Curso de Geopolítica do Oriente Médio
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O Estreito de Ormuz e o Dilema Iraniano: Entre o Isolamento e a Retaliação
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O Estreito de Ormuz e o Dilema Iraniano: Entre o Isolamento e a Retaliação

"Oil tanker in South Portland" by nightthree is licensed under CC BY 2.0

O Estreito de Ormuz é um dos pontos mais sensíveis e estratégicos da geopolítica mundial. Localizado entre o Irã, Omã e os Emirados Árabes Unidos, esse corredor marítimo estreito — com apenas 33 km em seu ponto mais estreito — funciona como elo vital entre o Golfo Pérsico e o Oceano Índico. Cerca de 20% de todo o petróleo consumido no mundo e mais de um terço do gás natural liquefeito (GNL) transitam diariamente por essa rota, o que torna sua estabilidade fundamental para a segurança energética internacional.

Em 2025, o Estreito de Ormuz voltou ao centro das atenções após o bombardeio de instalações nucleares iranianas por parte dos Estados Unidos, em operação coordenada com Israel. A retaliação iraniana, ainda em curso, incluiu uma medida legislativa simbólica no parlamento que propôs o fechamento do estreito — uma ameaça que, embora recorrente ao longo das últimas décadas, nunca havia sido aprovada formalmente. A escalada militar reacendeu temores de um bloqueio, com potencial para provocar uma crise energética mundial, desorganizar cadeias logísticas e inflamar os já voláteis equilíbrios regionais.

Mais do que uma simples passagem marítima, Ormuz representa um verdadeiro chokepoint do sistema internacional — conceito geopolítico que combina fatores geográficos, jurídicos e funcionais. Seu controle ou bloqueio pode gerar efeitos imediatos em mercados financeiros, elevar os custos do petróleo, provocar tensões diplomáticas e forçar reposicionamentos estratégicos das principais potências. O que está em jogo não é apenas a segurança regional do Oriente Médio, mas a própria arquitetura de segurança energética mundial e a estabilidade de rotas comerciais essenciais para economias dependentes de hidrocarbonetos.

Neste artigo, analisamos os múltiplos significados do Estreito de Ormuz, combinando elementos históricos, estratégicos e conjunturais. A partir do conceito de chokepoints, da teoria do Complexo Regional de Segurança e das disputas entre Irã, Estados Unidos, China e demais atores regionais, buscamos compreender por que o Estreito continua sendo um termômetro da ordem internacional — e um epicentro potencial de novos confrontos.

Tensões entre Irã, Estados Unidos e Israel

A tensão geopolítica no Estreito de Ormuz atingiu um novo patamar em junho de 2025, após os Estados Unidos, sob a liderança do presidente Donald Trump, realizarem ataques coordenados contra três instalações nucleares no território iraniano. A operação, considerada a maior ofensiva militar ocidental contra o Irã desde a Revolução Islâmica de 1979, teve apoio explícito de Israel, consolidando uma frente agressiva contra a República Islâmica. A resposta iraniana ainda está em construção, mas uma das primeiras reações institucionais foi a aprovação, pelo parlamento iraniano, de uma medida que propõe o fechamento do Estreito de Ormuz ao tráfego internacional.

Embora a decisão final sobre a implementação do bloqueio dependa do Conselho Supremo de Segurança Nacional do Irã — e, em última instância, do líder supremo, aiatolá Ali Khamenei — a iniciativa legislativa tem peso simbólico e estratégico. O ministro das Relações Exteriores iraniano classificou o ataque dos EUA como um ato de guerra com “consequências duradouras”, sugerindo uma retaliação assimétrica, de longo prazo, que pode incluir ações militares limitadas, ataques cibernéticos, apoio a grupos aliados na região e, mais diretamente, a ameaça à navegação no Golfo Pérsico.

