Desde o fim da Guerra Fria, com a queda do Muro de Berlim em 1989, os Estados Unidos têm utilizado narrativas polarizadoras para consolidar seu papel como líder central no sistema internacional. A retórica de uma nova Guerra Fria, agora direcionada à China, reflete não apenas o interesse norte-americano em reafirmar sua hegemonia, mas também a necessidade de legitimar suas políticas internas e externas em um contexto de crescente multipolaridade.
Essa postura está inserida em uma estratégia histórica mais ampla dos EUA, que busca moldar uma ordem internacional liberal (OIL) baseada em seus valores e interesses, frequentemente materializada pelo chamado Consenso de Washington. Essa ordem, entretanto, tem sido imposta por meio de um conjunto de ferramentas que incluem pressões econômicas, guerras financiadas ou travadas diretamente pelos EUA e a promoção de mudanças de regime em países que não se alinham às suas diretrizes.
Ao longo das últimas décadas, os EUA têm enfrentado crescentes desafios em manter sua posição de hegemonia, especialmente diante do fortalecimento de potências como China e Rússia, além da resistência de atores regionais que questionam a manutenção da ordem mundial, que não contempla e não tem gerado os benefícios esperados pelos países periféricos. Nesse cenário, a narrativa de uma nova Guerra Fria surge como uma tentativa de reorientar o discurso estratégico e justificar intervenções, tanto militares quanto econômicas, em nome da estabilidade e da democracia.
No entanto, essa retórica esbarra em um contexto internacional onde potências em ascensão ou potências regionais procuram ampliar suas relações bilaterais e fortalecer mecanismos multilaterais, e pela necessidade de cooperação em questões como mudanças climáticas, segurança alimentar e saúde pública, temas que transcendem a lógica de polarização entre blocos.
Para compreender o que é e a quem serve o conceito de nova Guerra Fria ou Guerra Fria 2.0, é fundamental adotar uma visão crítica. O termo representa uma leitura simplista e inadequada da complexidade das relações internacionais contemporâneas. Tal narrativa, ainda que atrativa para grupos midiáticos habituados a um discurso baseado na construção de inimigos e grandes ameaças, não reflete a realidade de um mundo marcado pela interdependência e pela multipolaridade. Essa interpretação não apenas perpetua uma lógica excludente e preconceituosa, mas também reforça uma visão polarizada que ignora as nuances das dinâmicas internacionais e os desafios de cooperação em uma ordem mundial diversa e fragmentada.
Por exemplo para o Brasil, o discurso de uma nova Guerra Fria traria o impacto de limitar as interações internacionais do país, sendo compelido a se alinhar ou buscar uma posição de terceira via, a qual não beneficiaria os interesses nacionais e agendas já consolidadas em fóruns internacionais.
Sumário
A dualidade como ferramenta estratégica dos EUA
Historicamente, os Estados Unidos têm utilizado uma estratégia de dualidade para moldar o sistema internacional de acordo com seus interesses. Durante a Guerra Fria, isso significava liderar uma coalizão de países democráticos em oposição ao bloco comunista liderado pela União Soviética. Atualmente, essa mesma lógica se manifesta em esforços para unificar aliados contra a ascensão da China e outras potências emergentes, como os países do BRICS.
Um exemplo recente dessa estratégia pode ser observado na disputa pela tecnologia de comunicação 5G, em que os EUA pressionam parceiros para evitarem o uso de equipamentos de empresas líderes chinesas, como a Huawei. Essa pressão foi particularmente evidente no Brasil e em outros países, onde o governo norte-americano buscou influenciar decisões para excluir a China do desenvolvimento de infraestruturas, reforçando a narrativa de rivalidade geopolítica e tecnológica. Entre os argumentos,há um destaque para a ameaça de espionagem através das antenas, que enviam informações para Pequim, sendo um risco para o usuário final, algo que não foi confirmado em análises dos equipamentos.
Conforme Niall Ferguson aponta no artigo “How to Win the New Cold War”, esse discurso dualista ajuda os EUA a reafirmar sua centralidade na política internacional. Para ele, os EUA têm apostado em “uma combinação de confronto inicial seguido por cooperação estratégica”, como demonstrado pelas políticas de Ronald Reagan durante a Guerra Fria. Da mesma forma, Donald Trump, ao longo de sua presidência, buscou uma abordagem agressiva, como a guerra comercial contra a China, enquanto mantinha a perspectiva de um grande acordo com Xi Jinping.
