A Constituição Federal brasileira de 1988, no artigo 23, mostra que cuidar da saúde dos cidadãos é competência comum da União, estados e municípios. Todavia, com a chegada do coronavírus ao Brasil, a simetria entre estes níveis de governo mostrou-se instável, em função da dificuldade em estabelecer respostas coordenadas para enfrentamento do vírus. Por isso, em abril deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por garantir a autonomia das unidades subnacionais para decretarem medidas de isolamento social, quarentena e restrições ao comércio e circulação de pessoas.
Concomitantemente a esta tensão interna, inúmeros Estados impuseram restrições à exportação de remédios, equipamentos médicos e de proteção individual, medida prevista no Tratado de Marraquexe, constitutivo da OMC de 1994 e que passou a vigorar no ano seguinte, frente a cenários de instabilidade, como a pandemia de COVID-19. Essas restrições culminaram na corrida por respiradores e máscaras ao redor do globo, dando início a uma verdadeira disputa para aquisição de tais componentes. O governo chinês emergiu como uma das principais fontes de obtenção destes equipamentos, visto que foi de encontro às restrições ao Comércio Internacional.
Dessa maneira, o Estado brasileiro necessitou lidar com as discordâncias entre prefeitos, governadores e presidente, atentando-se ainda para a iminência da escassez dos recursos supracitados na esfera global. A combinação destes dois cenários permitiu ver crescentes as práticas da paradiplomacia no país, como foi o caso do governo do Maranhão e de tantas outras unidades subnacionais. Este trabalho visa analisar como a crise sanitária atual tornou patente a desestabilização das práticas multilaterais vigentes no sistema, tomando por base os desdobramentos da pandemia no Brasil.
Competências compartilhadas?
Mesmo que a Constituição Federal corrobore a participação dos três níveis de governo, cabe ressaltar que as funções são distintas entre si. Ao olhar para o artigo 30, entende-se que “compete aos municípios […] prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população (BRASIL, 1988)”. Assim, a execução da saúde, nos termos de contratação de contingente e construção de hospitais, postos médicos e unidades de terapia intensiva, por exemplo, são deveres dos estados e municípios.
Quanto à União, cabe o papel de repassar recursos a estes dois entes. Todavia, segundo dados do próprio Fundo Nacional de Saúde (FNS), apenas cerca de 33% do total disponibilizado pelo Ministério da Saúde foi empenhado para o enfrentamento da crise nestes últimos quatro meses de pandemia (MOTA, 2020). Reitera-se que, desde março de 2020, o Ministério da Saúde vinha passando por fortes turbulências, face aos desentendimentos entre Ministro e Presidente da República. Tais divergências influenciaram nos repasses e nas tomadas de decisões para com esta pasta.
Estes fatos apontam para o descompasso entre União e governos federativos. Cabe mencionar que, segundo a análise produzida pela jornalista Camilla Veras Mota (2020), a centralização parcial do Governo Federal na compra de testes e equipamentos apresentaria três grandes vantagens: diminuição do gasto público, visto que a compra em larga escala tende a reduzir os preços; distribuição melhor dos recursos, de acordo com as áreas mais necessitadas, e redução do risco de fraudes.
Todavia, essa centralização não ocorre. Desde a decisão do STF, em abril de 2020, de garantir a liberdade das unidades subnacionais para deliberação acerca das medidas de contingência à pandemia, o discurso de que a responsabilidade de aquisição de respiradores e Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) é dos estados e municípios tem sido recorrente, conforme frisou o secretário-executivo adjunto do Ministério da Saúde, Élcio Franco (UOL, 2020). Assim, a opção restante aos governos federativos é a de agir por conta própria.
A estratégia maranhense: metonímia do Brasil
Um exemplo desta agência autônoma foi a estratégia desenvolvida pelo governador Flávio Dino, do estado maranhense, para obter respiradores e aparelhos de proteção individual. A operação, considerada uma estratégia “de guerra”, foi o resultado de um histórico de tentativas e erros. A primeira tentativa de aquisição de respiradores ocorreu em março, quando o Governo maranhense encomendou os aparelhos diretamente com uma fábrica em Santa Catarina. Todavia, o Governo Federal vetou esta transação, alegando que a distribuição deveria ser feita pelo Ministério da Saúde. Esta medida deixou registrada a concorrência que se desenvolveria entre as unidades subnacionais e o próprio Ministério.