Historicamente, o Irã tem utilizado o estreito como ferramenta de dissuasão estratégica. Desde os anos 1980, especialmente durante a Guerra Irã-Iraque, Teerã desenvolveu uma retórica de que poderia interromper o tráfego no Estreito de Ormuz como resposta a pressões externas, particularmente sanções econômicas ou ações militares. Essa ameaça tornou-se mais concreta com a modernização da capacidade militar iraniana, especialmente em termos de guerra naval assimétrica, uso de minas marítimas, submarinos de pequeno porte, mísseis antinavio e veículos aéreos não tripulados (drones).

O Estreito de Ormuz e o Dilema Iraniano: Entre o Isolamento e a Retaliação
Kingdom of Ormuz” by AbdurRahman AbdulMoneim is licensed under CC BY-SA 4.0

Em 2025, porém, o contexto internacional é ainda mais delicado. A ofensiva americana e israelense ocorre num cenário de extrema fragmentação regional, com conflitos ativos na Síria, Iêmen e Gaza, e com o colapso do governo Assad na Síria alterando o equilíbrio tradicional entre os aliados do Irã. Além disso, a aproximação estratégica entre Israel e países do Golfo — como Emirados Árabes Unidos e Bahrein, consagrada pelos Acordos de Abraão — deixa o Irã ainda mais isolado, tornando o controle do Estreito uma das poucas ferramentas geoestratégicas de peso restantes.

Outro fator central é o papel dos Estados Unidos, cuja Quinta Frota Naval, sediada no Bahrein, continua a patrulhar a região com o objetivo declarado de garantir a liberdade de navegação. Autoridades americanas afirmaram publicamente que qualquer tentativa de bloqueio do Estreito de Ormuz será respondida com força. A retórica oficial, no entanto, convive com preocupações domésticas, como os efeitos que uma escalada militar pode ter sobre os preços da gasolina e a inflação — elementos que influenciam diretamente a política interna norte-americana.

A posição de Israel também deve ser analisada com cautela. Ao agir diretamente contra o Irã, Tel Aviv reforça sua postura de ataque preventivo (preventive strike), justificada por ameaças existenciais. No entanto, ao participar de ataques com potencial para desestabilizar as rotas energéticas internacionais, Israel corre o risco de afetar seus próprios interesses e alianças recentes com países árabes exportadores de petróleo. A complexidade do tabuleiro faz com que mesmo aliados tradicionais se posicionem com prudência.

Do ponto de vista diplomático, a reação internacional foi imediata. A China, maior compradora de petróleo iraniano e altamente dependente da segurança no Golfo, expressou preocupação e pediu contenção, temendo que uma escalada comprometa sua segurança energética e seus investimentos na região. A União Europeia, por sua vez, instou todas as partes a evitar ações unilaterais que coloquem em risco a estabilidade regional.

O contexto atual mostra que o Estreito de Ormuz, longe de ser apenas uma ameaça retórica, tornou-se um símbolo real da fragilidade do equilíbrio regional. Seu fechamento, ainda improvável, não pode ser descartado como instrumento de dissuasão em um jogo de múltiplos vetores: militar, energético, diplomático e econômico. Ao mesmo tempo, é também um risco calculado, pois qualquer movimento iraniano mais agressivo poderá desencadear uma resposta avassaladora, não apenas dos Estados Unidos, mas também de potências com interesses diretos na manutenção do fluxo de petróleo e gás, como China, Japão, Coreia do Sul e Índia.

Capacidade Técnica de Bloqueio

A ameaça de fechamento do Estreito de Ormuz por parte do Irã é antiga, mas sua viabilidade operacional depende de capacidades técnicas específicas e do contexto geoestratégico vigente. Ainda que o bloqueio total do estreito seja improvável e arriscado, o Irã detém um conjunto de instrumentos militares e táticos que podem comprometer seriamente o tráfego marítimo e provocar efeitos significativos, ainda que de forma temporária ou localizada.

