Sumário
Introdução
Nos períodos pós-guerra, a saúde constituiu-se em um objetivo comum entre as nações, e isso passou a se refletir nas ações diplomáticas. A expansão da comunicação pública (rádio, televisão, imprensa, etc.) favoreceu a difusão de assuntos nacionais e internacionais. A libertação de colônias, a educação popular e a conscientização política aumentaram a pressão por acesso à educação e à saúde nos países emergentes e gerou novas demandas para as ações diplomáticas (MARTINS et al., 2017). Intensificaram-se as ações humanitárias diplomáticas na área da saúde, o que contribuiu para a inclusão como uma ferramenta de política externa dos países.
O termo ‘diplomacia da saúde global’ visa interpretar tais processos de negociações, níveis e atores múltiplos que moldam e dirigem o ambiente da política global da saúde (KICKBUSH; BERGER, 2010). Idealmente, a diplomacia da saúde global encerra três resultados essenciais:
- Contribui para garantir melhor segurança em saúde e nos efeitos sobre a saúde da população de todos os países envolvidos (desta maneira atendendo aos interesses nacionais e globais);
- Contribui para melhorar as relações entre países e fortalece o compromisso de uma ampla faixa de atores no trabalho de melhorar a saúde;
- Oferece a compreensão da saúde como resultado de um esforço comum para assegurar que ela seja um direito humano e um bem público global, com metas de resultados considerados justos ‘para todos’ (isto é, redução da pobreza, aumento da igualdade).
A incorporação da saúde na agenda para o desenvolvimento pós-2015 e o impacto da contaminação ambiental na saúde estavam entre os temas debatidos. Esse conjunto de negociações desenvolvidas em diversos níveis, que delineia e gerencia o ambiente das políticas globais em saúde e que, idealmente, produz melhores resultados para a saúde da população de cada país envolvido e reforça o compromisso de um amplo arco de atores em prol do empreendimento comum de assegurar a saúde como direito humano e bem público, tem sido denominado “diplomacia da saúde global” (DSG) (MARTINS et al., 2017).
A DSG une as disciplinas de saúde pública, relações internacionais, gestão, legislação e economia e se firma em negociações que modelam e administram o ambiente da política global para a saúde. As áreas que abriga são, entre outras: (i) negociação para a saúde pública entre fronteiras nos foros da saúde e de outras áreas afins; (ii) governança da saúde global; (iii) política externa e saúde; e (iv) desenvolvimento de estratégias de saúde nacionais e globais (KICKBUSH; BERGER, 2010). Desta forma, analisaremos a DSG através das lentes do realismo, objetivando revisar seu arcabouço estrutural, seu reconhecimento, institucionalização e, por último, como é abordada a saúde na agenda diplomática brasileira.
Análise da Diplomacia da Saúde Global
Na tipologia da diplomacia pública, a DSG é um conceito autônomo, um instrumento de política externa que não recorre aos tradicionais meios e canais diplomáticos para atingir seus objetivos definidos. Ela assume características próprias que a distingue de outros conceitos que lhe são próximos, como a diplomacia tradicional, e seu conceito evoluiu ao longo do tempo (MARTINS et al., 2017).
Uma grande parte da diplomacia da saúde global se processa no âmbito da agência especializada em saúde da Organização das Nações Unidas — a Organização Mundial da Saúde (OMS) —, mas a gama de agentes e cenários se expande com rapidez. Abrange competências que envolvem a Organização Mundial do Comércio, o Banco Mundial, as organizações regionais e novas organizações como: alianças, fundos e fóruns globais. Parcerias entre países, organizações internacionais e entidades da sociedade civil são basilares para promover a troca de conhecimentos, recursos e experiências, fortalecendo, assim, as capacidades dos sistemas de saúde em todo o mundo. Essa cooperação se consolida cada vez mais em iniciativas como programas de intercâmbio de profissionais de saúde, compartilhamento de melhores práticas, transferência de tecnologia e apoio financeiro para o fortalecimento de infraestruturas de saúde.
A DSG resulta em melhoria da saúde global, equidade e relações de confiança entre estados. Os elementos que contribuíram para a ascensão da diplomacia foram os acordos comerciais, pandemias, maior coerência entre a política externa e interna de saúde (KICKBUSCH; KÖKÉNY, 2013). Esses autores postularam que a DSG refere-se a um sistema de organização dos processos de comunicação e negociação que moldam o ambiente político global em matéria de saúde e seus determinantes.
