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A Clemência do Estado Brasileiro por Mudanças Estruturais nas Organizações Internacionais
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A Clemência do Estado Brasileiro por Mudanças Estruturais nas Organizações Internacionais

Com o início do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, o discurso sobre mudanças nas “regras do jogo” na seara internacional ganha impulso sob a liderança do então presidente brasileiro. Após 4 anos de uma política externa inóspita e prejudicial para o Brasil, Lula chama para o debate a importância em se tratar sobre mudanças estruturais e no funcionamento de instituições financeiras internacionais. Ao adotar uma abordagem diplomática mais assertiva, bem recebida no plano doméstico e internacional, o Brasil retomou uma postura proativa no cenário internacional que retrata um esforço pragmático para reverter a reputação de isolamento conduzida pela gestão anterior. Contudo, objeções antigas ainda perduram e novos desafios recrudescem devido a conflitos geopolíticos inéditos.

No ano de 2023, o Brasil assumiu a presidência do G20, grupo que reúne as vinte maiores economias do mundo. Sendo assim, nada mais oportuno que o Brasil recupere pautas até então esquecidas pelo governo anterior e passe a dar mais força a essas agendas de modificação em estruturas internacionais. Vista disso, o intento deste trabalho é fazer uma lacônica retrospectiva sobre a fundação das principais instituições internacionais vigentes no sistema internacional assim como descrever conceitos sobre governança global e as transformações que o mundo atravessa ao longo das últimas décadas. Por fim, este escrito irá destacar a seriedade que o terceiro governo de Lula abarca em torno da reforma dos mecanismos de governança global e a possível falência das instituições internacionais. Para fundamentar seus conhecimentos, o presente texto utilizou métodos bibliográficos assim como discursos oficiais registrados nos sites oficiais dos órgãos pertinentes.

Introdução

A transição é uma constante inevitável nas organizações internacionais, e assimilar sua importância é vital para a adaptação e o progresso dessas entidades em um mundo dinâmico e em constante desenvolvimento. As organizações internacionais ostentam um papel vital na promoção da cooperação global, na coordenação de questões transnacionais e na busca de soluções para desafios globais. Neste contexto, a introdução de mudanças eficazes não apenas robustece a resiliência das organizações internacionais, mas também distende a sua capacidade de debelar os desafios emergentes de forma proativa.

No entanto, as dinâmicas geopolíticas e econômicas do século XXI têm sublinhado a necessidade eminente de reformar essas instituições para que possam responder de maneira mais eficaz e equitativa aos desafios contemporâneos. Modificações nas organizações internacionais são essenciais para garantir que elas reflitam a realidade atual, representada por uma maior diversidade de players e uma distribuição mais difusa do poder. Ao adaptar suas estruturas e processos, essas organizações podem se tornar mais inclusivas e representativas, aumentando sua legitimidade e capacidade de ação. As reformas são essenciais não apenas retificar desequilíbrios históricos, mas também para assegurar que todos os países, independentemente de seu tamanho ou nível de desenvolvimento, tenham voz e influência nas decisões que concernem a comunidade global.

Devido a isso, este trabalho explorará a importância dessas vicissitudes para garantir que as organizações internacionais possam responder de forma ágil e eficiente aos desafios emergentes e às demandas de um ambiente global em constante evolução.

Preâmbulo a Governança Global: contexto histórico e teórico

Comumente, as análises acerca da governança global iniciam-se com o reconhecimento da vagueza do termo, da imprecisão com que é empregado e da falta de uma sistematização nas teorias das relações internacionais – referido, por vezes, como corrente teórica, outras como um conceito. Porém, concomitantemente, é apresentado como uma expressão para se referir aos novos arranjos de poder e à diversificação das agendas de pesquisa nas relações internacionais. David Kennedy descreve governança global como um “processo dinâmico, no qual acordos políticos, econômicos e legais estimulam interesses, alteram a balança de poder e levam para a reinvenção da própria governança” (Kennedy, 2008, p. 832, tradução própria). Esse dinamismo deve-se, de acordo com Kennedy, às alterações da própria sociedade – uma nova ordem –, sendo um processo de esperança, decepções e lutas coletivas. A governança global está inevitavelmente se alterando, porquanto vivemos num mundo em transição.