O estreito possui apenas 33 quilômetros de largura em seu ponto mais estreito, com corredores de navegação de apenas 3 km em cada sentido. Isso o torna altamente vulnerável a interferências, acidentes ou ações hostis. Segundo o International Institute for Strategic Studies (IISS), o Irã dispõe de um aparato de guerra naval assimétrica, com destaque para:

  • Minas marítimas de contato e detecção magnética (como a EM-52 de origem chinesa), capazes de danificar ou afundar grandes embarcações;
  • Submarinos de pequeno porte da classe Ghadir e três submarinos russos da classe Kilo, silenciosos e aptos à minagem clandestina;
  • Lanchas rápidas de ataque do Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica (IRGC), armadas com mísseis leves e capazes de realizar ataques relâmpago a petroleiros;
  • Mísseis costeiros antinavio, com alcance suficiente para atingir embarcações em trânsito nos corredores principais;
  • Veículos aéreos não tripulados (drones) e aeronaves de reconhecimento, utilizados tanto para vigilância quanto para operações ofensivas pontuais.

Apesar desse arsenal, um bloqueio completo do estreito exigiria uma ação coordenada, veloz e de alta complexidade técnica, além de se sustentar sob o risco de uma retaliação militar avassaladora. Especialistas apontam que a colocação de minas exige tempo e discrição, e que qualquer movimento detectado pelas frotas norte-americanas ou aliadas seria rapidamente neutralizado.

Além disso, a remoção de minas em ambiente hostil é extremamente difícil e demorada. Durante a Guerra do Golfo de 1991, duas embarcações da Marinha dos EUA — o USS Tripoli e o USS Princeton — foram severamente danificadas por minas em circunstâncias similares. Desde então, os Estados Unidos mantêm capacidades significativas de guerra de minas e patrulhamento contínuo na região, especialmente por meio da sua Quinta Frota.

Nesse sentido, é mais provável que o Irã opte por estratégias de disrupção parcial e temporária, como o assédio pontual a embarcações comerciais ou militares, ataques a navios específicos ou ameaças veladas de minagem. Essa abordagem permite que o país aumente a tensão internacional, eleve os custos do seguro e do transporte marítimo e provoque aumento dos preços do petróleosem necessariamente escalar o conflito para um enfrentamento militar direto e de alto custo.

Há ainda a possibilidade de incidentes de falsa bandeira, sabotagens e obstruções jurídicas ou administrativas ao tráfego de navios — recursos que integram o repertório iraniano desde episódios como o sequestro de navios-tanque em 2019 e 2021. Essas ações são eficazes como instrumentos de pressão política e econômica, e dificultam a formação de consenso internacional para uma resposta armada coordenada.

No entanto, a execução de qualquer forma de bloqueio, mesmo parcial, carrega consigo o risco de perda de legitimidade internacional, danos severos à própria economia iraniana — altamente dependente das exportações via Ormuz — e a possibilidade concreta de transformar a dissuasão em um conflito de grande escala. Como apontou Andrew Bishop, analista da Signum Global Advisors, a “melhor estratégia iraniana seria apenas balançar o fluxo de petróleo o suficiente para gerar impacto, mas sem provocar uma resposta militar total”.

Dessa forma, a ameaça ao Estreito de Ormuz deve ser compreendida como parte de uma lógica de guerra híbrida e de sinalização estratégica, mais do que como um plano tático de interdição permanente. Ainda assim, o simples fato de o Irã dispor dos meios necessários para implementar bloqueios parciais já é suficiente para manter o mundo em estado de alerta, especialmente em períodos de escalada como o atual.

Impactos Imediatos no Comércio e na Segurança Energética

A possibilidade de um bloqueio — ainda que parcial — do Estreito de Ormuz tem efeitos quase imediatos nos mercados internacionais. Considerado o mais importante chokepoint energético do planeta, Ormuz é responsável pela passagem de cerca de 20 milhões de barris de petróleo por dia, volume que representa aproximadamente 20% da produção mundial e quase um terço de todo o petróleo transportado por via marítima. Além disso, pelo menos 20% das exportações globais de gás natural liquefeito (GNL) também utilizam essa rota, com destaque para os embarques vindos do Qatar, um dos maiores produtores mundiais.