Após esta tentativa, o governador maranhense decidiu encomendar os aparelhos diretamente de uma fábrica chinesa. Terminadas as negociações, cento e cinquenta respiradores foram enviados. Contudo, no percurso até o Brasil, a Alemanha fez uma oferta maior pela remessa, de modo que conseguiu interceptá-la sem que sequer atravessasse o Atlântico. Cabe ressaltar que, em virtude das restrições e contingências ao comércio internacional, interceptações de mercadoria tornaram-se recorrentes, contrariando as determinações de Organismos Multilaterais.
Visto que o estado do Maranhão possui um dos sistemas de saúde mais pobres do país, e levando em consideração os altos custos para o combate à COVID-19 na região, a estratégia do governador começou com a sensibilização de atores não-governamentais para a arrecadação dos fundos necessários. Conforme citado pelo secretário estadual de Indústria e Comércio Simplício Araújo, os setores locais empresariais foram mobilizados, de modo que levantaram R$15 milhões (GALHARDO, 2020).
Em função das tentativas frustradas e da reincidência dos bloqueios, o secretário valeu-se das boas relações com o governo chinês, maior produtor de equipamentos. Assim, com o auxílio de empresários atuantes na região de Foshan, na China, cento e sete respiradores foram encomendados. Sem as doações do empresariado maranhense, a compra poderia levar até três meses para ser processada pelos cofres públicos, de tal maneira que o sistema de saúde do estado entraria em colapso antes mesmo das compras. De posse dos equipamentos, a estratégia foi conduzida para a etapa de transferência para o Maranhão.
A possibilidade de confiscos ao longo do trajeto era grande, haja vista os ocorridos anteriores. Para isso, a fim de evitar possíveis interceptações por países do Norte, como feito pela Alemanha, o ponto de reabastecimento da aeronave foi deslocado da Europa para a Etiópia, assegurando uma rota alternativa pelo Sul, garantindo o deslocamento seguro da carga. A aeronave conseguiu chegar ao aeroporto de Guarulhos, de modo que a preocupação voltou-se para o nível doméstico.
Buscando evitar um possível entroncamento por parte da Receita Federal, os processos alfandegários dos equipamentos foram deslocados para São Luís, cujo efetivo de agentes estava reduzido ao ponto de que os trâmites jurídicos pudessem ser feitos após o desembarque dos respiradores. Para tanto, foi necessário que o secretário se comprometesse a retornar no dia seguinte, o que de fato aconteceu. Após quatro horas deste desembarque, o primeiro paciente já foi entubado (GALHARDO, 2020).
Identificando a Paradiplomacia
A fim de discorrer sobre este ponto com maior clareza e profundidade, será adotado o referencial teórico de Prieto (2004), bem como os estudos de Paradiplomacia brasileira do Prof. Me. Higa Matsumoto. Segundo Prieto, entende-se por Paradiplomacia,
O envolvimento do governo subnacional nas relações internacionais, por meio do estabelecimento de contatos formais e informais, permanentes ou provisórios (ad hoc) com entidades estrangeiras públicas ou privadas, objetivando promover resultados socioeconômicos ou políticos, bem como qualquer outra dimensão externa de sua própria competência constitucional (PRIETO, 2004, p. 51).
Ao olhar para a Política Externa de um país, o Direito Internacional exerce papel de destaque para assegurar respostas coordenadas e institucionalizadas, visto que é um mecanismo regulatório muito presente nos Organismos Multilaterais. Todavia, esta perspectiva também é atrelada aos modelos racionais de processos políticos, os quais preconizam a visão de um Estado monolítico cujas questões internas são marginalizadas. Do mesmo modo, no Direito Internacional, o doméstico é secundário — quando é considerado.
Todavia, é possível notar cada vez mais a obliteração do antagonismo interno-externo, de modo que as questões internacionais e domésticas mostram-se cada vez mais como co-constituintes (WALKER, 1993). Por isso, a assonância entre os níveis de governo é tão importante, produto das idiossincrasias regionais. Além disso, um país como o Brasil, de proporções continentais, tem estas particularidades muito contundentes, de modo que o diálogo entre a União e o subnacional necessita de ser claro e recorrente.
