“A Política Exterior do Império: as origens”, publicado pela primeira vez em 1927, tornou-se, desde aquele momento, referência para estudiosos da história brasileira e, principalmente, da história diplomática do Brasil. Como resultado de uma vasta pesquisa no acervo de documentos do Itamaraty, unida a seus amplos conhecimentos históricos, o autor, João Pandiá Calógeras (1870-1934), fornece uma análise minuciosa, de 490 páginas, dos principais acontecimentos relacionados à formação do Brasil e de sua política externa, desde os primeiros registros dos povos ibéricos, cerca de 1300 a.C., até a independência brasileira, no século XIX.
Amigo pessoal e discípulo de Capistrano de Abreu e do Barão do Rio Branco, Calógeras teve acesso, ao longo de sua vida, a dois dos maiores conhecedores do Brasil que já viveram no país. Sua formação como engenheiro, sua fé religiosa, e sua participação no governo da Primeira República, quando chegou a ser ministro em diferentes ministérios e representar o Brasil no Congresso de Versalhes, em 1918, contribuíram para dar ao intelecto de Calógeras uma multidisciplinaridade raramente encontrada em outros pensadores.
Aliados à sua disposição para o trabalho, seus conhecimentos permitiram ao autor publicar diversas obras, que iam desde a história do Brasil até as condições de exploração das minas do país, passando por questões referentes à Igreja Católica, entre outras áreas.
O livro aqui analisado é o primeiro de uma série de três, intitulada “A Política Exterior do Império”, cujos dois volumes seguintes são “O Primeiro Reinado” e “Da Regência à Queda de Rosas”. Dividido em quinze capítulos, o livro transmite uma visão do Brasil que nos faz repensar os problemas que o país enfrentou e os que ainda enfrenta, bem como a capacidade que temos para resolvê-los, reavaliando a noção de que eles foram herdados dos colonizadores e, por isso, estão profundamente enraizados em nossa cultura desde o começo de nossa história.
Em nossa análise (baseada em uma edição posterior, de 1998), abordaremos os aspectos do livro que explicam a formação do povo brasileiro, e a proeminência que o Brasil atingiu na visão de Portugal desde o século XVII, em comparação às outras colônias portuguesas ao redor do mundo. Veremos que isso se deveu, em grande parte, à maior capacidade intelectual e à altivez dos colonos instalados no Brasil, comparados tanto aos colonos portugueses de outras regiões como aos colonos vizinhos da América do Sul, provenientes da Espanha. Por fim, mostraremos como essas características possibilitaram ao Brasil fornecer contribuições valiosas ao Direito Internacional, mesmo antes de seu próprio surgimento como nação, no processo que culminou na assinatura do Tratado de Madri de 1750, sob os auspícios de Alexandre de Gusmão, analisando algumas de suas implicações para o Direito Internacional.
Formação do povo brasileiro: valores e mentalidades
A influência do meio
Os dois primeiros capítulos englobam o período anterior ao descobrimento do Brasil, discorrendo sobre a formação dos povos ibéricos, as navegações e o Tratado de Tordesilhas. É no terceiro capítulo que Calógeras passa a analisar aspectos específicos do Brasil. Ele explica que, tanto portugueses quanto espanhóis, enquanto viviam em seus respectivos países de origem, observavam determinadas normas de conduta e guiavam-se por valores morais mais ou menos claros, sob a influência das cortes aristocráticas, da Igreja Católica, e de outros componentes tradicionais de suas culturas.
Ao chegarem na América, os dois modos de colonização passaram a trilhar caminhos, em muitos aspectos, diferentes. A Espanha logo descobriu metais preciosos em suas colônias, fator que influenciou enormemente seus métodos colonizadores. Ao descobrir uma mina de ouro ou de prata, o país logo enviava para aquele ponto específico, ao redor da mina, o pessoal necessário para sua exploração, incluindo clérigos católicos e dirigentes políticos. Por não haver incentivos suficientes de deslocamento para outros lugares, eles frequentemente se fixavam ali por anos, até que a mina se exaurisse. Como resultado, não houve, entre os espanhóis, mudanças significativas de valores morais e atitudes. As relações interpessoais e de poder se mantinham praticamente intactas, os padres continuavam a conceder perdão ou exigir penitências. A única diferença é que o faziam em um local diferente.