O problema está em que, até então, a saúde “não esteve no âmago da teoria nem da prática da política externa, nem mesmo às suas margens” (FIDLER, 2007), muito embora atualmente o grau da atenção que a política externa devota à saúde seja, historicamente, sem precedentes. O necessário, pois, é aquilo que adotou a denominação de ‘política externa da saúde’ e ‘diplomacia da saúde’, isto é, novos desenvolvimentos que articulam competências de negociação diplomática com especialização em saúde pública. Um alinhamento desta ordem também supõe que os governos superem “as competências fragmentadas de políticas nos sistemas nacionais de governança” (DRAGER & FIDLER, 2007) e alarguem o conteúdo e o conceito da diplomacia, de maneira a circunscrever questões como saúde, mas também ambiente e comércio.
A abordagem da DSG também está em constante evolução, considerando as transformações sociais, econômicas e ambientais em curso. Questões como mudanças climáticas, migração, urbanização, comércio internacional e novas tecnologias têm impacto direto na saúde global. Portanto, essa diplomacia visa estar atualizada e integrar esses elementos em suas estratégias e políticas.
A DSG, mediante parcerias entre Estado e organizações não governamentais, é um potente instrumento para garantir o sucesso das intervenções na saúde global e gerar resultados de saúde sustentáveis e redes de vigilância em saúde global entre as nações (MARTINS et al., 2017). O sucesso das intervenções depende da adaptação a normas culturais, religiosas, sociais, locais e de segurança da equipe.
Tal abordagem diplomática contribui para melhorar o acesso universal, a equidade e diminuir os gastos em saúde, podendo também auxiliar na redistribuição de renda conforme o estágio de desenvolvimento de cada país e a estabilização das sociedades (MARTINS et al., 2017). Na atual era de globalização e de interdependência, há necessidade urgente de ampliar o escopo da política externa. Acredita-se que a saúde seja uma das questões de política externa mais importantes, a longo prazo, em nosso tempo, mas ainda extremamente negligenciada. Assim, compromete-se a exercer impacto sobre a saúde, tornando-a ponto de partida e a definir lentes que cada um dos nossos países usará para examinar os elementos essenciais da política externa e as estratégias de desenvolvimento, e a nos empenhar num diálogo sobre as maneiras de tratar as opções políticas desde esta perspectiva (AMORIM et al., 2007).
Contemporaneamente, o mundo está num momento decisivo em relação à política de saúde: a natureza da saúde do século XXI — a sociedade da saúde global — demanda uma mudança radical de mentalidade e uma reorganização da maneira como administramos a saúde. Houve uma mudança importante no debate sobre a saúde, em que ela é vista como um investimento, um desafio coletivo global, um direito humano fundado sob valores éticos. A saúde torna-se, assim, numa força propulsora (KICKBUSH; BERGER, 2010).
A globalização reclama ações coletivas mais efetivas por parte dos governos, da sociedade civil e das empresas e isso, por sua vez, leva a novas organizações, redes, processos, acordos e normas. O ponto essencial é administrar as interfaces entre esses novos protagonistas e as dinâmicas entre campos sobrepostos (KICKBUSH; BERGER, 2010). No entanto, há desafios a serem enfrentados na implementação efetiva da DSG. Questões de governança global, financiamento adequado, coordenação entre os diferentes atores e abordagens baseadas em evidências são alguns dos desafios enfrentados. Além disso, a DSG também precisa lidar com questões políticas, como interesses nacionais, rivalidades geopolíticas e diferenças ideológicas, que podem dificultar a cooperação e a busca por soluções conjuntas.
A Diplomacia da Saúde Global desempenha papel na busca por soluções compartilhadas e na promoção da saúde ao nível global. Ela reconhece a complexidade dos desafios enfrentados e tem em vista engajar diversos atores em ações colaborativas. Através da cooperação internacional, do enfoque nos direitos humanos e da adaptação às transformações globais, a DSG melhorará a saúde global, promovendo equidade, acesso universal e resultados sustentáveis.
