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Central do Brasil ganha o Urso de Ouro: cinema, Soft Power e arte brasileira – 22 de fevereiro de 1998

Central do Brasil, cinema nacional e projeção internacional

Berlim vira um carnaval”: é assim que permanece a memória do dia 22 de fevereiro de 1998, quando o longa-metragem Central do Brasil (dir. Walter Salles) leva para casa dois prêmios – melhor filme e melhor atriz para Fernanda Montenegro – no Festival Internacional de Cinema em Berlim. Esse é o primeiro Urso de Ouro, a premiação para o melhor filme do festival, destinado a uma obra brasileira. Também indicado ao Oscar, a obra, que acompanha a história de uma escrivã de cartas para analfabetos carioca que acompanha um garoto à procura do pai no interior do nordeste, é celebrada no mundo por sua discussão e emotividade.

O poder de projeção da cultura nacional através do cinema e outras produções audiovisuais é um aspecto bem conhecido da indústria cultural, cujo exemplo mais latente é Hollywood. Desde a ascenção dos Estados Unidos a potência mundial, suas exportações cinematográficas foram uma das principais ferramentas de exportação do American Way of Life, algo que alcançou inclusive o Brasil através de produções como Alô, Amigos. De forma similar, o cinema indiano de Bollywood, as novelas mexicanas, animes japonese e doramas coreanos são, hoje, algumas das principais formas de projeção destes respectivos países.

Desta forma, Central do Brasil se torna relevante para a história precisamente por representar um passo a mais para a projeção internacional do Brasil. Faz parte dos filmes brasileiros mais conhecidos e premiados mundialmente, a exemplo de O Auto da Compadecida (2000, dir. Guel Arraes. ), Cidade de Deus (2002, dir. Fernando Meirelles), e Tropa de Elite (2007, dir. José Padilha), este que também foi premiado com o Urso de Ouro. O objetivo deste breve texto, portanto, é comentar precisamente como o cinema pode ser uma ferramenta de Estado tão importante e o que ele pode representar para o Brasil.

Soft Power, globalização e Diplomacia Cultural na Indústria cinematográfica

Soft Power ou poder suave, conceito cunhado por Joseph Nye, expressa a capacidade de um ator de persuader a ação de outros, sem que seja necessário o recurso à força. Não se resume apenas à capacidade de influência, mas remete também para a capacidade de persuasão, atração e  cooptação de um determinado ator sobre outros atores, implementada mediante a prática
de valores, ideias e cultura (NYE, 2005). Como afirma Menezes (2011), as relações entre sociedades são dependentes de aceitação das diferentes culturas, identidades e imaginários existententes. Estes são, portanto, necessários tanto para a concretização da identidade nacional como para o reconhecimento do Estado como ator internacional.
Uma vez que o paradigma internacional sofre mudanças por causa dos novos atores e efeitos da globalização, ainda, o Estado deve se adaptar. Como Crane (2002) comenta, a globalização cultural constitui da transmissão ou difusão de várias formas de mídia e arte através das fronteiras nacionais. Neste sentido, surgem dois movimentos: um em direção à hegemonia, e outro relativo ao potencial de exportação cultural – o primeiro do qual esteve presente inclusive no lançamento inicial de Central do Brasil, visto a dificuldade em competir com Titanic e O Homem da Máscara de Ferro nas salas de cinema nacionais. Desta forma, o combate à hegemonia e a capacidade de lançar sua própria marca cultural se tornam importantes estratégias de soft power.

A exportação e importação da cultura ocorre através de formas tangíveis, como objetos, símbolos e tecnologias. No âmbito das Relações Culturais Internacionais, portanto, o convencimento e instrumentalização das manifestações culturais é expresso na Diplomacia Cultural (MENEZES, 2011), que como explica Farani (2009), encontra seu cerne de relevância quando possibilita um maior conhecimento dos atores internacionais e, assim, revitalizar as relações diplomáticas entre países. Dista forma, o Estado é capaz de atrair atenção devido à mobilidade artística, propaganda de seus valores, acordos bilaterais que possibilitem intercâmbios, entre outros (MENEZES, 2011). Mais do que isto: no âmbito das Nações Unidas, por exemplo, a cultura está significada na Convenção Sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais,
aprovada pela Unesco em 2005. Neste âmbito, há o reconhecimento de que seu valor ultrapassa os valores simbólicos e criação de identidade, mas se torna necessária para o próprio desenvolvimento e preservação da paz (FARANI, 2009).

Existem seis festivais de grande porte no mundo: Sundance (janeiro), Berlim (fevereiro), Cannes (maio), Veneza (setembro), Toronto (setembro) e Roma (outubro). Estes caracterizam-se como tal por causa da seleção rigorosa de filmes e o fato de serem a première internacional destas obras. Assim como os Jogos Olímpicos, portanto, estes são vistos como importantes fontes de soft power e instrumentos da diplomacia cultural devido à sua capacidade de alcançar o mercado internacional e investimento externo (FARANI, 2009).