Já no Brasil, a ausência de metais preciosos em um primeiro momento teve consequências bem diversas na formação do caráter dos colonos lusitanos. O fazendeiro, isolado na vastidão do território, tendo unicamente a si mesmo para se defender da selva, muito mais hostil que hoje, das invasões de franceses, holandeses, índios ou animais, acabou desenvolvendo um sentido mais aguçado de iniciativa própria, de julgamento, e de tomada de decisão, no que poderia significar a continuação de sua vida ou a morte no instante seguinte.
A dificuldade de acesso às primeiras capelas católicas também ajudou a moldar o caráter dos portugueses transferidos para o Brasil. Em muitos casos, demorava-se dias para que eles pudessem chegar ao padre mais próximo. O isolamento frequentemente impossibilitava a qualquer pessoa de fora saber o que ocorria nas terras do proprietário, o que, progressivamente, fez com que as prioridades na vida dos colonos passassem a ser quase que unicamente aquelas relacionadas à própria defesa, à própria sobrevivência, diminuindo a importância de se cometer qualquer tipo de pecado. Estas características, ao dar aos colonos mais ousadia, coragem, e iniciativa própria, contribuíram consideravelmente na expansão futura do território brasileiro para além do estipulado no Tratado de Tordesilhas.
Os criminosos degredados
Tornou-se comum, ao longo da história do Brasil, a crença de que muitos dos problemas que temos hoje em dia ocorrem porque os portugueses só mandaram criminosos para cá durante a colonização. Calógeras mostra, no entanto, de maneira convincente, que a influência deles na formação da sociedade brasileira foi praticamente desprezível.
À época do descobrimento do Brasil, mais de trinta crimes tinham como uma das possíveis penas, a possibilidade do degredo. Entre eles, estavam crimes tão brandos quanto envolvimento com jogos de azar, venda de produtos adulterados, e até o corte de árvores frutíferas ao longo do Rio Tejo e a matança de animais selvagens. Dentre os crimes graves que podiam ser punidos com o degredo, figuravam o assassinato, a atividade de alcoviteiros relativa à prostituição, e a manutenção de relações amorosas com membros do clero. Como admite o autor, é inegável que os degredados causaram problemas às incipientes vilas criadas no Brasil. No entanto, aqueles perigosos, vis, nunca formaram a maioria da população estabelecida no Brasil, e nem sequer a maioria dos criminosos enviados para cá, já que os crimes de homicídio e de estupro eram apenas dois, entre mais de trinta.
O número de criminosos expulsos para o Brasil também foi bem menor do que se costuma acreditar. Calógeras estima que o mais provável é que a prática de degredo para o Brasil tenha durado ao redor de cinquenta anos, talvez mais. Mas é pouco provável que tenha durado mais do que um século, entre os três séculos que durou a colonização. Transcrevendo documentos da época, o autor mostra a insatisfação que eles causavam nos núcleos de povoamento brasileiros, e afirma, com razão, que, se eles prejudicaram a ordem da sociedade a ponto de gerar reclamações, é porque a ordem predominante não refletia o comportamento deles. É importante, por isso, relativizar a noção de que o Brasil sempre foi o “país da baderna”, onde tudo é tolerado e aceito como normal.
Por fim, dentre os que vinham ao Brasil, muitos não conseguiram sobreviver por muito tempo. Primeiro, porque não eram financiados pelo governo português, chegando aqui com poucos recursos, ou nenhum. Além disso, grande parte tentava fugir da vigilância das autoridades indo para a selva em volta das cidades, onde morriam em pouco tempo, vítimas de animais, insetos, ou indígenas hostis. Desse modo, se foram capazes de causar danos à ordem pública por certo período, tal influência maligna não durou muito tempo, não dominou, e não criou raízes na sociedade brasileira como um todo. Nas próprias palavras de Calógeras, “não foi negativo o fator português, sim positivo e construtor, no sentido de aproveitar as qualidades da raça, modificadas pelo meio […] (pg. 286)”.
Como os portugueses enxergavam o Brasil
É praticamente certo que Portugal, durante todo o período de colonização, olhava para o Brasil com uma forte noção de superioridade. Entretanto, no decorrer do livro, é possível notar que essa superioridade não necessariamente significava desprezo pelos habitantes do Brasil. Pelo contrário, existem inúmeros indícios registrados de que os portugueses, em várias ocasiões ao longo da história, respeitavam e até tinham em alta estima figuras brasileiras notáveis na época, mesmo que fosse dentro do que era possível em uma relação metrópole-colônia. Abaixo se encontram alguns dos principais exemplos analisados no livro.