Mecanismos e Implementações no Brasil
A Cooperação Sul-Sul no Brasil é um exemplo de “cooperação estruturante para a saúde”, pois se baseia, fundamentalmente, no fortalecimento dos sistemas locais de saúde a partir da potencialização das capacidades e recursos endógenos em cada país (BUSS, 2011). No Brasil, várias instituições e atores atuam no âmbito da cooperação internacional em saúde nessa perspectiva. A criação da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e o Plano Estratégico de Cooperação em Saúde da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) são experiências decorrentes do aprimoramento do diálogo diplomático estabelecido em iniciativas de integração regional na América do Sul (Mercosul, Comunidade Andina e Organização do Tratado da Cooperação Amazônica) (BUSS; FERREIRA, 2010).
No entanto, é importante reconhecer que a cooperação internacional em saúde não pode ser vista como uma solução isolada. Ela deve ser complementada por esforços nacionais e uma abordagem holística para fortalecer os sistemas de saúde, garantir o acesso equitativo aos serviços de saúde e abordar os determinantes sociais da saúde. Além disso, a cooperação internacional em saúde também deve estar alinhada com os princípios da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, buscando promover a saúde como parte integrante do desenvolvimento humano e sustentável.
A assinatura e implementação do Termo de Cooperação n.º 41, celebrado em 2006, entre o Governo Brasileiro, por meio do Ministério da Saúde e da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), e a Organização Pan-americana, ocorreu em um ambiente institucional tanto favorável como desafiador. De um lado, o Ministério da Saúde se orientava cada vez mais para um papel de maior destaque internacional, aprofundando iniciativas junto aos países africanos e ao Mercosul, bem como estreitando seus vínculos com a pasta das relações exteriores. No âmbito do Ministério da Saúde, a existência de um órgão especializado nos assuntos internacionais, a Assessoria de Assuntos Internacionais de Saúde (AISA/MS), diretamente subordinada ao gabinete do ministro, condizia com a expectativa de se promover mecanismos integradores para a formulação de uma política externa em saúde, em um ambiente crescentemente colaborativo com a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), que responde pela negociação, pela coordenação e pelo seguimento do conjunto dos projetos de cooperação técnica (PIRES-ALVES; PAIVA; SANTANA, 2010; VENTURA, 2013).
Considerada por analistas estrangeiros como “um elemento essencial da diplomacia solidária do Brasil” (VENTURA, 2010), a cooperação sanitária engendrou uma aproximação inédita entre o Ministério da Saúde e o Ministério das Relações Exteriores (BRASIL, 2012). Entre os órgãos vinculados ao Ministério da Saúde, destaca-se o Programa Nacional de Doenças Sexualmente Transmitidas e Aids (PN-DST/Aids), o Instituto Nacional do Câncer (Inca), a Fundação Nacional da Saúde (Funasa) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) (CEPIK; SOUSA, 2011; VENTURA, 2013).
Em um contexto global cada vez mais interdependente, a cooperação internacional em saúde desempenha um papel crucial na promoção da saúde e no enfrentamento de desafios emergentes, como pandemias, resistência antimicrobiana e mudanças climáticas. Através da troca de conhecimentos, recursos e experiências, os países podem aprender mutuamente e colaborar para melhorar a saúde e o bem-estar de suas populações. No entanto, é importante que a cooperação em saúde seja baseada em princípios de equidade, transparência e participação, garantindo que todos os países e comunidades sejam beneficiados justamente. Os esforços de cooperação devem estar em consonância com os princípios de soberania e autodeterminação dos países, respeitando suas políticas e sistemas de saúde.
Em primeiro lugar, é preciso (1) considerar, sobretudo, seus efeitos positivos quanto às condições de saúde das populações envolvidas e às condições sustentadas de funcionamento integral dos sistemas e serviços de saúde. É necessário (2) avaliar se a sua implementação contribuiu para o processo de consolidação do SUS e à afirmação do direito universal ao cuidado integral em saúde, à participação social e às formas socialmente transformadoras de se conceber a saúde. É preciso (3) ponderar sobre a sua pertinência às políticas de governo que elegem uma cooperação técnica internacional renovada, solidária e eticamente sustentada como eixo privilegiado das relações exteriores brasileiras, tendo como prioridade as nações vizinhas da América Latina, em especial do Mercosul e os países de língua oficial portuguesa (PIRES-ALVES; PAIVA; SANTANA, 2010).
