Em 12 de Janeiro de 2010, um terremoto de magnitude 7 atingiu as redondezas da cidade de Porto Príncipe, capital do Haiti. O terremoto causou a morte de mais de 300 mil pessoas, além de ter deixado 1,5 milhão de feridos e desabrigados. As perdas materiais foram enormes, cerca de 300 mil prédios foram destruídos, dentre os quais prédios governamentais, como o Palácio Nacional, residência presidencial localizada na capital do país, a Assembleia Nacional e a sede da ONU. Dentre os milhares de mortos, estavam alguns oficiais da ONU, militares e civis brasileiros, incluindo a pediatra e fundadora da Pastoral da Criança, Zilda Arns, e o representante especial adjunto do secretário-geral da ONU, Luiz Carlos da Costa (PATRIOTA, 2010).
O terremoto agravou a situação já precária na qual o país se encontrava. Até hoje vários edifícios ainda não foram reconstruídos, dentre eles o Palácio Nacional. O Haiti ocupa a posição 170 no Índice de Desenvolvimento Humano, segundo dados de 2019, na categoria de baixo desenvolvimento humano, sendo o país mais pobre do continente americano com 24,5% da sua população vivendo abaixo da linha da pobreza (PNUD, 2020). O país tem um histórico político bastante instável, o que associado à situação econômica, aos conflitos internos e aos constantes desastres naturais, torna sua recuperação mais difícil.
O histórico político do país é bastante complexo e violento, marcado por golpes de estado, invasões estrangeiras e ditaduras. O Haiti foi o segundo país do continente a conquistar sua independência, em 01 de janeiro de 1804, e foi o primeiro país a ser governado por uma pessoa de ascendência africana, assim como o primeiro a abolir a escravidão. Por conta disso, países escravocratas impuseram embargos econômicos ao país, além de reparações à França em troca do reconhecimento da sua independência. Esses embargos resultaram no empobrecimento do país (PATRIOTA, 2010).
O século XX foi marcado pela ocupação e intervenção dos Estados Unidos no Haiti, seguido pela ditadura Duvalier, que durou aproximadamente 30 anos. Durante os anos de 1990, a violência política trouxe novos embargos econômicos ao país, e, após o exílio do Presidente Jean-Bertrand Aristide, em 2004, foi instaurada pelo Conselho de Segurança da ONU a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH). O Brasil esteve à frente do componente militar da MINUSTAH, entre 2004 a 2017, quando a missão foi encerrada. O objetivo era estabilizar a situação política do país, auxiliar a reconciliação nacional, fortalecer as instituições governamentais haitianas, restabelecer a segurança e o Estado de direito e auxiliar na garantia e proteção dos direitos humanos. Após o terremoto de 2010, a MINUSTAH redirecionou seus esforços para o apoio humanitário e ao resgate às vítimas (PATRIOTA, 2010).
A situação econômica e política do Haiti apresentou uma certa melhora até 2009, mas após o terremoto, houve novo retrocesso. Entre 2010 e 2020, o número de migrantes haitianos aumentou em 57,5%, totalizando 1,7 milhão de pessoas, o que representa cerca de 15% da população total do país. Para fins comparativos, nesse mesmo período, o número total de migrantes no mundo cresceu 27%, menos da metade do montante haitiano (ONU, 2020). Por sua participação na MINUSTAH e pela política externa brasileira de intensificação dos laços com o Haiti, o Brasil foi um dos principais destinos de migrantes haitianos após o terremoto, a Polícia Federal estima que foram 93 mil entre 2010 e 2017, chegando a cerca de 143 mil migrantes em 2020.
O refúgio dos haitianos no Brasil
Antes do terremoto, a comunidade haitiana residindo em solo brasileiro era praticamente inexistente. Inicialmente, deve-se levar em conta que o Brasil havia sancionado o Estatuto do Estrangeiro, documento promulgado no ano de 1980 pelo General Figueirêdo, durante o período do regime ditatorial militar, e essa legislação visava exclusivamente os interesses nacionais de “promoção da paz, manutenção da segurança nacional e defesa do trabalhador social”. Desta forma, o caráter protecionista deste instrumento legal evidenciava uma visão extremamente retrógrada dos imigrantes, vendo-os como uma ameaça nacional, restringindo seus direitos, e inclusive legitimando a retirada compulsória dos indivíduos que eram considerados indesejáveis pelos militares. Mesmo após o período de redemocratização, a pauta dos direitos dos imigrantes e refugiados obteve pouco destaque, e consequentemente, durante décadas inteiras, não houve a implementação de um sistema nacional que acolhesse em massa os indivíduos que estivessem em situação de precariedade por conta da crise humanitária em seus países de origem. Portanto, quando os haitianos começaram a procurar por refúgio no Brasil, ainda tinham que enfrentar as condições burocráticas previstas no Estatuto do Estrangeiro, que não estavam a seu favor. (SILVA e MACEDO, 2018).