Entre as obras elementares que colaboraram para introduzir e difundir o termo nas pesquisas em relações internacionais está o livro Governança sem governo: ordem e mudança na política mundial, organizado por Rosenau e Czempiel, publicado em 1992, bem como o relatório da Comissão sobre Governança Global, de 1995, intitulado Nossa Comunidade Global. Em ambos está presente a noção de que governança global trata da coisa pública, isto é, refere-se a tema de interesse de gestão/negociação coletiva/comum, com algum grau de ordem e intencionalidade e algum grau de autoridade – que não se confunde com a estatal. Destaca-se do relatório a ideia de que é necessário cooperar e utilizar o poder coletivo para tratar das coisas comuns.

Nas obras abalizadas, governança é um processo com capacidade de produzir resultados sem a necessidade da força coercitiva dos Estados, processo do qual podem participar atores estatais e não estatais. De acordo com Rosenau (2000, p. 13):

num mundo onde a autoridade sofre deslocamento contínuo, tanto exteriormente, no sentido das entidades supranacionais, como internamente, no sentido dos grupos subnacionais, é cada vez mais necessário verificar como pode existir a governança na ausência de um governo.

Compreender e repensar a governança global por meio da identificação e do debate sobre os desafios e as oportunidades do século XXI é uma tarefa complexa, porém, necessária. Há uma sensação de compressão de espaço-tempo e de aceleração dos processos físicos que pode ser verificada nas mais diversas tendências do mundo “moderno”: informatização do conhecimento, automação, pressão demográfica, processo de grande urbanização, aumento da demanda por energia e por recursos naturais etc.

Com o final da 2ª Guerra Mundial, observa-se no sistema internacional a decadência e fim do protagonismo europeu. Este fato está intrinsicamente relacionado à duas grandes razões: primeiro, os custos e destruição causados pelas guerras e segundo as ondas de processo de descolonização que varreram a África e Ásia, ou seja, já não era possível contar com as riquezas provenientes das colônias. Neste período observa-se, como parte da decadência da Europa como um todo, o surgimento de uma era de superpotências mundiais, com especial destaque para os Estados Unidos e Rússia, que se tornam-se modelos ou parceiros para se aliar. Nasce a confrontação bipolar e surgimento do período de Guerra Fria.

O contexto histórico do qual decorre o conceito de governança global sobre o qual se pretende tratar é o fim da Guerra Fria (Barnett e Duval, 2005; Fuchs, 2007, p. 27-28), com o reconhecimento do término da bipolaridade “Estados Unidos versus União Soviética”, e a construção de uma nova configuração, mais complexa, de poder entre os Estados. Conforme afirma Rosenau (2000, p. 15):

dadas as transformações profundas ocorridas na natureza e na localização da legitimidade, da autoridade e sua aceitação, e dados os papéis e as estruturas emergentes do Estado moderno, das organizações transnacionais, dos movimentos sociais, dos mercados comuns e dos partidos políticos, torna-se certamente obrigatório um amplo reexame do governo e da governança em um mundo cada vez mais interdependente (…).

As Nações Unidas, o maior espaço para debates e políticas sobre os diversos temas da agenda internacional, é âmbito mais plural e abrangente para tratar sobre questões de governança global atualmente. O impacto da criação e consolidação do sistema onusiano não só impediu um terceiro conflito mundial (que poderia ter dimensões catastróficas), como também ensejou o avanço de debates sobre agendas muito além da “manutenção da paz e segurança internacionais” (ONU,1945). É enorme a influência que o sistema das Nações Unidas, que engloba seus órgãos principais, subsidiários e agências especializadas, possui “em dimensões normativas e operacionais em questões centrais como segurança, desenvolvimento e direitos humanos” (Herz, 1997, p. 77).