Da mesma forma, deve-se (4) considerar se a sua formulação, condução e avaliação favorecem a aproximação entre as pastas da Saúde e das Relações Exteriores e a operação integrada entre suas agências. É necessário, também, (5) aquilatar se a mobilização das competências institucionais disponíveis é realizada da forma mais completa e eficaz, inclusive no que concerne aos aspectos de multisetorialidade requeridos (PIRES-ALVES; PAIVA; SANTANA, 2010).
No tocante às dimensões regionais e globais, a formulação e implementação do TC 41 deve ter (6) possibilitado, nos marcos da Cooperação Sul-Sul, a construção de arranjos institucionais promotores de uma maior integração, seja ao nível sub-regional ou regional, seja em âmbito global. Neste particular, sua implementação deve ter (7) contribuído para a presença e visibilidade das questões da relação saúde-desenvolvimento, inclusive quanto aos determinantes sociais das condições de saúde, como parte da agenda internacional (PIRES-ALVES; PAIVA; SANTANA, 2010).
Por fim, quanto à formulação e implementação das ações de cooperação propriamente ditas, o TC 41 deve (8) ter viabilizado iniciativas em acordo com valores e princípios que orientaram a Cooperação Técnica entre Países em Desenvolvimento e a Cooperação Sul-Sul e, ao mesmo tempo, incorporado as contribuições que emanaram das críticas mais recentes às formas e práticas da cooperação técnica internacional, inclusive no que concerne à sua real eficácia e eficiência (PIRES-ALVES; PAIVA; SANTANA, 2010).
O propósito do TC 41 foi de contribuir para o fortalecimento da capacidade do Brasil para cooperar com o desenvolvimento dos sistemas de saúde dos países da América e com países de língua portuguesa, no marco da Cooperação Sul-Sul (CSS). A orientação geral era criar capacidades permanentes nos sistemas de saúde dos países, visando à geração de capacidades humanas e a sustentabilidade dos desenvolvimentos atingidos. Os mais importantes programas de cooperação em saúde do país foram implementados com apoio do TC 41. Segundo o documento de avaliação, o TC 41 alcançou os resultados esperados, pois teve o poder de fortalecer a capacidade nacional para a cooperação internacional; mobilizou as redes colaborativas; e apoiou projetos de CSS, particularmente na área de desenvolvimento de recursos humanos (BUSS, 2018).
Por outro lado, diferentemente da gestão nacional da saúde pública, a ação internacional brasileira no campo da saúde ainda não se dotou de mecanismos de transparência e de participação social em seu processo de tomada de decisão, o mesmo aplicando-se ao controle de seus resultados. […] diante dos efeitos contraditórios da globalização, não basta reafirmar os princípios humanistas para mudar práticas e promover o necessário reequilíbrio entre valores mercantis e valores não mercantis, entre os bens privados e o bem comum: é preciso responder concretamente às contradições que a acompanham (VENTURA, 2013).
Para promover uma cooperação internacional efetiva em saúde, é necessário fortalecer os mecanismos de coordenação e governança global, garantir o financiamento adequado e promover a colaboração entre todos os atores relevantes, incluindo governos, organizações internacionais, setor privado, sociedade civil e comunidade científica. A cooperação internacional em saúde desempenha um papel fundamental na busca por soluções compartilhadas para os desafios em saúde. No caso do Brasil, a cooperação tem avançado, mas ainda enfrenta desafios. Ao fortalecer os esforços de cooperação, promover a transparência e a participação social, e garantir a sustentabilidade das ações, o Brasil pode continuar a desempenhar um papel relevante na promoção da saúde global e na construção de um mundo mais saudável e equitativo.
Desta forma, a diplomacia brasileira de saúde só poderá ser considerada efetivamente solidária nos casos em que ela produzir a melhora tangível da saúde das populações dos Estados com os quais o Brasil coopera. O conceito de cooperação estruturante em saúde é um valioso aporte brasileiro ao léxico internacional da ajuda ao desenvolvimento. Contudo, os recursos destinados a este novo tipo de cooperação ainda são modestos (VENTURA, 2013).
Nesse sentido, no campo da saúde houve uma consolidação do discurso universalista, segundo Pinheiro (2020), com a participação do Brasil na criação da Iniciativa Política Exterior e Saúde Global (Foreign Policy and Global Health, FPGH, em inglês), que visava a posição da saúde como tema essencial e estratégico na agenda de política externa. Ademais, houve uma grande presença regional com a criação do Conselho de Saúde Sul-Americano, na Unasul, em 2008, que buscava combater coletivamente a epidemia de H1N1 e da dengue, que se intensificava naquele momento, e planejar uma resposta para a eventual chegada do ebola no continente (IBANEZ; PEREIRA; RECIO, 2022).
