Desde a época dos faraós, a África tem sido cobiçada por suas riquezas.(…) As lendas sobre as riquezas do continente estenderam-se por milênios, atraindo exploradores e conquistadores de muito longe. (MEREDITH, 2017, p. 11)
A passagem de Martin Meredith resume bem o caminho da África frente a um dos maiores desafios de sua história recente: o colonialismo. Por cerca de 500 anos, o continente foi alvo de interesses e disputas entre Estados e exploradores inescrupulosos, que ao depararem-se com suas riquezas naturais e ambicionando poder e prestígio, lançaram-se à conquista do colosso continental. (MEREDITH, 2017).
Durante todo este período, profundas mudanças políticas, culturais, econômicas, sociais, dentre outras, ocorreram não só nas esferas internas de Europa e África, mas através de suas relações de contato e dominação. Tais mudanças internas e de relacionamento, como já ditas, são extremamente complexas para serem estudadas neste trabalho de maneira detalhada. Logo, neste artigo, pretendo analisar de maneira muito breve as relações de poder e dominação da Europa/Ocidente frente à África a luz de cinco autores pós-coloniais: Aimé Cesaire, Luciana Ballestrin, Sankaran Krishna, Ramón Grosfoguel e Edward Said; e utilizando como base histórica o livro “O Destino da África”, de Martin Meredith.
Primeiramente, é necessário definir o que é Pós-Colonialismo. Segundo Ballestrin (2013), há dois significados: o primeiro se refere ao tempo histórico anterior ao processo de descolonização em geral do chamado “Terceiro Mundo” a partir da metade do século XX; o segundo no tocante ao conjunto de contribuições teóricas provindas de estudos literários e culturais, que a partir dos anos 80 ganhou adeptos nos Estados Unidos e Inglaterra. Ainda segundo a autora, o pós-colonialismo compartilha em suas perspectivas o caráter discursivo do social, descentramento de narrativas e sujeitos, e apresenta uma crítica às concepções dominantes de modernidade, sendo o “colonial” uma alusão às situações de opressão diversas através de barreiras de gênero, étnicas ou raciais: “Em essência, foi e é um argumento comprometido com a superação das relações de colonização, colonialismo e colonialidade.” (p. 91) Neste sentido, o movimento não é prerrogativa de autores localizados na periferia global, mas de todos que buscam dar voz aos que são/foram oprimidos. Mais do que isso, parte-se da premissa de que o colonialismo não acabou com a independência política.
Uma vez definido os significados de Pós-Colonialismo, faz-se necessário caracterizar as relações que se sucederam entre a Europa/Ocidente e a África, nos termos de Martin Meredith, que contextualizarão o cenário para a análise dos autores pós-coloniais anteriormente citados. De maneira extremamente sucinta, pode-se afirmar que a partir do século XV, as grandes navegações lideradas por Portugal e Espanha foram responsáveis pelos primeiros contatos entre povos europeus e africanos em escala continental, com a fundação de feitorias comerciais ao longo da costa e missões religiosas, que foram fundadas buscando trazer mais fiéis para a Igreja e tirá-los da “selvageria” e do “paganismo”, o qual se encontravam.
Posteriormente, o comércio entre os nativos e europeus se intensificou, assim como o descobrimento por parte dos europeus de terras antes então desconhecidas, como as Américas. Aproveitando-se das novas ricas possessões e observando a necessidade de mão de obra, houve a inauguração de um tráfico intercontinental de escravos africanos para o novo continente, que duraria até meados do século XIX. Nisto, a partir do advento de novas tecnologias bélicas, da descoberta de novos recursos naturais, e do aprofundamento do tráfico de escravos, outras potências lançaram-se na colonização, adquirindo territórios e explorando suas riquezas, ao mesmo tempo que clérigos e missionários expandiram suas redes de evangelização e educação através da religião. (MEREDITH, 2017)
Em seguida, o tráfico de escravos passou por um lento e gradual encolhimento devido ao combate dos poderes coloniais, e Estados coloniais, sob controle direto ou de facto das grandes potências foram criados, com o objetivo exclusivo de gerar riqueza, prestígio e poder aos seus colonizadores, o que em quase sua totalidade, gerou um regime opressor que não levava em conta as necessidades dos colonizados – muitas vezes sequer considerando sua existência como a de um cidadão.