Em um cenário de bloqueio ou ameaça real de fechamento, os mercados reagem com alta imediata no preço do petróleo, aumento do custo dos fretes marítimos e elevação dos prêmios de seguro para a navegação na região. Em junho de 2025, apenas com a aprovação simbólica da medida no parlamento iraniano, os preços do petróleo Brent subiram cerca de 10% em uma semana, chegando a ultrapassar a marca de US$ 100 por barril, segundo projeções da S&P Global Commodity Insights.

Os efeitos não se limitam ao setor energético. Um bloqueio em Ormuz interromperia a exportação de petróleo e gás dos cinco principais membros da OPEP no Golfo (Arábia Saudita, Irã, Kuwait, Emirados Árabes Unidos e Iraque), impactando diretamente os mercados da Ásia, Europa e América do Norte. A China, maior importadora mundial de petróleo, seria uma das mais prejudicadas — cerca de 90% do petróleo iraniano exportado vai para o mercado chinês, além de grande parte dos embarques sauditas e emiradenses também passarem por Ormuz.

Europa, por sua vez, depende do GNL qatari como parte de sua estratégia de diversificação energética após a guerra na Ucrânia. Cerca de 20% do GNL global passa pelo estreito, com destaque para os embarques destinados a países europeus via terminais na Espanha, Itália e Bélgica. Um bloqueio limitaria gravemente esse abastecimento.

A escassez provocada por um fechamento de Ormuz não poderia ser compensada por outras rotas com facilidade. Ainda que existam oleodutos alternativos na Arábia Saudita e nos Emirados Árabes Unidos — como o oleoduto East-West, que liga Abqaiq a Yanbu no Mar Vermelho, e o oleoduto Habshan–Fujairah —, a capacidade total dessas rotas alternativas não ultrapassa 2,6 milhões de barris por dia, ou seja, apenas cerca de 13% da produção regional.

Diante desse quadro, é possível projetar:

  • Alta mundial nos preços da energia e consequente impacto inflacionário, sobretudo nos países mais dependentes de combustíveis fósseis;
  • Interrupção nas cadeias logísticas globais, afetando o comércio de insumos industriais e produtos petroquímicos;
  • Tensões políticas entre exportadores e importadores, com possibilidade de realinhamentos estratégicos;
  • Pressão sobre reservas estratégicas de petróleo (SPR) em países como Estados Unidos, Japão e Índia, como forma de mitigar a crise no curto prazo;
  • Aumento da militarização das rotas marítimas, com intensificação das patrulhas navais e possível internacionalização do controle de corredores estratégicos.

Vale destacar que, mesmo sem um bloqueio físico, o simples aumento da percepção de risco já é suficiente para gerar volatilidade nos mercados. Os superpetroleiros — que carregam milhões de barris de petróleo em cada viagem — passam a evitar a região, redirecionando rotas ou atrasando embarques. Em junho de 2025, relatos confirmaram que diversas embarcações realizaram manobras de retorno (U-turns) no meio do estreito, aguardando maior segurança antes de prosseguir.

Portanto, o impacto da crise não depende exclusivamente da execução militar do bloqueio, mas da combinação entre ameaça crível, resposta internacional e vulnerabilidades logísticas do sistema energético global. A importância sistêmica de Ormuz revela-se justamente em sua capacidade de provocar instabilidade mundial mesmo em cenários de conflito limitado — e isso faz do estreito não apenas uma via de transporte, mas um símbolo do grau de fragilidade e interdependência da economia internacional contemporânea.