O primeiro foi o Padre Antônio Vieira, que, apesar de ter nascido em Portugal, mudou-se para o Brasil ainda criança, crescendo, criando-se, e se educando em nosso país, o que fazia com que muita gente o considerasse brasileiro, e não português. Citando-o várias vezes ao longo do livro, principalmente nos trechos concernentes ao fim da União Ibérica (1580-1640) e ao domínio holandês no Brasil, Calógeras explica que, nas cortes de Portugal, Vieira era não somente respeitado, mas até ouvido pelo próprio rei, para quem trabalhou como conselheiro.
Outro brasileiro (desta vez, brasileiro nato, nascido em Santos) que gozou de prestígio entre a realeza lusitana, também mencionado no livro, foi Alexandre de Gusmão, célebre realizador do Tratado de Madri de 1750, embora Calógeras tenha focado sua análise muito mais no referido tratado do que na personalidade e na vida de Gusmão, reservando parte do capítulo VII exclusivamente ao contexto no qual foi assinado o tratado. Assim como Vieira, Gusmão também chegou até a representar Portugal em missões diplomáticas na Europa, graças à confiança que a corte portuguesa depositava nele (FUNAG).
Mas a maneira relativamente positiva de olhar o Brasil não se resumia a personalidades específicas, sendo válida, também, para o próprio território brasileiro. O autor explica que, muito antes da transferência da família real de Portugal para sua colônia sul-americana, em 1808, em pelo menos duas ocasiões já se havia cogitado tal possibilidade. A primeira delas, ainda em meados do século XVII, quando o rei D. João IV chegou a propor sua mudança. A segunda, proposta pelo Marquês de Pombal, logo após o terremoto que destruiu Lisboa em 1755.
Ora, em uma época em que o povoamento português no Brasil ainda se limitava a pontos isolados próximos ao litoral (meados do século XVII), e em que suas possessões na América não eram muito maiores do que as da África, tomadas em conjunto, o fato de se cogitar a ideia de transferir a família real para cá, colônia muito mais distante do que várias outras, indica que o Brasil era a melhor opção, que fornecia as melhores condições para receber a corte portuguesa, pelo menos em comparação às outras colônias. Realidade bem diferente do imaginário geral, segundo o qual sempre fomos vistos com desprezo por Portugal.
Por fim, no Brasil, as classes alta e média mantiveram, por longo tempo, o costume de ir estudar em universidades portuguesas, principalmente em Lisboa e Coimbra, o que não apenas lhes dava uma formação tradicional europeia, considerada a mais desenvolvida da época, como também lhes permitia estabelecer conexões mais próximas com portugueses das classes mais altas.
Todos esses fatores contribuíram para que se formasse, fora do Brasil, uma imagem de nosso país superior ao que muitos brasileiros acreditam. Aliados a acontecimentos específicos de nossa história (como, por exemplo, a elevação a reino), possibilitaram também a emergência de uma diplomacia de alta qualidade, que até hoje é respeitada ao redor do mundo, graças, em parte, a suas contribuições para as negociações internacionais, uma das quais veremos agora.
O Tratado de Madri de 1750 e suas contribuições para o Direito Internacional
De acordo com Renato Mendonça, o Tratado de Madri de 1750, cuja realização se deveu enormemente à visão ampla e sóbria de Alexandre de Gusmão, foi extremamente importante não apenas para a formação territorial do Brasil, mas também por transplantar, do Direito Civil Romano para o Direito Internacional, o conceito do “Uti Possidetis”. Além disso, ao estabelecer a manutenção da paz entre os colonos portugueses e espanhóis da América, mesmo se suas respectivas coroas entrassem em guerra na Europa, ainda representou os primeiros indícios da ideia de “pan-americanismo”, tão importante na história e nas relações internacionais de todo o continente americano.
Como brasileiros, podemos nos orgulhar da ação de Gusmão, já que, como afirma o próprio Mendonça, aquela foi “a primeira vez em que um brasileiro nato […] elevado à categoria de secretário particular de El-Rei, gozando das vantagens do talento juntamente com a sabedoria política, pode opinar e decidir eficazmente em matéria de diplomacia relativa à sua terra natal (pg. 67)”. Ao fazê-lo, Gusmão contribuiu de maneira indubitável para o engrandecimento e consolidação do território brasileiro, tornando sua configuração àquela época mais próxima da atual.