A insistência nessa retórica serve para garantir a coesão das alianças ocidentais. Como Ferguson argumenta, “a nova Guerra Fria está sendo travada em múltiplos domínios, do espaço ao ciberespaço”, e a narrativa de ameaça ajuda os EUA a justificar sua expansão militar e tecnológica, especialmente em regiões como o Indo-Pacífico.
O papel do inimigo comum
Após o colapso da União Soviética, os Estados Unidos precisaram construir novas narrativas para justificar suas ações no campo internacional, garantindo a sustentação de seu amplo poder e domínio. Nos anos 1990, o foco foi a redefinição das estruturas políticas e econômicas de países da América Latina, África, Ásia e do espaço pós-soviético. Sob o pretexto de promover a democracia e a economia de mercado, os EUA impulsionaram mudanças em regimes políticos e na ordem econômica doméstica, alinhadas aos princípios do Consenso de Washington, reforçando sua influência.
Nos anos 2000, com os atentados de 11 de setembro, o terrorismo foi elevado ao status de principal inimigo – ainda como parte do discurso de remover ditaduras e libertar povos de regimes opressores, levando os valores democráticos. Essa narrativa permitiu aos EUA lançarem intervenções no Oriente Médio e liderarem a chamada guerra ao terror. As invasões do Afeganistão e do Iraque foram justificadas sob a alegação de combater grupos extremistas e promover estabilidade, embora tenham gerado amplas críticas devido às consequências devastadoras para as regiões afetadas e à contestação da legitimidade dessas ações.
Na década de 2010, o foco começou a mudar com a crise financeira de 2008, que enfraqueceu a confiança no modelo econômico ocidental. Simultaneamente, emergiram novas potências e blocos regionais, como o BRICS, desafiando a hegemonia dos EUA. Durante esse período, questões como cibersegurança e as ações da Rússia, especialmente a anexação da Crimeia em 2014, ocuparam o centro do discurso estratégico norte-americano, mantendo a necessidade de liderar o sistema internacional contra ameaças emergentes.
Agora, nos anos 2020, o discurso de polarização retorna com força, centrado na ascensão da China como rival estratégico e no fortalecimento de blocos regionais e das parcerias políticas, como Brasil-China ou Rússia-Irã. O aumento das tensões no Indo-Pacífico, a disputa tecnológica (especialmente em torno do 5G e semicondutores) e os desdobramentos da guerra na Ucrânia são utilizados como justificativas para consolidar alianças e reforçar a narrativa de um mundo dividido entre democracias e autocracias. Essa abordagem procura sustentar a posição norte-americana enquanto enfrenta um cenário internacional marcado por uma crescente multipolaridade e pela necessidade de cooperação em questões como mudanças climáticas, segurança energética e saúde pública.
De acordo com Abhinav Pandya no artigo “How Cold War 2.0 Will Be Different From the First One“, a atual rivalidade não se baseia em divisões ideológicas claras, como o embate entre capitalismo e comunismo. Em vez disso, a competição ocorre em áreas estratégicas como a tecnologia, o controle de redes de informação e comércio, e a supremacia militar. Pandya argumenta que “a China não busca competir em todos os âmbitos com os EUA” e frequentemente evita tensões geopolíticas diretas, como nos casos da guerra da Ucrânia ou do conflito Israel-Hamas.
No entanto, a retórica americana insiste na construção de um inimigo claro, algo que Ferguson também reforça ao citar que a lógica da política externa dos EUA frequentemente exige identificar e conter adversários para justificar sua presença militar em nível mundial.
As diferenças fundamentais da nova Guerra Fria
Apesar das semelhanças no discurso, a nova Guerra Fria apresenta diferenças significativas em relação ao confronto entre EUA e União Soviética. Algumas delas incluem:
Hoje não existem dois blocos antagônicos. Na Guerra Fria, havia dois blocos claramente definidos, o capitalista e o comunista. Hoje, as relações internacionais são marcadas por alianças fluidas e interesses cruzados. Como Pandya aponta, “não há linhas divisórias claras entre democracias e autocracias“, com países como Índia e Turquia mantendo relações estratégicas tanto com os EUA quanto com a China e a Rússia.
Outro ponto é o nível de integração econômica e a interdependência entre diferentes economias. EUA e China são os dois maiores parceiros comerciais do mundo, com economias profundamente interligadas. Como Ferguson destaca, mesmo durante os momentos de maior tensão da guerra comercial de Trump, a relação econômica nunca foi completamente interrompida. Isso difere da relação EUA-URSS, que era marcada por isolamento econômico mútuo.