A Ameaça como Dilema Estratégico

Embora a ameaça de fechamento do Estreito de Ormuz seja uma das cartas mais poderosas no arsenal diplomático e militar do Irã, sua efetivação envolveria altos custos econômicos, riscos militares severos e consequências políticas imprevisíveis para o próprio regime iraniano. Trata-se de um dilema estratégico clássico: quanto mais crível a ameaça, maior a pressão internacional; mas, se implementada, ela pode desencadear efeitos adversos irreversíveis para o próprio ator que a executa.

O primeiro impacto direto recairia sobre a economia iraniana, que depende fortemente das exportações de petróleo. Mais de 90% do petróleo bruto iraniano é exportado via Ormuz, e mesmo em meio a sanções internacionais, a China e outros compradores asiáticos continuam sendo mercados cruciais para Teerã. Ao fechar o estreito, o Irã interromperia seu próprio principal canal de receita, agravando ainda mais uma economia já debilitada por décadas de sanções, inflação estrutural e isolamento financeiro.

Além disso, um bloqueio efetivo alienaria seus vizinhos do Golfo — como Emirados Árabes Unidos, Kuwait e Catar — que também exportam a totalidade ou a maior parte de seu petróleo por essa via. Ameaçar a segurança energética de países árabes moderados, especialmente após os Acordos de Abraão e a reaproximação regional com Israel, poderia levar à formação de uma frente regional contra o Irã, com apoio explícito dos Estados Unidos. O resultado seria um cenário de isolamento diplomático ainda mais profundo, com riscos de retaliação coletiva e militarização intensiva do Golfo Pérsico.

Outro risco estratégico é a relação com a China, hoje principal parceira comercial do Irã e seu maior comprador de petróleo. Pequim tem expressado insatisfação com qualquer instabilidade que comprometa o abastecimento energético, especialmente após sua crescente dependência do Golfo e os investimentos estratégicos na Rota da Seda Marítima. Autoridades norte-americanas, como o secretário de Estado Marco Rubio, já pressionaram a China a se envolver diretamente para dissuadir Teerã, indicando que um fechamento de Ormuz poderia romper a relação pragmática sino-iraniana e afetar projetos conjuntos na região.

Do ponto de vista militar, a superioridade convencional dos Estados Unidos na região é esmagadora. A Quinta Frota, baseada no Bahrein, dispõe de meios para neutralizar tentativas de minagem, proteger comboios e lançar contra-ataques devastadores contra infraestrutura costeira iraniana. Um bloqueio duradouro certamente provocaria uma resposta coordenada não apenas dos EUA, mas também de aliados europeus e possivelmente asiáticos, com envolvimento da OTAN e da coalizão internacional de proteção à navegação (como a EMASoH, missão naval europeia no estreito).

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Photo by Michael Afonso on Unsplash

Internamente, o regime iraniano também enfrenta desafios crescentes. Embora o nacionalismo e o sentimento antiamericano possam gerar apoio pontual à retaliação, uma escalada militar com impactos diretos na economia doméstica — como escassez de combustíveis, aumento da inflação e desemprego — poderia gerar novos protestos e instabilidade política interna. Isso enfraqueceria ainda mais a legitimidade do governo e aprofundaria as divisões entre facções moderadas e radicais dentro do regime.

Por fim, o uso de Ormuz como arma de barganha pode ter seu efeito desgastado com o tempo. Se o Irã ameaça constantemente o bloqueio, mas nunca o implementa, a credibilidade da ameaça se reduz. Se o implementa, corre o risco de desencadear uma guerra que não pode vencer. Essa ambiguidade estratégica é, paradoxalmente, tanto seu maior trunfo quanto sua principal vulnerabilidade.

Como conclui Clayton Seigle, do Center for Strategic and International Studies, “o Irã quer provocar turbulência suficiente para afetar o fluxo de petróleo, mas não a ponto de ser esmagado militarmente”. A linha entre esses dois extremos, porém, é cada vez mais tênue em um ambiente internacional volátil e sensível à menor fagulha de crise.