Os principais objetivos da ONU, de acordo com a sua carta institucional são a paz e segurança mundial (ONU,1945). As organizações intergovernamentais já existiam antes da ONU, no entanto, o seu grau de institucionalização torna-se de tal forma sofisticado que surge a noção moderna de um novo sujeito de direito internacional. O Estado deixa de ser o único sujeito no sistema internacional, ainda que, no caso das organizações ele seja seu constituinte (veja que se trata da teoria geral da pessoa jurídica elevada ao plano internacional – o Estado é o sujeito primário e a organização o sujeito derivado).


A Clemência do Estado brasileiro por mudanças estruturais nas organizações internacionais

Desse modo, não resta dúvida de que os principais atores em processos de governança global são os Estados. Tampouco há de se duvidar da crescente influência de outros atores na governança global. Todavia, observa-se uma progressiva atuação de atores não estatais em processos de elaboração, implementação e cumprimento de regras internacionais (ALMEIDA, 2008), além de desempenharem importantes articulações políticas em busca de reformas institucionais internacionais. A transacionalidade de questões, como pandemias, migração, refúgio, terrorismo, direitos humanos, clima, internet, energia nuclear, meio ambiente, desenvolvimento, comércio, maleficia ainda mais a percepção de que soluções globais são cada vez mais necessárias. Essas questões ultrapassam as fronteiras dos países e necessitam ser enfrentadas de forma cooperativa, englobando uma pluralidade de atores internacionais.

A realidade do início do século XXI é muito distinta do contexto no qual a ONU foi criada em 1945, e evidencia a necessidade de uma ampla reforma na ONU e nos processos de governança global como um todo. Nas palavras do economista Stiglitz (2005, p. 7), “à medida que o mundo muda, a ONU deve mudar também”. Pondera-se que o arcabouço central da política numa era de globalização é a complexa interação de instituições de governança em diferentes níveis. Debelar os problemas fundamentais de segurança, de desenvolvimento (do crescimento econômico para a inclusão social) e sustentabilidade ambiental requer a compreensão de como os processos e as instituições de governança atuam e interagem em vários níveis (JACOBI, 2003).  

Para isso, na próxima seção abordaremos temas atinentes a reformas institucionais na qual a ONU carece e o desenvolvimento de novas instituições podem oferecer novas maneiras de interação entre os Estados e os novos atores globais, permitindo a criação de outras formas de cooperação.

O Eurocentrismo Excludente e a Profusão de Estados na ONU

As Nações Unidas desempenham um papel vital na arena global das relações internacionais servindo como fórum para cooperação internacional e a resolução de conflitos. Datando de sua fundação em 1945, o mundo presenciou mudanças significativas em diversos aspectos, como política, economia, direito, tecnologia e meio ambiente. Essas transformações têm ensejado novas demandas e desafios que necessitam adaptações e reformas na estrutura e funcionamento da ONU. Neste contexto variável, as necessidades de vicissitudes nas Nações Unidas são evidentes e urgentes. O desafio do século XXI, como as mudanças climáticas, pandemias globais, desigualdades econômicas e socias, ameaças cibernéticas e conflitos bélicos, necessitam respostas ágeis e coordenadas em nível internacional. Contudo, a estrutura e os processos de toma de decisão da organização sistematicamente certificam serem lentos, burocráticos e incapazes de lidar eficientemente com essas questões emergentes.

De acordo com Enrique Dussel, a modernidade tem a sua origem dotada no ano de 1492, nas cidades medievais europeias, centros livres e de enorme criatividade. Mas ela passou a existir de fato quando a Europa pôde confrontar-se com o “o outro”, dominá-lo, vencê-lo e violentá-lo; quando se pode definir como um ego descobridor e colonizador (DUSSEL,1992, p.8). O “outro”, o ameríndio, de todas as maneiras, não foi descoberto como “outro”, mas “encoberto” pelo europeu. Desse modo, a data marca o nascimento da modernidade como conceito, a origem de um mito de violência sacrificial muito particular e, ao mesmo tempo, um processo do encobrimento do não europeu (DUSSEL, 1992, p. 8). O processo de colonização levando em conta por séculos pelos países europeus deu origem a um mundo ocidental agudamente sublinhado pela crença segundo a qual existe uma hierarquia entre povos e civilizações. Tal categorização, que faz parte de um projeto de poder que tipifica a modernidade europeia, se universalizou ao passo que se ramificou em toda as estruturas do sistema internacional, especialmente nos meios institucionais, como é o caso da Organização das Nações Unidas.