Em relação ao Uti Possidetis, é possível afirmar que sua importância se relaciona com o contexto da época em que o Tratado de Madri foi assinado. Ao condicionar o direito de posse de terra a seu povoamento efetivo por determinado povo ou nação, aquele conceito estabeleceu novas bases para as negociações referentes a conquistas territoriais dali em diante. O país que ocupasse uma porção de terra teria direito a ela, não mais podendo invadir terras já ocupadas por outros povos apenas com o pretexto de expansão territorial. Como resultado, acabou tendo efeito significativo em negociações de paz futuras, limitando as aspirações expansionistas de muitos dirigentes de Estado e, assim, evitando um número ainda maior de guerras entre eles.
Para Calógeras, o Tratado de Madri de 1750 é um “documento a raríssimos comparável na história diplomática das duas coroas [portuguesa e espanhola], e que todo brasileiro deveria conhecer, para reverenciar a memória do santista eminente, que o concebeu e redigiu (pg. 203)”. Muito provavelmente, ele também foi o primeiro reflexo do alto padrão pelo qual a diplomacia brasileira viria a ser reconhecida posteriormente.
Influências na diplomacia brasileira
Apesar de não mencionado no livro, acreditamos que os fatores descritos em nossa análise, juntamente com a transferência da família real portuguesa ao Rio de Janeiro e a posterior elevação do Brasil a reino, contribuíram para a construção da diplomacia brasileira nascida concomitantemente à independência. A influência da vinda da família real em nossa diplomacia, aliás, é mencionada explicitamente, ainda que de maneira breve. Afirma Calógeras, no último capítulo, que, com a chegada da corte portuguesa, “cessava agora o isolamento do Brasil. E já se podia prever que de tal convívio com o mundo surgiriam autonomia e independência” (pg. 455).
Era de se esperar que assim o fosse. Após a leitura do livro, fica fácil visualizar a relação entre as noções de “autonomia e independência”, mencionadas pelo autor em referência à futura diplomacia brasileira, com a formação dessas mesmas noções, ainda no início do período colonial, quando o meio inóspito exercera tanta influência sobre a formação do caráter dos colonos lusitanos instalados no Brasil. Por sua vez, a influência da vinda da família real é ainda mais clara, já que permitiu aos funcionários públicos brasileiros passarem a ter contato direto com representantes de outros países em negociações internacionais, ainda antes de o Brasil proclamar sua independência e nascer, de fato, como nação.
Considerações finais
A leitura de “A Política Exterior do Império: As Origens” nos permite não apenas compreender diversos aspectos da formação do Brasil, mas também olhar para o país através de prismas que raramente usamos, relativizando muito do que temos, quase sempre, tomado como certo sobre nossa história e sobre nós mesmos. Calógeras, com o conhecimento enciclopédico que possuía, descreve em detalhes cada acontecimento relevante em nossa história, desde os mais remotos, antes da era cristã, até os acontecimentos de fora, ocorridos principalmente na Europa, mas que repercutiram no Brasil. Ao colocar uma grande quantidade de informação em um único livro, o autor nos poupa o trabalho de realizar pesquisas adicionais para entender o contexto de cada assunto tratado, informações que continuariam espalhadas, caso o autor não fosse tão detalhista.
Para estudiosos de relações internacionais, principalmente brasileiros, a enorme contribuição do livro é nítida. Seu conteúdo trata de temas que, por si só, tiveram repercussão internacional, como é o caso do Tratado de Madri de 1750, mesmo que o foco de análise permaneça sempre no Brasil. O livro cumpre seu papel, o de preencher um enorme vácuo existente à época de sua primeira publicação, resultante da escassez de trabalhos realizados sobre a política externa brasileira até então. Como o próprio autor afirma, “não que faltem estudos sobre trechos e episódios de nossas relações com outros países. Existem e excelentes. Todos, entretanto, referem-se a casos isolados. Raríssimos elevam-se acima do aspecto puramente nacional” (prefácio, pg. XXXVI). Desse modo, é um livro que continua atual mesmo um século após ser publicado, graças ao modo único que trata de temas tão importantes para o Brasil e suas relações internacionais.
Referências bibliográficas:
CALÓGERAS, João Pandiá. “A Política Exterior do Império: As Origens”. Coleção Biblioteca Básica Brasileira, Senado Federal. Vol. I, Brasília, 1998.
FUNAG. “Quem foi Alexandre de Gusmão?”. Disponível em https://www.funag.gov.br/index.php/pt-br/quem-foi-alexandre-de-gusmao.
MENDONÇA, Renato. “História da Política Exterior do Brasil: Do Período Colonial ao reconhecimento do Império (1500-1825)”. Fundação Alexandre de Gusmão. Brasília, 2013. ISBN 978-85-7631-468-4.