Cabe lembrar que um importante recurso discursivo do governo atual é a constante reafirmação de um centro interpretativo soberano para a produção de subordinação. Uma vez que o estado do Maranhão não podia esperar pela intercessão do Ministério de Saúde nem pelo repasse das verbas disponibilizadas pelo FNS, a estratégia criada, pautada nas boas relações internacionais, coloca em contradição a forma costumeira de se fazer política, a qual estabelece também que acordos bilaterais e diálogo com governos nacionais só podem ser feitos pelo Executivo e poderes afins.
A operação elaborada por Flávio Dino, Governador do Maranhão, e Simplício Araújo, Secretário de Indústria e Comércio, é uma das demonstrações mais contundentes de Paradiplomacia orientada para ampliação de recursos e gestão da crise nos tempos de pandemia. Ela suscita questões constitucionais, de coerência política e com legitimidade nas relações intergovernamentais das unidades subnacionais. Parcerias privadas foram negociadas como alternativa aos cofres públicos, e acordos de baixa formalidade com atores transnacionais, como foi o caso das empresas chinesas envolvidas na transação, foram firmados.
Por fim, em extensão às práticas paradiplomáticas, cabe ressaltar o protagonismo da Cooperação Sul-Sul, presente na operação supracitada. Ela diz respeito ao estreitamento de laços com países do Sul Global, seja por meio político-comercial, seja pela via cultural. Tendo exercido um papel de destaque na Política Externa brasileira nos primeiros quinze anos deste século, os projetos de integração do governo anterior ainda surtem efeito, mesmo que discretamente, vide as relações da China com o Nordeste no enfrentamento à crise, bem como o apoio da Etiópia para reabastecimento da aeronave.
Considerações finais
Caberia ao Governo Federal, sobretudo, uma coordenação harmônica entre os diferentes níveis de governo. O vírus chegou ao Brasil cerca de três meses após o seu aparecimento, de modo que já era patente a necessidade de um bom diálogo entre prefeituras, governos e União na contenção da pandemia, face às experiências compartilhadas por outros Estados na tentativa de manter seus cidadãos seguros e fora do alcance de contágio. Isso não ocorreu, de modo que o Brasil vive, para além de uma crise sanitária e econômica, uma crise política.
Esta situação também evidencia a obsolescência de um dogma comum para o brasileiro: o insulamento do Itamaraty. É irrefutável dizer que, durante muito tempo, o Ministério de Relações Exteriores encarregou-se de boa parte da agenda internacional. Contudo, em virtude do fim da guerra fria e consequente intensificação da globalização, múltiplos temas foram tomando espaço nas arenas políticas, de modo que a demanda por profissionais de arcabouço técnico mais aprofundado aumentou em detrimento dos formados pelo Instituto Rio Branco.
Este fato ajuda a olhar para como as unidades subnacionais também ampliaram seu escopo de atuação no que tange aos seus interesses idiossincráticos. Municípios e prefeituras enxergam seus problemas estruturais com mais clareza do que a unidade governamental. Assim, a descentralização dessas decisões permite a atuação internacional destas unidades, seja para Integração Regional, Cooperação Sul-Sul ou enfrentamento de problemas urbanos. Assim como o estado do Maranhão, que estabeleceu contato direto com a China, outras unidades também fazem isso, como o estado carioca, o qual promove sua imagem internacionalmente por meio de megaeventos.
Portanto, nota-se como as novas formas de desenvolver política influem diretamente na atuação de Organismos Multilaterais e mesmo nas questões ‘internas’ de um Estado. Como diagnosticado através do caso maranhense, Organizações Internacionais, como a OMC, a qual possui prerrogativas vigentes para permitir às restrições, não foram capazes de evitar as transgressões no Comércio Internacional cometidas por países que interceptaram mercadorias. Além disso, na esfera dos governos e prefeituras, é possível notar que são capazes de atingir seus interesses nas mesas internacionais de negociação como qualquer outro ator, não se limitando às deliberações do Executivo.
O Acordo de Marraquexe de 1994, que dá origem à OMC, por exemplo, gera obrigações e direitos aos Estados, de modo que os considera atores monolíticos. Pelo exposto, pode-se constatar que nem sempre os interesses da União concordam com os anseios e com as necessidades das unidades subnacionais, de forma que tais Tratados não cumprem com a sua finalidade. Assim, urge-se por mais debates acerca das definições sobre direitos e deveres das Unidades Subnacionais, de modo a atender às novas dinâmicas do Sistema.
Referências bibliográficas:
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