A ONU foi arquitetada pelos vencedores da Segunda Guerra Mundial, essencialmente, um núcleo de antigas potências, em sua maioria europeias, além dos Estados Unidos. Esse arranjo de poder hierarquizado, estabelecido na segunda metade do século passado, é a principal tônica de toda a engenharia institucional da organização que sempre reforçou e fomentou a afirmação dos interesses do ocidente. Ao consistir-se sob a liderança da primazia ocidental, a mais expressiva instituição de vocação internacional da história se altera em um veículo que projeta, representa e dissemina os denominados valores ocidentais. Esses abarcam, em última instância, na perpetuidade da longa tradição do pensamento moderno implantado na Europa, do qual os Estados Unidos, sucessores do império britânico, são herdeiros reprodutores daquela estrutura colonial do passado, que dissemina a ardilosa ideia de superioridade de uma determinada cultura no caso, a do velho continente e a decorrente inferiorização e subalternização das demais. 

Uma questão incongruente é o fato de a Carta de São Francisco, ao mesmo tempo que proclama uma série de dogmas ditos universais, concede prerrogativas de comando às grandes potências, o que termina pela negação e esvaziamento dos valores do seu próprio texto, em especial a premissa da igualdade soberana entre os Estados. Essa hierarquia entre nações, que retrata as Nações Unidas, permeia todos os órgãos que a compõem. Há concepções profusas no tocante ao papel dos Estados na governança global e à existência de hierarquia entre esses atores tradicionais e os “novos” atores. Segundo autores como Keohane e Nye (2000), há que se dissertar em hierarquia entre os Estados e outros atores, tendo em vista terem os primeiros o monopólio do exercício da força legítima.

No que tange ao Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), suas principais atribuições estão definidas pelos capítulos VI, VII, VIII e IX da Carta da ONU.  Este é um órgão executivo da organização na qual suas decisões são vinculantes, diferentemente as da Assembleia Geral da ONU (AGNU) onde essas decisões são recomendações. Com isso, a capacidade decisória do conselho é questão sine qua non para gerir assuntos concernentes à paz e à segurança internacional, especialmente após o final da Guerra Fria. Desde o início dos anos 1990, a ONU e seu Conselho de Segurança remoldaram a agenda de segurança internacional buscando contemplar, nessa agenda, o desenvolvimento, a democracia e os direitos humanos.  


A Clemência do Estado brasileiro por mudanças estruturais nas organizações internacionais

O que se sucede é que por sua vez, algumas instituições possuem órgãos nos quais nem todos os seus membros estão representados gerando supranacionalidade acentuada em relação aos excluídos. É o que se pode observar quando comparados o CSNU e a AGNU. Enquanto a AGNU é composta por todos os Estados – membros da organização, o CSNU é um órgão instituído por quinze desses 193 Estados. Ou seja, no formato original, esses quinze Estados representariam os 193 países efetivos da ONU, e o órgão executa um papel executivo complexo, capaz de contornar as intempéries da eficácia que seriam resultantes de instituição formada por todos os países membros, como é o caso da Assembleia Geral.

Para contextualizar, no CSNU, apenas cinco Estados têm sua participação assegurada no processo decisório. Na composição atual, os outros dez assentos restantes são compreendidos rotativamente pelos demais membros da organização por duração de no máximo dois anos. A escolha dos cinco membros permanentes, que são: China, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha e Rússia se dá pelos mais diversos motivos, mais especialmente econômicos, demográficos e militares. Além disso, os países permanentes contam com o poder de veto. Com isso, assumem posição de poder destacada e proeminente, em comparação com os membros rotativos eleitos pela AGNU para compor o CSNU.