Alternativas e Capacidade de Mitigação

Diante da ameaça de interrupção do tráfego no Estreito de Ormuz, os principais exportadores e consumidores de hidrocarbonetos passam a avaliar suas opções logísticas de contingência. No entanto, o sistema energético internacional permanece altamente dependente da passagem segura por esse estreito, e as alternativas disponíveis — ainda que existam — são insuficientes para absorver o volume de petróleo e gás atualmente em circulação na região.

A principal rota alternativa é o oleoduto East-West (Petroline), da Arábia Saudita, que liga os campos petrolíferos de Abqaiq, próximos ao Golfo Pérsico, ao terminal portuário de Yanbu, no Mar Vermelho. Esse oleoduto pode transportar cerca de 5 milhões de barris por dia, dos quais apenas 3,8 milhões b/d estão efetivamente disponíveis, já que parte da capacidade está comprometida com a demanda interna saudita e limitações operacionais. Ainda assim, esse volume representa menos de 20% dos cerca de 20 milhões de barris que passam diariamente por Ormuz.

Outro oleoduto relevante é o Habshan–Fujairah, nos Emirados Árabes Unidos, que conecta os campos de Abu Dhabi ao terminal de Fujairah, no Golfo de Omã, permitindo evitar o tráfego por Ormuz. Contudo, sua capacidade máxima é de apenas 1,5 milhão de barris por dia — ou seja, uma fração da demanda atendida pela rota tradicional. Mesmo com investimentos na ampliação dessas infraestruturas, o sistema de oleodutos regional não é capaz de substituir Ormuz como principal via de exportação energética.

No que se refere ao transporte de GNL, a situação é ainda mais crítica. O Qatar, responsável por cerca de 20% do comércio mundialnão possui rotas terrestres alternativas viáveis. Seus embarques dependem inteiramente do trânsito seguro por Ormuz. Em um cenário de bloqueio, as exportações qataris para a Ásia e Europa seriam severamente comprometidas, e os contratos de fornecimento de longo prazo poderiam entrar em colapso, com impacto direto em mercados altamente dependentes como Japão, Coreia do Sul, Índia, Alemanha, Espanha e Itália.

Há ainda a possibilidade de liberação de reservas estratégicas por parte de grandes consumidores, como os Estados Unidos, China, Japão e países da União Europeia. Esses estoques — conhecidos como Strategic Petroleum Reserves (SPR) — foram criados justamente para lidar com choques súbitos de oferta. No entanto, eles têm função limitada no tempo, e seu uso prolongado exigiria cooperação internacional coordenada, algo politicamente difícil em um ambiente de tensões multilaterais.

Por fim, mesmo as iniciativas de segurança marítima coletiva, como a missão europeia EMASoH ou as operações lideradas pelos EUA no Golfo, têm alcance limitado em cenários de escalada regional. A proteção de centenas de navios por semana, em um corredor tão estreito e vulnerável, exigiria uma mobilização militar sem precedentes, e ainda assim não eliminaria o risco de incidentes.

Assim, a conclusão é inevitável: o mundo não está preparado para lidar com a paralisação do Estreito de Ormuz de forma eficaz e sustentável. As alternativas logísticas e operacionais existem, mas são parciais, limitadas e incapazes de substituir a rota em sua plenitude. Essa dependência estrutural é o que confere ao Estreito um papel central na arquitetura da segurança energética internacional, e reforça o seu status de chokepoint geoeconômico por excelência.

Interesses das Grandes Potências e Atores Regionais

O Estreito de Ormuz é mais do que um gargalo logístico. Ele é também um espaço onde se projetam as estratégias das potências, cada qual com interesses específicos, mas frequentemente sobrepostos — e potencialmente conflituosos. A instabilidade no estreito coloca em evidência as contradições da ordem internacional contemporânea, marcada pela interdependência econômica e pela fragmentação do poder político.