Após duas guerras mundiais, os povos do continente aderiram a um movimento inicialmente europeu recente: o nacionalismo. As pequenas elites africanas, que se formaram através do sistema colonial de administração de territórios, passaram a pressionar as metrópoles por independência, envolvendo a população colonial em agitações quando necessário – demonstrando a insatisfação com tantos anos de opressão e exclusão por parte dos colonizadores. Após tentativas frustradas de manter ao mínimo colônias autônomas, as metrópoles foram obrigadas a cederam e independências foram declaradas, jogando o continente em uma era de otimismo, com os povos africanos podendo, pela primeira vez em séculos, autogovernar-se (MEREDITH, 2017).
Contudo, apesar do enorme potencial e otimismo inicial, a falta de preparo dos novos governos somados ao tribalismo político e corrupção em Estados que foram criados muitas vezes artificialmente pelos colonizadores frustrou as expectativas mundiais de um novo e brilhante futuro para o continente. As antigas elites africanas coloniais e agora governantes destes Estados, ao invés de governarem para o povo, passaram a governar para si, em benefício próprio, desenvolvendo regimes autoritários que lembravam os antigos colonizadores. Para boa parte população em geral, em termos de qualidade de vida, pouco mudou desde a descolonização oficial. (MEREDITH, 2017) Neste cenário, contemporâneo por assim dizer, é que desejo focar neste trabalho, passando agora para a análise deste quadro à luz dos autores pós-coloniais anteriormente citados.
É interessante iniciar esta análise com o pensamento de Ramón Grosfoguel (2016) acerca da estrutura de conhecimento nas universidades ocidentalizadas e o que o autor denominou de epistemicídio. Como foi brevemente contextualizado nos parágrafos anteriores, primeiramente os missionários europeus impuseram sua crença e conhecimento sobre os povos nativos do continente, em um caso similar ao que o autor relata nas Américas e os ameríndios. Este conhecimento, branco, europeu, masculino, foi utilizado de maneira indiscriminada e imposta como verdade universal (e no caso do catolicismo, de maneira dogmática) a partir dos pressupostos de superioridade deste conhecimento e crença europeus sobre os nativos, que por sua vez seria um conhecimento logocêntrico, gerando e perpetuando um monopólio de saber discriminatório.
O autor ainda traça uma relação entre o epistemicídio, definido por ele como “a destruição de conhecimentos ligadas à destruição de seres humanos” (p. 26), e o genocídio, citando quatro casos, sendo um deles a conquista de povos africanos e sua escravização posterior nas Américas, o que foi retratado na narrativa de Meredith aqui sucintamente vista. Grosfoguel (2016) argumenta que este conhecimento, provindo sempre de homens, brancos, europeus de um seleto grupo de países, nada mais é que um conhecimento provinciano, não sendo de forma alguma universal como se diz ser, e contribuindo para a discriminação e opressão de todo aquele conhecimento que não é criado neste íntimo círculo de conhecimento e perpetrado pelas universidades ocidentalizadas, que estão espalhadas por todo o globo, e não só no dito Ocidente. Desta forma, é fundamental se desvencilhar do racismo e sexismo epistêmico, que constituem a estrutura do pensamento dominante, reconhecê-lo como colonial, e criar uma diversidade epistêmica que contemple o pluralismo de sentidos e conceitos, um “pluriverso” (GROSFOGUEL, 2016).