Após o terremoto, os primeiros haitianos que vieram ao Brasil chegaram pela via terrestre, concentrando-se na região norte do país, sobretudo no Estado do Acre. Como não havia um órgão singular e bem coordenado para apurar o fluxo desses refugiados, as ações iniciais foram movidas pelos próprios municípios locais, com auxílio de diversos setores do governo federal, para assegurar um acesso de direitos básicos aos indivíduos, como através da emissão de documentação migratória e fornecimento de serviços de proteção e inserção social. A partir disso, as políticas públicas foram aperfeiçoadas aos poucos, conforme a ditava a demanda:
Tendo aprimorado suas práticas sobre como abrigar e integrar imigrantes haitianos no Acre, o governo ampliou as abordagens bem-sucedidas a nível nacional. A primeira mudança foi na forma de lidar com fluxos de imigração. Os fluxos de imigração não deviam ser tratados como uma emergência ou desastre, mas como um fenômeno permanente que precisa de soluções permanentes. (SILVA e MACEDO, 2018, p.15).
Em janeiro de 2012, o governo do Acre solicitou apoio financeiro ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), para abrigar e alimentar os refugiados haitianos, notando que os municípios não tinham diretrizes claras para atuação nessa temática. O Itamaraty foi rapidamente acionado, e em 1 de fevereiro de 2012, a presidente Dilma Rousseff declara à imprensa nacional que o Brasil está aberto a receber cidadãos haitianos, destacando que era necessário impedir grupos criminosos que ilegalmente transportavam esses indivíduos ao Brasil, que além de utilizarem rotas perigosas, lucravam no processo. Fora previsto que o registro migratório seria formalizado e planejado desde a cidade de Porto Príncipe, capital do Haiti, e que os serviços oferecidos a essas pessoas seriam, na medida do possível, ofertados na língua nativa dos refugiados, e que após sua chegada no Brasil, teriam acesso a cursos de língua portuguesa, carteira de trabalho e previdência social. (SILVA e MACEDO, 2018).
O gráfico acima elucida a inexistência dos refugiados haitianos no Brasil até o evento do terremoto, mostrando também que, apesar de variar, o número de solicitações de refúgio estava em um aumento histórico sem precedentes. Após isso, durante o segundo semestre de 2015, a regularidade definitiva foi concedida a mais de 44 mil migrantes. Fato curioso é que, durante este período, o programa Bolsa Família estava disponível e foi ofertado aos migrantes, pois não havia nenhum impedimento legal para tanto. Contudo, podia-se notar que as solicitações deste benefício foram numerosas vezes negadas aos estrangeiros, de maneira equivocada, justamente por serem casos, até então, incomuns. (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL, 2014).
O modelo aplicado à região norte começou a ser reproduzido em escala nacional. “Entre 2012 e 2016 os números de migrantes haitianos registrados no Registro Nacional de Estrangeiros, base de dados da Polícia Federal, passaram de 4.278 para 42.026 (Milesi, 2016, on-line, n.p)”. Entretanto, esse êxito era incompatível com o Estatuto do Estrangeiro, que além de consistir em um documento obsoleto, foi elaborado há mais de 35 anos, sob um contexto sociopolítico totalmente diferente. Fez-se necessária a implementação de uma nova lei, que incorporasse todos os ensinamentos obtidos por meio da situação dos migrantes haitianos.
Por fim, em 2017, fora promulgada a nova Lei de Migração, que atualiza o conceito de migrante de acordo com os principais tratados de Direito Internacional dos Direitos Humanos assinados nas últimas décadas, efetivamente pondo em papel as estratégias que devem ser adotadas a nível nacional para a acolhida desses indivíduos, tomando como embasamento a experiência dos haitianos. A começar pela escolha do título, a Lei de Migração é mais abrangente ao abarcar a situação não somente de pessoas de territórios estrangeiros, como também aquelas que deslocam-se dentro do território nacional, além de também conferir proteção aos apátridas. Ao total, são cinco situações previstas desde o 1º Artigo da nova Lei: a) o imigrante, que vem do exterior; b) o emigrante, que são os brasileiros residindo internacionalmente; c) o residente fronteiriço, que diariamente ultrapassa as fronteiras de seu país para vir ao Brasil por motivos de estudo ou trabalho; d) o visitante, que fica no território brasileiro por curto tempo; e) os apátridas, que não possuem nacionalidade qualquer. (BRASIL, 2017).
