Em meio a uma nova fase de tensões geopolíticas, disputas comerciais intensificadas e reorganização da ordem internacional, o papel do dólar como pilar do sistema monetário internacional volta a ser objeto de debate. A moeda norte-americana, consolidada como principal unidade de conta, meio de troca e reserva de valor desde os Acordos de Bretton Woods, é mais do que um instrumento técnico de liquidação internacional: é um símbolo concreto do poder dos Estados Unidos sobre as estruturas financeiras, políticas e jurídicas que moldam o comércio, os investimentos e as sanções no século XXI.
A capacidade dos EUA de emitir a principal moeda lhes confere vantagens estratégicas singulares — da facilidade em financiar déficits à imposição de medidas coercitivas por meio do sistema bancário e financeiro. Esse privilégio exorbitante sustenta não apenas o dinamismo da economia norte-americana, mas também sua influência diplomática, militar e normativa. Ao longo das últimas décadas, esse arranjo garantiu aos EUA um centro gravitacional no comércio internacional, nas cadeias de suprimento e nas instituições multilaterais.

Contudo, sinais de desgaste se acumulam. O uso do dólar como ferramenta de punição — por meio de sanções unilaterais, congelamento de reservas e bloqueios transacionais — ampliou o ceticismo entre países emergentes e acelerou esforços por alternativas monetárias, especialmente no Sul Global. Iniciativas de desdolarização vêm sendo promovidas por coalizões como os BRICS, que buscam reformar a arquitetura financeira internacional com base em princípios de multipolaridade, soberania econômica e autonomia regional. Ao mesmo tempo, o avanço das moedas digitais de bancos centrais, os ajustes nas rotas comerciais e o declínio relativo da economia americana diante da ascensão da China e da Ásia alimentam a hipótese de um novo equilíbrio de poder.
Este artigo examina como o dólar se tornou o eixo da ordem monetária internacional, analisa os instrumentos — financeiros, diplomáticos e militares — que sustentam sua primazia, e discute os custos e assimetrias desse sistema. Em seguida, investiga os desafios contemporâneos à hegemonia monetária dos EUA, com ênfase nas estratégias de desdolarização e nas propostas dos BRICS por uma arquitetura mais inclusiva e menos centrada no Ocidente. Por fim, refletimos sobre os possíveis cenários de transição e as implicações sistêmicas de uma eventual erosão da centralidade do dólar na economia mundial.
A Ascensão do Dólar como Elemento de Poder no Sistema Internacional
A consolidação do dólar como a principal moeda internacional é resultado de uma combinação estratégica entre poder econômico, redes financeiras, capacidade militar e diplomacia ativa por parte dos Estados Unidos. Longe de ser um processo espontâneo guiado apenas por decisões de mercado, a hegemonia do dólar foi moldada por decisões políticas deliberadas, particularmente durante e após a Segunda Guerra Mundial (Metri, 2015).
Antes da Primeira Guerra Mundial, a moeda dominante no sistema internacional era a libra esterlina, reflexo do império britânico e de Londres como centro financeiro mundial. O dólar, embora já refletisse a pujança industrial dos Estados Unidos, ainda era considerado periférico. A virada ocorreu com a crise do padrão-ouro e a ascensão dos EUA como credor internacional — especialmente após o financiamento massivo das potências europeias durante os conflitos mundiais (Gluschenko, 2024).
Nas palavras de Gluschenko (2024, p. 3), “a Primeira Guerra Mundial transformou o dólar de uma moeda periférica em uma das principais reservas internacionais”. Durante a guerra, os Estados Unidos acumularam reservas de ouro e tornaram-se o centro de liquidez da economia mundial, preparando o terreno para a nova arquitetura que emergiria em Bretton Woods.