Outro autor relevante para os fins deste trabalho é Aimé Césaire (1972, p. 5), que em seu Discurso sobre o Colonialismo, chama atenção para os efeitos da colonização direta, que abrange todos os envolvidos, desumanizando tanto o colonizado quanto o colonizador:
Eles provam que a colonização, repito, desumaniza até o homem mais civilizado; que a empresa colonial, a conquista colonial, que se baseia no desprezo pelo nativo e justificada por esse desprezo, tende inevitavelmente a mudar quem a empreende; que o colonizador, que para acalmar sua consciência adquire o hábito de ver o outro homem como um animal, se acostume a tratá-lo como um animal, e tende a se transformar em animal (tradução livre).
Esta relação de dominação e submissão entre colonizador e colonizado, respectivamente, cria o processo que o autor denomina de “coisificação” (“thing-ification”), ou seja, um complemento aprofundado da desumanização. Neste sentido e contexto, surge a conhecida justificativa (e abordada por Meredith como justificativa para o estabelecimento dos Estados coloniais) do mito do “bom colonizador”, que possui a obrigação moral de trazer a civilização e conhecimento para os povos inferiores.
Os mesmos entusiastas desta teoria, segundo Césaire (1972), se recusam a reconhecer os méritos do conhecimento “não-branco” e sua relevância para o respectivo campo de estudo, num claro caso de exemplo de racismo/sexismo do conhecimento, como explicitado por Grosfoguel (2016). Essa superioridade, moral,acadêmica, bélica, etc, e mito do “bom colonizador”para Césaire (1972), seriam usados para legitimar a dominação sobre os colonizados, numa relação que é profundamente pautada pelo racismo entre brancos e não-brancos.
Por fim, o autor argumenta que toda esta relação, de desumanização e degradação do colonizado-colonizador, configura uma espécie de autodestruição da Europa pelo “vácuo” provindo do massacre dos colonizados, que por sua vez poderiam ser uma plataforma de desenvolvimento, citando o exemplo de extermínio e escravização dos romanos que os levaram à ruína. Por fim, para o autor, a única reversão deste quadro, que poderia salvar a Europa da barbárie, seria uma nova ordem mundial pautada no respeito mútuo entre os povos colonizados, uma política de nacionalidades, para que o desastre seja evitado.
Nesta perspectiva, este sistema de nacionalidades o qual Césaire propõe pode ser problematizado a partir do pensamento de Sankaran Krishna (2002, p. 171), que, ao se debruçar sobre a questão identitária da Guiana, exemplificada pelo episódio de um jogo de críquete, pôde perceber que não necessariamente identidade está ligada a atributos estáticos que caracterizam uma pessoa:
(…) a identidade mudou, fluiu, reverteu e se reinventou, e se metamorfoseou no curso de apenas duas horas naquele dia no Bourda Oval quando Chanderpaul entrou para o bastão. Em vez disso, a identidade é vista como uma prática constantemente dinâmica e performativa, como algo baseado em parte em um inventário histórico que memoriza encontros passados, mas também algo que muda com uma velocidade estonteante em um único momento. Nuances e inflexões naquele inventário surgem em diferentes ocasiões e sob diferentes provocações. Em outras palavras, este artigo considera a identidade como uma prática performativa que conecta um indivíduo a um ambiente social em constante mudança. Além disso, está incompletamente sob o controle do chamado protagonista (tradução livre).
No período de pós-colonização, com a independência de muitos Estados coloniais artificiais e que alteraram suas populações devido a fluxos coloniais, tal como a Guiana, a identidade nacional tornou-se uma questão delicada, sobretudo quando os grupos nacionais possuem profundas divergências internas e rivalidades entre si. Como o caso do jogador de críquete analisado por Krishna nos revela, a identidade é algo fluído, e não estático como se pensava. De acordo com o autor, o atual mundo pós-colonial consolidou uma mistura de culturas e identidades diversas em escala global. Porém, a pior e mais paradoxal consequência disto foi fazer as pessoas acreditarem que elas pertencem somente a uma identidade característica, como negro(a) ou oriental, por exemplo. Contudo, humanos fazem sua história, cultura e identidade étnica também, não sendo esta algo fixo e dado, necessariamente (KRISHNA, 2002).