[…] as tensões encontradas na política externa brasileira, em particular no que atine à saúde pública, são de natureza transversal, perpassando as esferas interna e externa, e que elas se multiplicam de maneira tão opaca quanto vertiginosa. A consolidação de uma diplomacia solidária de saúde depende tanto da prevalência da ótica dos direitos humanos sobre interesses outros de nossa política externa, como da vontade política dos governos de completar o movimento iniciado com a reforma sanitária, construindo um sistema de saúde gratuito e de qualidade, como dever do Estado, direito de todos e baliza da ação internacional do Brasil (VENTURA, 2013).
Por fim, no atual momento nota-se o distanciamento entre os temas de política externa e saúde. Diferente dos governos petistas, presenciamos uma postura antiglobalista e antimultilateralista e, por consequência, o abandono da ênfase na cooperação com o Sul Global, além de enorme negacionismo e anticientificismo justamente no momento mais crítico da saúde pública global dos últimos tempos. Tendo o governo Bolsonaro uma postura de “negação […] das possibilidades que o campo da saúde, no Brasil, poderia, e pode contribuir no debate da atual pandemia” (PINHEIRO, 2020), há, desde 2020, uma enorme carência de deliberações de âmbito nacional vindas do governo federal, o que impulsionou os estados e municípios a se autocoordenarem, levando a uma disparidade de respostas no país — como foi e tem sido visto ao longo de 2020 e 2021 (IBANEZ; PEREIRA; RECIO, 2022).
A postura negacionista e anticientífica do governo contribuiu para a disseminação de informações falsas e teorias da conspiração, minando a confiança da população nas medidas de saúde pública e nas orientações científicas. Isso dificultou a implementação efetiva de estratégias de controle da pandemia, como o distanciamento social, o uso de máscaras e a vacinação em massa.
Essa postura do governo federal ajudou a afastar o Brasil de uma possível relação mais próxima com China e com diversos outros países para um melhor combate ao vírus, e fizeram com que o país se tornasse o epicentro da pandemia da COVID-19 em 2021. Nesta perspectiva, é somente a partir das redes de cooperação entre os Estados e do diálogo com a diplomacia da saúde global que um cenário fértil para o enfrentamento efetivo da crise na saúde global, através da vacinação, será concretizado. Sendo essa a única saída para as crises sanitárias, econômicas e políticas instauradas e para o retorno da atividade econômica e produtiva mundial, deve ser promovida em conjunto com o fortalecimento das instituições de cooperação multilateral internacional (IBANEZ; PEREIRA; RECIO, 2022).
A falta de liderança e coordenação nacional também foi uma deficiência evidente durante o governo Bolsonaro. Com a ausência de deliberações claras e abrangentes por parte do governo federal, Calil (2021) evidencia que os estados e municípios tiveram que assumir a responsabilidade de tomar suas próprias medidas de combate à pandemia, o que levou a uma disparidade de respostas em todo o país. Conforme estudo de Hur et al. (2021), Duarte e César (2021), essa falta de alinhamento dificultou a implementação de estratégias consistentes e dificultou a capacidade de resposta eficaz às necessidades da população.
Diante desse cenário, a cooperação entre os estados e o diálogo com a diplomacia da saúde global tornaram-se essenciais para enfrentar a pandemia efetivamente. Como reforçado nas linhas de pensamento de Buss, Alcázar e Galvão (2020) somente por meio de redes de cooperação e parcerias internacionais é possível estabelecer um ambiente propício para o enfrentamento da crise, incluindo a vacinação em larga escala. Sem dúvida, precisamos de uma governação global legítima e eficaz, onde a cooperação seja o eixo orientador para resolver problemas de natureza global (BENEDETTO & MORASSO, 2020), na qual a abordagem cooperativa também é primordial para lidar com as crises sanitárias, econômicas e políticas desencadeadas pela pandemia e para promover o retorno das atividades econômicas e produtivas ao nível mundial.