A necessidade de reformar a priori o CSNU se deve ao fato em que há hoje uma nova realidade política, estratégica e econômica no mundo. Conforme exposto anteriormente, o Conselho de Segurança composto por 15 assentos resulta uma representatividade de apenas 7,85% do total de membros das Nações Unidas, que não retrata, portanto, a realidade geopolítica e econômica do mundo contemporâneo. Exemplos como a falta de representatividade de países do continente africano, assim como Estados como a Alemanha e o Japão cujo peso econômico e político são irrefutáveis e potências regionais como o Brasil e a Índia que possuem presenças destacadas na arena internacional, não podem ficar exclusos das grandes decisões políticas que devem ser adotadas pelo Conselho de Segurança.

O caso mais notório atualmente em que mostra a inércia do CSNU envolve a Guerra na Ucrânia. Pela Carta das Nações Unidas (Artigo 27), as decisões do Conselho (em matérias não processuais) são tomadas pelo voto afirmativo de ao menos nove membros, estando necessariamente no grupo anuente todos os membros permanentes do Conselho. A abstenção do voto pode ocorrer apenas no caso a controvérsia em questão envolva um dos membros. Atenção especial deve ser dada à necessidade de os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança votarem positivamente nas decisões do órgão. Mesmo ocorrendo o quórum mínimo de nove membros por outras maneiras, a divergência de um dos membros permanentes cria um impedimento para que a decisão seja tomada, o chamado “poder de veto” dos membros do Conselho de Segurança. No caso da Guerra na Ucrânia, a Rússia, país do P-5 teria que concordar com as decisões contra ela no Conselho, algo inimaginável para um país governado por Vladimir Putin. Naturalmente, esse poder de veto acaba se submetendo ao interesse daqueles que podem usá-lo (AL SHRAIDEH, 2017).

Durante o transcorrer da Guerra Fria, Estados Unidos e União Soviética se valeram de 263 vezes de seu poder de veto (ibid.). Desta maneira, corre-se o risco do CSNU se tornar inativo ou submetido ao interesse nacional de seus membros. É visível, portanto, como o tratamento concedido pelo Conselho de Segurança aos seus membros permanentes é bastante peculiar do seu comportamento para com os demais Estados das Nações Unidas. O poder de veto lhes outorga uma liberdade de atuação diante a Organização que outros países não dispõem. Uma futura reforma capaz de aumentar o número de membros do órgão necessita encontrar formas de garantir o desempenho das funções do Conselho, em uma conjuntura que requer cada vez mais a intervenção da ONU para enfrentar os óbices resultantes do mundo contemporâneo e dos conflitos intraestatais em escala mundial. Na próxima seção, será debatido o papel do Brasil e as possíveis ações para uma mudança na pauta do sistema onusiano. 

A Liderança do Brasil na Agenda Internacional: oportunidades de mudanças no contexto das organizações internacionais

Não é demasia positivar que, em poucos meses, se cumpriu, ao menos na forma e quantidade, o programa de política externa contido na síntese anunciada por Lula no discurso da noite da vitória. Conforme descreve Rubens Ricupero (2024):  

Não só por uma questão ética e humanitária, mas também por razões práticas, um sistema internacional de paz e cooperação favorece muito mais o florescimento da diplomacia do que um marcado por guerras, divisões e antagonismos. Essa verdade óbvia se aplica com mais força a uma potência intermediária como o Brasil, dotada apenas do soft power da palavra e do gesto da diplomacia, sem os meios militares e econômicos de ação para pesar diretamente sobre guerras e conflitos (Ricupero, p. 24).

Em qualquer análise provisória que se tece do primeiro ano do governo Lula 3, a verificação deve focar, assim, mais nos resultados e na recepção interna e externa das iniciativas diplomáticas do que na sua rapidez e quantidade. Conforme versa Rubens Ricupero, talvez um dos diplomatas mais críticos ao desmantelamento em curso durante a gestão de Jair Bolsonaro, “danificava a imagem do país” e “afetava a forma duradoura a imagem do país” e “afetava de forma duradora as relações internacionais do Brasil (citado em Caleiro 2019).