Em relação à legislação anterior, a Lei de Migração apresenta consideráveis avanços, tendo como princípios a não criminalização da migração, o repúdio à xenofobia, ao racismo e a qualquer forma de descriminação. A migração passa a ser vista como um direito humano, portanto, a partir da nova Lei, o migrante passa a ter condição de igualdade aos nacionais, garantindo a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade. Ela estipula também o acesso igualitário e livre a políticas públicas, serviços, programas e benefícios sociais, como o Bolsa Família, assim como à educação, trabalho, moradia, seguridade social, serviço bancário e assistência jurídica gratuita para os que não puderem arcar com os custos. Por fim, foi também extinta a extradição por crime político ou de opinião de migrantes e refugiados (BRASIL, 2017).
Com relação à integração no campo de trabalho, o Observatório das Migrações Internacionais (2020) destaca que os homens haitianos residentes na região Sul do Brasil geralmente possuem pouca escolaridade e ocupam posições de baixo grau de especialização nos seus empregos, frequentemente no final da cadeia produtiva. Entre 2011 e 2019, foram emitidas 137.732 carteiras de trabalho para mulheres imigrantes, das quais 28% foram para haitianas, sendo o segundo grupo da lista, estando atrás apenas das venezuelanas. Entretanto, no que diz respeito à movimentação no mercado de trabalho formal pelos imigrantes ao longo da década, as haitianas lideram a pesquisa, sendo responsáveis por 55% das movimentações, desempenhando um forte papel socioeconômico. O relatório também destaca que há os indivíduos que não estão amparados pelo estatuto do refúgio, mas que mesmo assim, em função da mobilidade coercitiva, constituem o grupo dos deslocados internacionais forçados, e que possivelmente não figuram nas estatísticas por exercerem trabalhos informais, e portanto, os números reais são maiores. (OBMigra, 2020).
Referências
BRASIL. Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017: Institui a Lei de Migração. Brasília, 2017.
MILESI, Rosita. Haitianos no Brasil – Dados estatísticos, informações e uma Recomendação. 2016. Disponível em: <ftp://ftp.mtps.gov.br/portal/trabalhador/trabalho-estrangeiro/ publicacoes/Haitianos_dados_PF_CNIg-Recomendacao_de_Registro.pdf>. Acesso em 26 de nov de 2021.
MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL (MDS). Ofício circular conjunto SENARC/SNAS nº 2/2014, 11 de fevereiro de 2014.
OBSERVATÓRIO DAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS (OBMigra). Resumo Excutivo: Relatório Anual 2020. Brasil, 2020. Disponível em: <https://portaldeimigracao.mj.gov.br/images/dados/relatorio-anual/2020/Resumo%20Executivo%20_Relat%C3%B3rio%20Anual.pdf>. Acesso em: 26 de nov. 2021.
ONU. United Nations Department of Economic and Social Affairs. International Migrant Stock. 2020. Disponível em: <https://www.un.org/development/desa/pd/content/international-migrant-stock>. Acesso em: 25/11/2021.
PATRIOTA, Antonio de Aguiar. Haiti: Desafios e Oportunidades no Pós-Terremoto. Boletim de Economia e Política Internacional. IPEA, 2010. Disponível em: <http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/4727/1/BEPI_n2_haiti.pdf>. Acesso em: 25/11/2021.
PNUD. United Nations Development Programme. Human Development Report. 2020. Disponível em: <http://hdr.undp.org/sites/default/files/hdr2020.pdf>. Acesso em: 25/11/2021.
SILVA, João Guilherme C. M. G. Xavier da; MACEDO, Fernando Vicente A. Belarmino. de. Resposta a fluxos migratórios e inclusão social de imigrantes haitianos no Brasil. Enap – Escola Nacional de Administração Pública, Casoteca de Gestão Pública [s. l.], 2018. Disponível em: https://repositorio.enap.gov.br/handle/1/3287. Acesso em: 26 nov. 2021.