Bretton Woods e a fundação da ordem do dólar
Em 1944, a Conferência de Bretton Woods formalizou a centralidade do dólar, ancorado ao ouro e convertido na única moeda com convertibilidade fixa. O sistema estabelecido garantiu aos EUA o controle indireto sobre fluxos de capital e comércio internacional. Como destacam Nelson e Weiss (2022), “a partir de Bretton Woods, o dólar passou a ser a principal reserva cambial e a moeda preferida para liquidação de transações internacionais”.

Essa primazia foi acompanhada por um processo de institucionalização da hegemonia monetária dos Estados Unidos, com a criação de instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), consolidando um arranjo no qual segurança e finanças internacionais passaram a caminhar lado a lado (Dailami e Masson, 2009). Com o colapso do padrão ouro em 1971, o sistema transitou para uma ordem fiduciária centrada no dólar, agora desvinculado de qualquer lastro metálico. Isso ampliou significativamente a margem de manobra dos EUA, que passaram a emitir a moeda utilizada no comércio, nas reservas cambiais e nas finanças internacionais, sem a necessidade de lastro em ouro. Na prática, os Estados Unidos podem financiar seus déficits por meio da simples emissão de dólares — cuja demanda permanece alta —, enquanto os efeitos dessa política monetária são absorvidos, direta ou indiretamente, pelo restante do mundo.
Os pilares contemporâneos da hegemonia do dólar
Segundo relatório do Congresso dos EUA, o dólar responde por cerca de 60% das reservas internacionais dos bancos centrais, participa de 90% das transações no mercado de câmbio e é utilizado em aproximadamente metade do comércio internacional (Nelson e Weiss, 2022). O papel do dólar não se limita a reservas: ele atua como moeda de faturamento de exportações, moeda de denominação de dívidas soberanas e ativo seguro global em tempos de crise (Fried, 2023).
A figura abaixo sintetiza os principais usos internacionais do dólar na atualidade:
Quadro 1 – Usos internacionais do dólar (dados mais recentes)
Função | Participação do Dólar |
---|---|
Dívida internacional emitida em dólar | ~50% |
Reservas internacionais | ~60% |
Transações cambiais | ~90% |
Comércio internacional (invoicing) | ~50% |
Esse domínio se retroalimenta por meio de efeitos de rede: quanto maior o número de países que utilizam o dólar, maior é o incentivo para que outros também o adotem, ampliando a liquidez, a previsibilidade e os ganhos de escala desse sistema (Fried, 2023).
Contudo, como argumenta Christopher Waller (2024), membro do Federal Reserve, “o dólar domina como unidade de conta, meio de troca e reserva de valor — e isso não se deve apenas ao passado, mas aos fundamentos institucionais e geopolíticos que ainda sustentam sua posição”.
Hegemonia Monetária dos EUA
A primazia internacional do dólar não é apenas um fenômeno técnico: ela representa uma fonte concreta de poder e vantagem estratégica para os Estados Unidos. Ao controlar a moeda de referência do sistema internacional, os EUA desfrutam de uma série de benefícios econômicos, financeiros e geopolíticos que os diferenciam de qualquer outro país. Tais benefícios estão diretamente associados ao que Charles de Gaulle, ainda nos anos 1960, chamou de “privilégio exorbitante”.
- Financiamento barato e endividamento sustentável
O mais evidente dos benefícios é a capacidade dos Estados Unidos de financiar déficits fiscais e em transações correntes de forma contínua e a baixo custo. Como a maior parte das transações financeiras e comerciais do mundo é realizada em dólar, há uma demanda permanente por ativos denominados nessa moeda — especialmente os títulos do Tesouro dos EUA, considerados seguros e altamente líquidos.
Segundo o relatório da Library of Congress (Nelson e Weiss, 2022), “a forte demanda global por dólares permite aos Estados Unidos tomarem empréstimos a taxas de juros mais baixas do que enfrentariam em qualquer outro cenário monetário”. Isso significa que o governo norte-americano, empresas e cidadãos podem se endividar em sua própria moeda sem correr os riscos cambiais que afetam outros países.