O novo mundo pós-colonial, além de consolidar as questões identitárias como uma das mais problemáticas, também cristaliza as relações de poder e dominação entre as antigas metrópoles e suas ex-colônias, ainda que estas tenham se tornado independentes politicamente, como nos lembra Ballestrin (2003). Edward Said (1990) nos mostra como o chamado Oriente, romantizado, foi uma criação de imagem e conceito pelo Ocidente a partir de um conhecimento supostamente “superior” imparcial, vindo da Europa e dos Estados Unidos, seria responsável por criar tais conceitos e “fatos”, mais uma vez remetendo aos ensinamentos de Grosfoguel (2016) acerca do racismo/sexismo epistemológico. Além disso, tal estudo do “Oriente” através das lentes ocidentais seriam, segundo o autor, realizadas a partir de considerações políticas, seguindo um modelo neo-gramsciano, sendo, portanto, o seu conceito de Orientalismo:
(…) é – e não representa simplesmente – uma dimensão considerável da cultura político-intelectual moderna e, como tal, tem menos a ver com o Oriente do que com “nosso” mundo. (SAID,1990, p. 12 – tradução livre).
Logo, o orientalismo representaria, segundo Said, a representação do Oriente pelos olhos e conceitos do Ocidente, tendo mais a ver com a sociedade ocidental do que com a Oriental. Isto, de fato, seria atendido aos interesses políticos e culturais do Ocidente, que seriam beneficiados ao olhar e formular tal imagem e concepção do oriente a partir destas lentes, formadas supostamente por um olhar imparcial e superior de conhecimento epistemológico, mas pautando-se, como diria Cèsaire, em relações de poder racistas que discriminam o outro, para Said, criando uma imagem distinta mas baseada em concepções próprias. É possível relacionar o Orientalismo com a noção de Modernidade de Ballestrin (2016), uma vez que a visão do Oriente como “atrasado” seria contraposta a visão do Ocidente como moderno, um modelo a ser seguido pelos demais cantos do mundo.
Portanto, tudo isto se reflete nos Estados independentes africanos, como afirma Meredith, que lutam para alcançar um desenvolvimento pautado por normas e padrões ocidentais supostamente imparciais e científicos, mas que baseiam em um conhecimento provinciano, racista/sexista/genocida em alguns casos, e que buscam sempre discriminar o conhecimento fora do eixo EUA-Europa, sendo tal prática tão antiga quanto o próprio colonialismo. Por mais que estas ex-colônias tenham adquirido a independência, estas continuam em uma relação, de facto colonial com suas antigas metrópoles por estas razões, e muitas vezes acabam por repetir as ações de seus colonizadores ao subjugarem minorias étnicas e seus conhecimentos, como ocorre com a maioria dos multinacionais Estados africanos. Por fim, os altos níveis de corrupção e tribalismo lembram as relações de dominação de europeus que chegavam para enriquecer e favorecer-se frente aos nativos, prática que se mantém, porém com novos atores.
Referências bibliográficas:
BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, v.11, p.89-117, 2013.
CÉSAIRE, Aimé. Discourse on Colonialism. Monthly Review Press, 1972.
GROSFOGUEL, Ramón. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Revista Sociedade e Estado, v. 31, n. 1, p. 25-43, 2016.
KRISHNA, Sankaran. In one Innings National Identity in Postcolonial Times. In: Chowdhry, G; Nair, S. (eds.). Power, Postcolonialism and International Relations: Reading Race, Gender and Class. Londres: Routledge, 2002.
MEREDITH, Martin. O Destino da África: cinco mil anos de riquezas, ganância e desafios. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
SAID, Edward W. Orientalismo: O Oriente como Invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.