O debate sobre mudanças na chamada governança internacional, o que abrange a forma de funcionamento de instituições globais como a Organização das Nações Unidas é um dos grandes focos do terceiro mandato de governo do presidente Lula. Conforme explana o ministro brasileiro de Relações Exteriores, Mauro Vieira:

Não podemos ignorar o fato de que a governança global precisa de profunda reformulação. Nossas diferenças devem ser resolvidas ao amparo do multilateralismo e das Nações Unidas, utilizando como métodos o diálogo e a cooperação, e nunca por meio de conflitos armados, questões essas que serão discutidas com mais profundidade (Agência Brasil, 2024).

O terceiro mandato de Lula tem sido projetado para expor a necessidade de mudanças nas “regras” de algumas instituições internacionais, dentre elas, a das Nações Unidas. O presidente brasileiro considera que a ONU não tem sido capaz de cumprir os objetivos que levaram à sua criação em 1945. De acordo com Lula:

A ONU não tem dado conta de resolver os problemas. Os membros do Conselho de Segurança são os maiores produtores de armas. São os que detêm as armas nucleares. São os que têm o direito de veto. E são os que não cumprem nada porque submetem ao próprio Conselho de Segurança. Não dá pra esperar a boa vontade dos países que estão no Conselho de Segurança. Quem está lá dentro, não quer que ninguém mais entre. Então nós, que queremos construir uma nova geografia mundial, temos que brigar para entrar. O mundo é outro, não é o mesmo de 1945. Precisamos ter uma representação mais robusta. Tem que ter mais países e acabar com o direito de veto, porque não é possível que um país sozinho possa vetar uma decisão tomada por todos os outros (Agência Brasil, 2024).

Para Mônica Herz (1999), a representabilidade do CSNU é questionada pela ausência dos países do Sul e dos principais contribuintes das operações de paz (Japão e Alemanha). Segundo a autora, há um consenso mínimo no qual as propostas de reforma do órgão baseado na necessidade de resolver o óbice da sub-representação de países da Ásia, da África e da América Latina e de abranger Japão e Alemanha no conselho. Inclusive, o Estado japonês e alemão associou-se ao Brasil e à Índia na formulação de uma proposta inerente em setembro de 2004 e instituíram o G4. A proposta destes países conjecturava a inclusão de dez novas cadeiras no Conselho de Segurança, consistindo em seis permanentes e quatro não permanentes. Os novos permanentes não teriam o amparo do poder de veto. As seis cadeiras permanentes seriam ocupadas pelos quatro países do G4 e por dois Estados do continente africano.  

Em resumo, as propostas elencadas desde o ingresso do tema na agenda da ONU, nos anos 1990 basearam-se em dois temas precípuos: I) na dilatação do número de membros permanentes e não permanentes do CSNU; II) na preservação, extinção ou, ainda, na amplificação do poder de veto aos novos membros permanentes em um Conselho de Segurança reformado e ampliado. Na realidade atual, a perspectiva de efetividade da reforma depende do apoio dos cinco membros permanentes, que protagonizaram diferentes opiniões sobre o tema. O Brasil integra o grupo de países que apresentou a proposta mais bem avaliada pela comunidade internacional, apesar de, sofrer ressalvas, principalmente na seara regional, isso porque a Argentina e o México não apoiarem o intento brasileiro. A China também compartilha a reticencia em relação a reforma devido a concessão provável do Japão ao assento permanente. Há ressalvas também em relação ao pleito da Alemanha ao assento permanente do CSNU devido a Itália não alicerçar o pleito alemão.

Durante o discurso na 78º Assembleia Geral das Nações Unidas, Lula voltou a angariar antigas demandas da diplomacia brasileira, como a reforma de organismos internacionais, sobretudo no Conselho de Segurança da ONU. Nos dois primeiros mandatos de Lula, uma das prioridades de sua pauta externa foi a defesa de uma ampliação e reforma primordial do Conselho de Segurança das Nações Unidas, cuja sua composição permanece inalterável há mais de sete décadas.  Nas palavras do presidente Lula:

O Conselho de Segurança da ONU vem perdendo progressivamente sua credibilidade. Essa fragilidade decorre em particular da ação de seus membros permanentes, que travam guerras não autorizadas em busca de expansão territorial ou de mudança de regime. Sua paralisia é a prova mais eloquente da necessidade e urgência de reformá-lo, conferindo-lhe maior representatividade e eficácia (DW, 2023).