Como observa Daniel Fried, do Congressional Budget Office, “essa vantagem contribuiu para déficits comerciais persistentes e expansão do crédito doméstico” (Fried, 2023, p. 14). Ainda que os EUA sejam estruturalmente deficitários em sua balança de pagamentos, esse desequilíbrio é absorvido sem gerar crises de confiança, uma vez que os credores internacionais continuam demandando dólares como reserva de valor.
- Redução de riscos cambiais e de transação
Outro benefício central é o fato de que o comércio internacional, os fluxos de capital e os mercados financeiros operam amplamente em dólar. Isso reduz os custos de conversão cambial para empresas norte-americanas e praticamente elimina o risco de desvalorização da moeda em contratos internacionais.
Como sintetiza Belluzzo (2005), os EUA “submetem o restante do sistema ao ônus de seus próprios desequilíbrios macroeconômicos”, pois os demais países precisam acumular reservas em dólar para se proteger de flutuações cambiais ou choques externos, enquanto os EUA mantêm sua autonomia de política monetária e fiscal.
- Poder político e diplomático
Talvez o benefício mais estratégico da hegemonia do dólar seja o controle indireto que os EUA exercem sobre o sistema financeiro internacional. Ao controlar o acesso à moeda mais utilizada mundialmente, os EUA também controlam os canais pelos quais transações transfronteiriças são liquidadas — e, com isso, conseguem impor sanções financeiras que excluem países, empresas ou indivíduos do sistema internacional de pagamentos.
O caso da Rússia, cujas reservas internacionais foram congeladas por países ocidentais em 2022 após a invasão da Ucrânia, é um exemplo emblemático. Como observa Weiss (2022), “o uso de sanções financeiras com base no dólar revelou o grau de dependência de muitos países e expôs os riscos geopolíticos de manter reservas em ativos norte-americanos”.

Para aliados próximos, manter reservas em dólar também pode ser interpretado como um gesto de alinhamento estratégico. Weiss (2022, p. 3) calcula que “cerca de 75% das reservas em dólares estão nas mãos de países com alianças militares com os EUA”, demonstrando que a moeda também opera como instrumento de coesão e influência geopolítica.
Esses múltiplos benefícios explicam por que os EUA têm tanto interesse em preservar a centralidade de sua moeda — e por que movimentos que questionam essa hegemonia são vistos como ameaças estratégicas. No entanto, como veremos a seguir, o domínio do dólar também tem seus custos e alimenta um sistema com profundas assimetrias e vulnerabilidades.
Críticas e Custos da Hegemonia do Dólar
Embora os Estados Unidos colham amplos benefícios com a centralidade do dólar, a hegemonia monetária norte-americana também impõe custos significativos — tanto para a própria economia dos EUA quanto, sobretudo, para os demais países. Esses custos estão no centro das críticas que vêm se intensificando, especialmente após o uso político da moeda em sanções, o agravamento dos desequilíbrios e o aprofundamento das assimetrias na governança financeira internacional, em particular por não aceitarem a reforma do regime monetário internacional.
- Um sistema assimétrico e instável
A crítica mais recorrente ao sistema dolarizado é sua natureza estruturalmente assimétrica. Como apontam Belluzzo e outros analistas da economia política internacional, a estabilidade monetária internacional depende da emissão constante de dólares para atender à demanda internacional por liquidez (Belluzzo, 2005). Isso, por sua vez, exige que os EUA mantenham déficits sistemáticos, exportando moeda em troca de bens, capitais e serviços — algo que nenhum outro país pode fazer sem enfrentar desvalorização cambial e perda de reservas.
Esse arranjo implica um risco conhecido como o “dilema de Triffin”: para que o mundo disponha de liquidez suficiente, o emissor da moeda global precisa estar em déficit; porém, quanto mais cresce esse déficit, maior o risco de perda de confiança na moeda. Como sintetiza Belluzzo (2005, p. 226), “o dólar funciona como eixo de articulação da economia mundial às custas de crescentes desequilíbrios globais”.