É preciso estar atento, ainda, às possibilidades abertas com a popularização da mídia digital, que permite que produtores locais, com culturas e línguas regionais, consigam apresentar-se para uma audiência mais ampla (CRANE, 2002). Na mesma medida, esta audiência, regional ou globalmente, passa a ter a oportunidade de engajar-se mais diretamente com os produtores de conteúdo cultural, sobretudo os de menor alcance.

Cultura, diplomacia e as possibilidades futuras para o cinema brasileiro

Central do Brasil foi o segundo fime de um paíse perifírico a receber o Urso de Ouro, após o indiano Trovão Distante (1973, dir. Satyajit Ray), e este destaque não foi por acaso: a exportação da cultura, como já comentado aqui, é um fator essencial da projeção internacional do Brasil, através da popularização da imagem do “homem cordial” – que reflete a mesma tendência à imagem pacifista que motivou que o país seja o primeiro orador das Assembleias Gerais da ONU (MENEZES, 2011) – O potencial da cultura para o poder suave brasileiro é reconhecido, inclusive, pelo presidente Lula da Silva em 2004, quando este afirma que “A cultura e a produção cultural devem ser também encaradas como fatores de geração de renda e emprego, de inclusão social, de cidadania, de crescimento individual e coletivo, e de inserção soberana no processo de globalização”.

O Itamaraty, de fato, esteve diretamente ligado à projeção internacional da Bossa Nova – sobretudo no contexto do Canegie Hall, em 1964 – bem como nos prêmios que já foram alcançados não só em Berlim: também há reconhecimento em Cannes, por O Pagador de Promessas (1963, dir. Anselmo Duarte), e em Veneza, por Eles Não Usam Black-Tie (1981, dir. Leon Hirszman). Outras iniciativas incluem a Divulg e sua sucessora, a Divisão do Audiovisual (DAV), criada em 2005 para promover e coordenar iniciativas audiovisuais brasileiras no exterior, e as Semanas de Cinema Brasileiro no Exterior, com grande repercussão em Brasil e Argentina, que serviu de motivados para que as imprensas destes países discutisse o Brasil em diversos aspectos, da cultura à economia e à política. Também é criado, em 2006, o Prêmio Itamaraty do Cinema Brasileiro, cujo primeiro prêmio foi entregue pessoalmente pelo então Ministro de Estado, Celso Amorim, à Karim Ainouz (FARANI, 2009; MENEZES, 2011). 

Como aponta Farani (2009), a aproximação do Brasil aos estados do Sul, a exemplo do BRICS e do Mercosul, representa no âmbito internacional um importante papel da diplomacia cultural como forma de conduzir diálogo politico. No âmbito dos países íbero-americas, o Brasil é membro fundador da Conferência das Autoridades Audiovisuais e Cinematográficas Ibero-americanas (CAACI), cujo esforço de promoção do cinema regional pretende reforçar sua identidade cultural. Também existe a Reunião Especializada de Cinema e Audiovisual do Mercosul (RECAM), criada nomeadamente pata fins de desenvolvimento solidário e redução das assimetrias; r o Fórum Audiovisual dos Países da CPLP (FARANI, 2009).

Desde Central do Brasil, a cinema brasileiro já teve diversos exemplos de projeção internacional – na década de 2010, se destacaram obras como Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (2014, dir. Daniel Ribeiro), Que Horas Ela Volta (2015, dir. Anna Muylaert) e Bacurau (2019, dir. Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles). O Brasil se caracteriza como uma potência econômica regional, mas não tem poder militar significativo e, nos últimos anos, vem perdendo espaço devido às crises e polemicas internacionais do atual governo. Tendo em vista a tradição diplomática do país, bem como reconhecimento através de outros elementos culturais – samba. Funk, carnaval – faz sentido investir na diplomacia cultural como forma de política externa. Para isto, entretanto, ainda será necessário um maior investimento e foco, a fim de que o Brasil recupere e avance em termos de influência internacional.

Referências

CRANE, D. Culture and Globalization. Theoretical Models and Emerging Trends. In: CRANE, Diana; KAWASHIMA, Nobuko; KAWASAKI, Ken’ichi (Eds.), Global Culture. Media, Arts and Globalization. New York and London: Routledge, 2002. pp. 1- 25.

FARANI, M. Cinema e Política: A política externa e a promoção do cinema brasileiro no mercado internacional. In: Meleiro, A. Cinema e Economia Política. São Paulo: Iniciativa Cultural, 2009. Pg. 17-38.

MENEZES, C. Identidade Nacional e Poder nas Relações Internacionais: Uma breve trajetória da construção da política de diplomacia cultural brasileira. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011.
NYE, J. S. Soft Power: the Means to Success in World Politics, 2005.

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