Portanto, é necessário promover a cooperação multilateral internacional e fortalecer as instituições e mecanismos de cooperação existentes, destacado por Paulo Buss por meio da Agência Fiocruz de Notícias (2020). Através do engajamento com outros países, da troca de conhecimentos e recursos, e da adoção de abordagens baseadas em evidências científicas, é possível enfrentar de maneira mais eficaz os desafios globais de saúde, incluindo pandemias como a COVID-19.
É possível esperar que o novo governo Lula, segundo Ponce et al. (2022) e Santos (2024), em seu retorno ao poder, possa adotar uma postura mais engajada e colaborativa na DSG, em contraste com a postura negacionista e anticientífica do governo Bolsonaro. Para Baquero e Morais (2021), para incluir o fortalecimento das relações com outros países e organizações internacionais, deve-se instigar a participação ativa, comunitária e governamental, em fóruns e o apoio a iniciativas de cooperação internacional no enfrentamento de crises de saúde. Um governo comprometido com a DSG pode priorizar a saúde como uma questão central na agenda diplomática, buscando parcerias estratégicas e promovendo ações conjuntas para abordar desafios de saúde, como pandemias, acesso a medicamentos e vacinas, e desigualdades em saúde.
No contexto específico do Ministério das Relações Exteriores e do Ministério da Saúde, um governo Lula poderia estabelecer uma sinergia maior entre as duas pastas, buscando uma abordagem integrada para lidar com questões de saúde global. Isso poderia ser alcançado por meio da AISA ou de um mecanismo semelhante, que teria como objetivo principal articular ações conjuntas e promover a cooperação em saúde com outros países e organizações internacionais.
Conclusão
A diplomacia da saúde global visa garantir a segurança em saúde, melhorar as relações entre países e fortalecer o compromisso de diversos atores na melhoria da saúde. Através da cooperação internacional, a diplomacia da saúde global visa alcançar resultados justos e equitativos para todos, contribuindo para a redução da pobreza, o aumento da igualdade e o acesso universal à saúde.
No Brasil, a cooperação internacional em saúde é implementada via mecanismos como a CSS, que fortalece os sistemas de saúde locais a partir de recursos endógenos. O país tem buscado estabelecer parcerias regionais e internacionais, como a Unasul e a CPLP, visando promover o diálogo diplomático e a integração regional.
Vale destacar que a cooperação internacional em saúde não pode ser vista como uma solução isolada. Ela deve ser complementada por esforços nacionais e uma abordagem holística para fortalecer os sistemas de saúde e abordar os determinantes sociais da saúde. Outrossim, a cooperação em saúde deve estar alinhada com os princípios da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, buscando promover a saúde como parte integrante do desenvolvimento humano e sustentável.
Diante dos desafios enfrentados, como a governança global, o financiamento adequado e a coordenação entre os diferentes atores, é necessário fortalecer a implementação efetiva da diplomacia da saúde global. É preciso superar interesses nacionais, rivalidades geopolíticas e diferenças ideológicas para promover a cooperação e buscar soluções conjuntas. A adaptação às transformações globais, como as mudanças climáticas e as novas tecnologias, também é essencial para garantir que a diplomacia da saúde global permaneça relevante e eficaz.
Em se tratando de estudos voltados para a saúde global, configurando que futuras pesquisas estejam voltados para esta perspectiva, não há tanto engajamento e produções como em tópicos de segurança, economia, meio ambiente e direitos humanos, embora a saúde envolva todas as esferas mencionadas para garantir a dignidade da vida humana e as interações com seu entorno. Com um novo governo a partir de 2023, novas abordagens em cooperação internacional em saúde são esperadas, com reintegração do Brasil em meio aos parceiros estatais e institucionais.
Fato é que, para melhor gerir a pasta da saúde, diplomatas em carreira e aspirantes à diplomacia poderão e deverão se especializar em assuntos de saúde, como gestão e planejamento estratégico, Atenção Primária à Saúde (APS), grupos populacionais vulneráveis do Brasil (indígenas, quilombolas, negros, pessoas em situação de rua, pessoas privadas de liberdade, mulheres, crianças, idosos, LGBTQIAPN+, etc.), entre outras diversas áreas emergentes e importantes. Também, programas afirmativos pelo Instituto Rio Brando (IRBr) para atração de futuros diplomatas formados em medicina, enfermagem, psicologia, etc., afirmando seus valores e conhecimentos fortalecidos na saúde global.
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