Além disso, o sistema é instável porque concentra a autoridade monetária em uma única nação, cujas prioridades domésticas nem sempre coincidem com os interesses do restante do mundo. A política monetária do Federal Reserve, por exemplo, afeta diretamente as condições financeiras de dezenas de países, sem que estes tenham qualquer representação formal nos processos decisórios.
O risco político e a perda de confiança
Com o uso crescente do dólar como instrumento de sanções unilaterais — como nos casos do Irã, Venezuela, Afeganistão e, mais recentemente, Rússia — países fora do eixo ocidental passaram a questionar a neutralidade do sistema financeiro internacional. O congelamento de ativos soberanos, o bloqueio de transações via SWIFT e a proibição de uso de instituições financeiras ocidentais revelaram o grau de vulnerabilidade das reservas em dólar quando há fricções geopolíticas.
Colin Weiss, em estudo publicado pelo Federal Reserve, destaca que “o congelamento dos ativos russos em 2022 trouxe à tona a dimensão geopolítica da gestão de reservas internacionais e acelerou os debates sobre alternativas ao dólar” (Weiss, 2022, p. 1). Mesmo aliados históricos passaram a demonstrar cautela quanto à concentração excessiva de seus ativos em moeda norte-americana.
Impactos sobre os países em desenvolvimento
Para países da periferia do sistema, a dominância do dólar amplifica a exposição a choques externos. A dívida externa majoritariamente denominada em dólares implica riscos cambiais severos em contextos de desvalorização das moedas locais. Além disso, crises financeiras nos EUA — como a de 2008 — se propagam rapidamente, pois afetam diretamente os fluxos de crédito, os preços dos ativos e o custo do financiamento mundial.
Fried (2023) observa que “a volatilidade dos ativos em dólar, somada à dominância nos mercados financeiros, gera transferências de riqueza em momentos de crise, aprofundando desigualdades e instabilidades regionais” (p. 21). Em outras palavras, o sistema favorece fluxos regressivos de capitais e torna os países em desenvolvimento altamente dependentes das políticas adotadas em Washington.
Essas críticas têm impulsionado uma série de iniciativas em busca de alternativas, tanto institucionais quanto tecnológicas. A seguir, examinamos as estratégias de desdolarização lideradas por blocos como os BRICS, que visam desafiar a ordem monetária centrada no dólar e propor caminhos para uma governança financeira mais equilibrada e multipolar.
Alternativa ao Dólar
Diante das críticas à hegemonia do dólar e da crescente fragmentação da ordem internacional, diversas iniciativas têm buscado promover alternativas ao sistema monetário centrado nos Estados Unidos. À frente desse movimento estão os BRICS — Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul — que, ao lado de novos membros e parceiros estratégicos, articulam propostas para reformar a arquitetura financeira internacional e reduzir a dependência do dólar.
A desdolarização como estratégia política e econômica
A desdolarização — termo usado para descrever políticas destinadas a reduzir o uso do dólar em reservas, comércio e investimentos — tornou-se uma estratégia explícita para vários países nos últimos anos. Rússia e China são os principais expoentes desse movimento, buscando transacionar crescentemente em moedas locais, criar mecanismos próprios de compensação e fortalecer acordos bilaterais fora da órbita do SWIFT e do sistema financeiro ocidental.
Segundo Dailami e Masson (2009), “o avanço dos BRICS representa a principal força por trás da transformação de um sistema monetário unipolar para um modelo multipolar, onde diferentes moedas possam exercer papéis regionais ou funcionais complementares” (p. 2).
Além de acordos bilaterais de liquidação em yuan, rúpia ou rublo, alguns países passaram a acumular reservas em ouro ou outras moedas que não o dólar. A China, por exemplo, promove ativamente a internacionalização do renminbi por meio de zonas francas, emissão de títulos denominados em RMB e mecanismos de financiamento atrelados à sua política externa, como a Belt and Road Initiative (Fried, 2023).