Estados Unidos

Os Estados Unidos mantêm, há décadas, presença militar constante no Golfo Pérsico, com sua Quinta Frota e ativos navais capazes de intervir rapidamente em qualquer crise. Desde a década de 1980, Washington enxerga o Estreito de Ormuz como um ponto vital para a segurança energética mundial, por extensão, para a estabilidade do sistema internacional sob liderança americana. A Doutrina Carter, formulada em 1980, já afirmava que qualquer tentativa de obstruir o fluxo de petróleo do Golfo seria tratada como uma ameaça aos interesses vitais dos EUA, justificando o uso da força.

Após os ataques a instalações nucleares iranianas e a subsequente ameaça de fechamento do estreito, Washington reiterou seu compromisso com a liberdade de navegação internacional, advertindo Teerã de que qualquer bloqueio seria respondido com “força militar total e proporcional”. No entanto, a dependência energética norte-americana da região diminuiu significativamente, graças ao crescimento da produção doméstica de shale gas e petróleo. Isso faz com que o engajamento dos EUA esteja cada vez mais associado à manutenção da ordem internacional, contenção do Irã e apoio aos aliados do Golfo e a Israel — e não apenas à proteção de seu próprio abastecimento.

China

República Popular da China é hoje o maior importador de petróleo do mundo, com cerca de 50% de suas importações passando pelo Estreito de Ormuz. Ao mesmo tempo, Pequim mantém aliança econômica com o Irã e realiza investimentos estratégicos em infraestrutura portuária e energética no Oriente Médio, no contexto da Iniciativa Cinturão e Rota. Essa ambiguidade — depender do estreito, mas ter vínculos com o país que ameaça fechá-lo — coloca a China em uma posição complexa.

Em resposta à atual crise, autoridades norte-americanas pressionaram Pequim a interceder junto a Teerã, sob o argumento de que a estabilidade da região atende tanto aos interesses ocidentais quanto aos chineses. A China, por sua vez, tem adotado uma postura de cautela e defendido a desescalada, evitando assumir papel direto no conflito. Contudo, analistas apontam que, diante de um bloqueio duradouro, Pequim poderia romper silenciosamente sua parceria com Teerã, caso essa se torne um obstáculo insustentável à segurança energética chinesa.

União Europeia 

A União Europeia, embora menos dependente do petróleo do Golfo do que China e Índia, tem buscado reafirmar sua autonomia estratégica e seu compromisso com o direito internacional, especialmente diante da erosão da ordem multilateral. A criação da EMASoH (European Maritime Awareness in the Strait of Hormuz) é um reflexo dessa postura: trata-se de uma missão europeia de vigilância naval no Golfo, voltada para garantir transparência, dissuasão e proteção à navegação comercial.

Além disso, a Europa depende significativamente das exportações de gás natural liquefeito do Qatar, que passam por Ormuz. A combinação entre interesses energéticos, diplomáticos e normativos reforça o engajamento europeu, ainda que limitado em termos militares. A UE atua, sobretudo, como mediadora diplomática e defensora do diálogo, em sintonia com sua identidade como potência normativa.

Potências regionais

Os países do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) — como Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Kuwait, Bahrein e Qatar — estão diretamente expostos aos efeitos de uma crise em Ormuz. Embora historicamente dependentes da proteção militar dos EUA, essas monarquias árabes vêm investindo em capacidades militares próprias e iniciativas de segurança coletiva, buscando equilibrar a rivalidade com o Irã com a preservação de seus mercados energéticos e reputação como fornecedores confiáveis.

Arábia Saudita, em especial, tem papel ambivalente. Ao mesmo tempo em que vê o Irã como uma ameaça estratégica — por seu programa nuclear, apoio a grupos armados e influência na Síria, Iêmen e Líbano —, também reconhece que uma guerra total seria ruinosa para os próprios sauditas, tanto política quanto economicamente. Por isso, apesar da retórica hostil, Riad tem atuado para evitar uma escalada militar direta, privilegiando a contenção e a diplomacia indireta.