Todavia, o mandatário brasileiro não limitou sua fala por reformas em organismos internacionais somente ao Conselho de Segurança. O presidente brasileiro também defendeu a discussão por modificações no Fundo Monetário Internacional (FMI) e no Banco Mundial. De acordo com Lula:

O princípio sobre o qual se assenta o multilateralismo – o da igualdade soberana entre as nações – vem sendo corroído. Nas principais instâncias da governança global, negociações em que todos os países têm voz e voto perderam fôlego. Quando as instituições reproduzem as desigualdades, elas fazem parte do problema, e não da solução. No ano passado, o FMI disponibilizou 160 bilhões de dólares em direitos especiais de saque para países europeus, e apenas 34 bilhões para países africanos. A representação desigual e distorcida na direção do FMI e do Banco Mundial é inaceitável (DW, 2023).

Diante disso, torna-se contundente repensar e reformar os organismos internacionais para solidificar sua capacidade de enfrentar adversidades contemporâneas e fomentar a paz, o desenvolvimento sustentável e os direitos humanos em todo o mundo. Essas mudanças devem compreender desde ajustes nas estruturas de tomada de decisão até a modernização dos mecanismos de financiamento e aperfeiçoamento das operações de campo. E neste sentido, por ostentar um papel de extrema relevância nas relações internacionais o papel do Brasil é capilar na promoção de agendas globais prioritárias como a proteção ambiental e o embate às mudanças climáticas. A Amazônia, por exemplo, é um recurso natural de magnitude planetária e a liderança brasileira pode ser decisiva para a implementação de políticas de preservação e desenvolvimento sustentável.

Considerações finais

A implementação de reformas nas instituições internacionais é fundamental para que essas entidades possam responder de maneira eficaz e justa aos desafios do mundo moderno. À medida que a ordem global evolui, com novas potências emergindo e questões transnacionais complexas ganhando destaque, as estruturas tradicionais muitas vezes se revelam inadequadas para enfrentar essas mudanças. Estas modificações são necessárias para assegurar que todos os países, independentemente de seu poder econômico ou militar, tenham uma voz relevante nas decisões que moldam a política global. Isso não só estenderia a legitimidade dessas instituições, mas também promoveria uma maior cooperação internacional e uma distribuição dos recursos e benesses globais. A reforma das instituições internacionais é imperativa para edificar um sistema de governança global que seja verdadeiramente representativo, eficiente e capaz de proporcionar paz, segurança e desenvolvimento sustentável para todas as nações.

O protagonismo do Brasil no sistema internacional tem se consolidado ao longo das últimas décadas, destacando-se pela busca de um papel mais ativo e influente em diversas esferas globais. Como uma das maiores economias emergentes, membro do BRICS e do G20, o Estado brasileiro tem promovido uma agenda de desenvolvimento sustentável, inclusão social e cooperação multilateral. A atuação brasileira é marcada pela defesa de reformas nas instituições internacionais, visando torná-las mais representativas e democráticas, refletindo a nova configuração do poder global.

A importância dessa liderança é multifacetada. Primeiramente, ao advogar por transformações em organismos como o Conselho de Segurança da ONU e o Fundo Monetário Internacional, o Brasil busca um sistema internacional mais justo e equilibrado, que contemple as realidades e as necessidades dos países em desenvolvimento. Essa postura pode contribuir para uma governança global mais equitativa e eficiente, onde as decisões refletem uma maior diversidade de vozes e interesses.

Assim, a liderança do Brasil não só reafirma sua posição de destaque no cenário internacional, mas também se revela essencial para a transformação e modernização das instituições internacionais, fomentado um sistema global mais inclusivo e representativo. Esse movimento pode resultar em uma maior democratização das relações internacionais, com benefícios amplos e duradouros para a paz, a segurança e o bem-estar global.

Referências

Agência Brasil. Reforma em organizações internacionais é destaque em 2º dia de G20. Disponível em: Reforma em organizações internacionais é destaque em 2º dia de G20 | Agência Brasil (ebc.com.br). Acesso em: 15 mai. 2024.

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