Propostas para uma nova moeda dos BRICS
Um dos projetos mais ambiciosos em discussão é a criação de uma moeda comum dos BRICS, cujo objetivo seria facilitar transações entre os países do bloco e, eventualmente, competir com o dólar como reserva internacional. Embora o projeto esteja em estágios iniciais, foi defendido publicamente por autoridades russas e brasileiras e aparece de forma recorrente nos comunicados oficiais das cúpulas do grupo.

A proposta, no entanto, enfrenta obstáculos técnicos e políticos importantes. As assimetrias entre os membros — em termos de estrutura econômica, política monetária e integração cambial — dificultam a criação de uma moeda comum nos moldes do euro. Além disso, a ausência de confiança mútua plena e a baixa convertibilidade de algumas moedas locais limitam o potencial de adoção ampla em curto prazo (Waller, 2024).
Contudo, mesmo sem uma moeda única, os BRICS têm avançado em direções estratégicas complementares:
- Criação de bancos multilaterais próprios, como o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), sediado em Xangai.
- Acordos de troca de moedas locais (currency swaps) para reduzir exposição cambial.
- Propostas de sistemas de pagamentos independentes, como alternativas ao SWIFT.
A multipolaridade como horizonte
A principal meta dos BRICS, nesse contexto, não é necessariamente substituir o dólar de forma abrupta, mas equilibrar sua dominância e promover um sistema mais multipolar. Como destacam Dailami e Masson (2009), “a nova configuração tende a ser regionalizada, com moedas como o euro, o yuan e até o real desempenhando papéis estratégicos em esferas específicas da economia mundial” (p. 3).
Esse processo de diversificação monetária — embora lento e repleto de resistências — já começou a produzir efeitos. Dados recentes apontam uma redução gradual na participação do dólar nas reservas internacionais e um crescimento, ainda que tímido, da fatia do yuan (Weiss, 2022; Fried, 2023).
Futuro da Ordem Monetária Internacional
O cenário internacional atual aponta para um processo gradual de transição na ordem monetária internacional. A hegemonia do dólar, embora ainda sólida, encontra-se sob pressão crescente em múltiplas frentes: rivalidades geopolíticas, mudanças tecnológicas, busca por maior soberania monetária no Sul Global e transformações nas dinâmicas do comércio internacional. A pergunta central não é se o dólar perderá seu papel central, mas sim em que medida e sob quais configurações isso ocorrerá.
A persistência da hegemonia e os limites da ruptura
Apesar das críticas e alternativas emergentes, o dólar ainda permanece sem um substituto de mesma escala. Como destaca Waller (2024), “o dólar continua dominante nas três dimensões que definem uma moeda internacional: meio de troca, unidade de conta e reserva de valor”. A profundidade dos mercados financeiros dos EUA, a liquidez dos títulos do Tesouro, o ambiente jurídico previsível e o poder militar continuam sendo pilares que sustentam a confiança na moeda norte-americana.
Ademais, a alternativa mais próxima — o yuan chinês — enfrenta obstáculos significativos, como a não conversibilidade plena, os controles de capital e as incertezas sobre o sistema político chinês (Fried, 2023). O euro, embora amplamente utilizado, está limitado pela falta de uma união fiscal e pela fragmentação política da União Europeia.

Em termos de reservas internacionais, o dólar ainda detém cerca de 60% da composição total, enquanto o yuan responde por apenas cerca de 2% (Weiss, 2022). Isso indica que, mesmo em cenários de diversificação, a substituição estrutural da moeda norte-americana tende a ocorrer de forma lenta e parcial.