Como dito, o Qatar, por sua vez, tem especial interesse na preservação do livre trânsito por Ormuz, dado que seus embarques de GNL são praticamente impossíveis de redirecionar por outras rotas. O país mantém relações relativamente boas com o Irã, e pode atuar como um canal informal de comunicação entre Teerã e os países ocidentais.

Considerações e Cenários Prováveis

A crescente tensão em torno do Estreito de Ormuz evidencia a centralidade estratégica dessa rota marítima para o equilíbrio econômico, energético e geopolítico do sistema internacional. Mais do que um corredor de petróleo e gás, Ormuz tornou-se um símbolo das vulnerabilidades estruturais da ordem mundial contemporânea, marcada pela interdependência energética, pela erosão da segurança coletiva e pelo enfraquecimento das instituições multilaterais.

As ameaças do Irã de fechar o estreito — embora até o momento não concretizadas — funcionam como um alerta de alto impacto, relembrando ao mundo o custo da fragmentação da governança internacional. Mesmo sem uma obstrução efetiva, o simples risco de interrupção no fluxo energético já é capaz de gerar reação nos mercados, deslocamentos navais e recrudescimento das alianças militares na região.

Diante do cenário atual, é possível delinear alguns caminhos prováveis:

1. Manutenção da ambiguidade estratégica com provocação controlada

É o cenário mais provável no curto prazo. O Irã continuará utilizando manobras simbólicas e ameaças calibradas, evitando cruzar linhas vermelhas que justifiquem uma intervenção militar massiva. Nesse contexto, as potências continuarão atuando com dissuasão reforçada, e os fluxos comerciais permanecerão sob tensão constante.

2. Escalada não intencional com resposta militar localizada

Uma deterioração da situação — seja por erro de cálculo, ataque acidental ou sabotagem não atribuída — pode levar a uma resposta militar pontual, com alvos táticos iranianos atacados por Israel ou EUA. Ainda que não se configure uma guerra total, esse tipo de confronto elevaria o custo da navegação e traria repercussões imediatas para os preços de energia e a estabilidade regional.

3. Mediação internacional e busca por desescalada

É o cenário menos provável, mas ainda possível diante da pressão conjunta de países como China, Índia e até da União Europeia. Dada sua dependência energética do Golfo, esses atores podem desempenhar um papel ativo nos bastidores, pressionando tanto Teerã quanto Washington e Tel Aviv por uma solução que preserve a estabilidade e os fluxos comerciais, ainda que sem resolver as causas estruturais do conflito.

4. Fechamento parcial ou simbólico do estreito

Embora improvável, não se pode descartar a possibilidade de ações limitadas que obstruam temporariamente o tráfego, como a colocação de minas ou a abordagem de embarcações comerciais. Esse tipo de gesto buscaria impacto político e midiático, com risco calculado, mas seria altamente provocativo e potencialmente desestabilizador.

Em todos esses cenários, uma conclusão se impõe: a segurança do Estreito de Ormuz não pode mais ser tratada apenas como uma questão regional ou setorial. Sua estabilidade é uma questão de interesse global, que exige cooperação entre rivais estratégicos, fortalecimento de mecanismos multilaterais de contenção e, sobretudo, uma compreensão mais profunda das assimetrias do poder contemporâneo.

O episódio atual mostra que, em tempos de redes complexas e vulnerabilidades interligadas, a paz não depende apenas da ausência de guerra, mas da capacidade de gerir incertezas com responsabilidade coletiva e inteligência estratégica.

O Estreito de Ormuz e o Dilema Iraniano: Entre o Isolamento e a Retaliação 3
Analista de Relações Internacionais at ESRI | Website |  + posts

Analista de Relações Internacionais, organizador do Congresso de Relações Internacionais e editor da Revista Relações Exteriores. Professor, Palestrante e Empreendedor. Contato profissional: guilherme.bueno(a)esri.net.br

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