Policy. Washington, D.C.: CRS, 2025.

FES – Friedrich Ebert Stiftung. Burkina Faso entre guerre et propagande: les transformations sécuritaires et politiques du régime Traoré. Dakar: FES Peace and Security Series, Sahel #6, 2023.

HUMAN RIGHTS WATCH. Burkina Faso: Security Forces Linked to Massacre of Civilians. HRW Reports, 2025. Disponível em: https://www.hrw.org/news/2025/02/28/burkina-faso. Acesso em: 4 jul. 2025.

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Analista de Relações Internacionais, organizador do Congresso de Relações Internacionais e editor da Revista Relações Exteriores. Professor, Palestrante e Empreendedor. Contato profissional: guilherme.bueno(a)esri.net.br

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