Novas tecnologias e a disputa pela infraestrutura monetária
Um vetor potencial de transformação profunda reside na revolução tecnológica no setor financeiro. As moedas digitais de bancos centrais (CBDCs), o uso de blockchain para pagamentos transfronteiriços e sistemas de liquidação descentralizados têm o potencial de redesenhar a infraestrutura sobre a qual se constrói o poder monetário dos EUA.
A China está na vanguarda dessa transformação, com o e-CNY já em fase avançada de testes domésticos e integração parcial a projetos como a Belt and Road Initiative. Ainda que não haja garantias de que o renminbi digital se tornará uma moeda internacional relevante, o simples fato de reduzir a intermediação por bancos ocidentais já constitui um desafio ao dólar.
Além disso, coalizões como os BRICS e outros fóruns regionais discutem o uso de tecnologias emergentes para criar plataformas próprias de pagamentos, menos dependentes do sistema bancário tradicional e dos mecanismos regulados pelo Ocidente, como o SWIFT.
Os caminhos possíveis: três cenários
Com base nos estudos revisados, é possível delinear três cenários principais para o futuro da ordem monetária internacional:
Continuidade com erosão gradual
O dólar continua dominante, mas com perda de espaço relativa para moedas regionais e ativos alternativos. A confiança se mantém, mas o sistema torna-se mais híbrido e segmentado.
Multipolaridade assimétrica
Consolida-se um sistema com três ou quatro moedas relevantes (dólar, euro, yuan, possivelmente uma moeda dos BRICS), cada uma com influência regional ou funcional. Não há hegemonia única, mas tampouco simetria plena.
Ruptura e fragmentação
Crises geopolíticas ou financeiras profundas levam à perda acelerada de confiança no dólar, com formação de blocos monetários rivais e possível instabilidade sistêmica.
Entre esses cenários, o mais plausível no curto e médio prazo é o da multipolaridade assimétrica, com o dólar ainda no centro, mas cada vez mais contestado por coalizões como os BRICS, zonas monetárias regionais e soluções digitais autônomas.
Conclusão
A centralidade do dólar no sistema monetário internacional é, ao mesmo tempo, um reflexo e um instrumento do poder dos Estados Unidos. Mais do que uma simples unidade de conta ou meio de troca, a moeda norte-americana sustenta uma infraestrutura internacional que interliga finanças, comércio, diplomacia e segurança internacional. Desde Bretton Woods até o presente, o dólar moldou a arquitetura da globalização sob parâmetros definidos por Washington — com benefícios desproporcionais, mas também com efeitos assimétricos e desequilíbrios estruturais.
Contudo, essa hegemonia não é estática nem inquestionável. A partir das transformações econômicas e políticas do século XXI — como a ascensão da China, o avanço tecnológico, a intensificação das sanções unilaterais e a busca por autonomia no Sul Global — cresce a contestação à ordem monetária centrada no dólar. A estratégia de desdolarização encabeçada por atores como os BRICS evidencia não apenas uma insatisfação com as assimetrias do sistema atual, mas também a tentativa de construir alternativas multilaterais, regionais e digitais mais adaptadas à multipolaridade emergente.
Ainda que a substituição do dólar como principal moeda internacional seja improvável no curto prazo, o cenário de transição para uma ordem mais fragmentada e distribuída já está em curso. A convergência entre inovação tecnológica, reorganização das cadeias de valor e realinhamentos geopolíticos desafia a estabilidade do modelo atual e coloca em pauta o debate sobre a governança monetária do século XXI.
O futuro da ordem monetária internacional não será definido apenas por taxas de juros, reservas cambiais ou liquidez de mercados — mas, sobretudo, por disputas políticas em torno da legitimidade, da soberania e da capacidade de definir as regras do jogo global. Nesse contexto, a moeda continua a ser uma extensão do poder: quem a controla, molda o mundo.
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Analista de Relações Internacionais, organizador do Congresso de Relações Internacionais e editor da Revista Relações Exteriores. Professor, Palestrante e Empreendedor. Contato profissional: guilherme.bueno(a)esri.net.br