A disputa atual não é apenas militar, mas se concentra em áreas como inteligência artificial, semicondutores e tecnologias espaciais. Pandya argumenta que “a tecnologia é o campo de batalha mais crítico na Guerra Fria 2.0”, com iniciativas como a Made in China 2025 posicionando a China como um concorrente de peso.
Disputa tecnológica em uma ordem multipolar
Embora a rivalidade tecnológica seja um aspecto central para os EUA justificam a existência de nova Guerra Fria, o mundo contemporâneo não é dominado por dois blocos homogêneos. Em vez disso, vivemos em uma ordem multipolar que exige cooperação em questões internacionais, como mudanças climáticas, crises alimentares e pandemias.
Como Pandya ressalta, “supremacia tecnológica é essencial, mas desafios como a fome e as mudanças climáticas demandam respostas coletivas”. A China e os EUA, embora rivais, participam de fóruns multilaterais como o G20 e a própria ONU e compartilham interesses em manter a estabilidade econômica global. Além disso, blocos como o BRICS promovem uma agenda de desenvolvimento alternativo, desafiando a ideia de que o sistema internacional precisa ser liderado exclusivamente por uma superpotência.
Mas há ou não uma nova Guerra Fria?
A narrativa de uma nova Guerra Fria, centralizada nos EUA, serve mais aos interesses estratégicos americanos do que reflete a realidade das dinâmicas contemporâneas. Para os EUA, essa retórica é altamente favorável, pois justifica ações extremas como a saída de pactos multilaterais, como o Acordo de Paris, a erosão de mecanismos como a OMC e o aumento de gastos públicos em militarização, fronteiras e tecnologia bélica. A polarização reforça a posição dos EUA como líder indispensável para proteger seus aliados, mas ignora a complexidade de um mundo interconectado e multipolar.
Por outro lado, a China tem adotado uma postura distinta, não endossa a dicotomia “nós contra eles”. Ao invés disso, busca parcerias econômicas que priorizam benefícios comerciais mútuos e não estão atreladas a alianças políticas ou ideológicas. Essa estratégia permitiu à China construir relações pragmáticas e evitar o endosso de discursos que a colocam como inimiga. Como argumenta Abhinav Pandya, a China não busca competir em todos os âmbitos com os EUA e aposta em um futuro baseado no crescimento econômico e em soluções cooperativas para desafios.
A verdadeira dinâmica internacional não se resume a um confronto bipolar. A ascensão da China como uma grande economia é acompanhada por um mundo cada vez mais interdependente, onde um futuro compartilhado exige um concerto de nações trabalhando juntas em questões como mudanças climáticas, segurança alimentar e avanços tecnológicos. Nesse sentido, a ideia de uma nova Guerra Fria, promovida pelos EUA, contrasta com as demandas do século XXI, que exigem colaboração em vez de polarização.
Portanto, a insistência no discurso de uma nova Guerra Fria reflete mais os interesses unilaterais dos EUA do que a realidade dos principais atores internacionais. Enquanto Washington utiliza essa narrativa para justificar ações extremas e consolidar sua liderança, o mundo multipolar avança com desafios e oportunidades que só podem ser enfrentados coletivamente. A escolha não é entre dois blocos antagônicos, mas entre um futuro dominado por rivalidades destrutivas ou construído sobre cooperação e benefício mútuo.
Seja cauteloso ao utilizar o termo “nova Guerra Fria”, pois ele apresenta uma visão simplista que não abarca a complexidade da vida contemporânea e das interações políticas construídas nas últimas décadas. Nos últimos 25 anos, iniciativas como o G20, IBAS, BRICS e as Conferências das Partes (COP) têm demonstrado a emergência de um sistema internacional mais diversificado e interdependente. Além disso, o campo das Relações Internacionais tem se enriquecido com novas abordagens teóricas, especialmente aquelas de caráter emancipatório, que buscam repensar o papel e a posição dos países periféricos no sistema internacional, desafiando as narrativas tradicionais centradas em polarizações rígidas.
Referências
FERGUSON, Niall. How to Win the New Cold War: To Compete With China, Trump Should Learn From Reagan. Foreign Affairs, Jan./Feb. 2025. Disponível em: https://www.foreignaffairs.com/united-states/win-new-cold-war-china-trump-niall-ferguson Acesso em: 27 jan. 2025.
PANDYA, Abhinav. How Cold War 2.0 will be different from the first one. Firstpost, 29 dez. 2024. Disponível em: https://www.firstpost.com/opinion/how-cold-war-2-0-will-be-different-from-the-first-one-13848302.html. Acesso em: 27 jan. 2025.
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