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A União Soviética e a influência do marxismo e do ambiente internacional no seu sistema econômico

Neste ano, completam-se trinta anos da dissolução da União Soviética. Mesmo extinta, o debate a respeito das características do sistema econômico soviético e o que contribuiu para o seu colapso continua vivo. O país soviético foi fundado em 1922 após a vitória dos bolcheviques liderados por Vladimir Lenin, e seguiu-se um processo de construção de um Estado socialista sem uma experiência prévia na qual poderia se espelhar. Devastado pela guerra e internacionalmente isolado, a transição para o socialismo ocorreu em meio ao caos econômico e a agitações populares.

Seguiu-se que a consolidação do poder por Josef Stalin deu origem a um sistema vigente caracterizado pelo regime de acumulação de capital extensiva. O modelo deu sinais de esgotamento na década de 1970, com o crescimento econômico dando lugar à estagnação e ampliação da dependência da exportação de petróleo. O Estado soviético teve a implementação dos ideais marxistas limitada pelas influências externas, representadas sobretudo pelo isolacionismo internacional do período da Revolução Russa e a necessidade da sustentação da posição da União Soviética na dinâmica da bipolaridade da balança de poder com os Estados Unidos na Guerra Fria.

O presente trabalho está estruturado numa análise cronológica, percorrendo a trajetória das características do Estado soviético e sua economia, bem como do ambiente externo, para demonstrar que os conflitos internacionais do período tiveram um papel preponderante na elaboração de política externa e econômica, e que, consequentemente, a influência do marxismo se deu mais no campo ideológico do que no econômico. A entrada de Mikhail Gorbachev na secretaria-geral do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) em 1985 e a subsequente implementação da Perestroika significou, no fim, a ruptura das estruturas vigentes com traços socialistas e a eventual dissolução da União Soviética.

Primeiramente, será apresentado um panorama geral dos primeiros anos do Estado soviético e como se realizou a transição para o socialismo. Em seguida, as principais características do sistema econômico soviético, realizada em torno do objetivo de tornar o país em estado de permanente prontidão. Depois, as medidas de Gorbachev na Perestroika, assim como a guinada na política externa soviética na década de 1980. Após as seções voltadas para a constituição do sistema econômico soviético, serão observadas as principais influências externas que pressionaram a União Soviética durante a sua existência. Por fim, será explicitado o fracasso econômico e político da Perestroika e a dissolução do país soviético em 1991. 

Os primeiros anos do Estado soviético

A União Soviética foi um país composto por repúblicas socialistas que viviam em conjunto sob o governo do Partido Comunista da União Soviética em um regime unipartidário. O modelo soviético de gestão da economia era um em que, diferentemente do capitalista, todas as atividades econômicas eram centralizadas e controladas pelo Estado. Não havia divisão entre Estado e economia. O Estado soviético detinha o poder de decisão sobre a produção, salários e consumo e era responsável pelo bem-estar econômico da população. Os empregos e salários eram assegurados pelo Estado, e lojas eram submetidas ao governo, sem geração de lucro e risco de falência. O governo soviético também detinha o controle do comércio exterior, determinando a taxa de câmbio da moeda e supervisionava o direcionamento das importações e exportações, sendo o principal produto da última o petróleo, que era exportado para a obtenção de divisas que garantiriam o acesso à tecnologia do Ocidente.

A situação da União Soviética em seus primeiros anos de existência era difícil. O país era essencialmente rural, economicamente atrasado e devastado pela Revolução de 1917 e pela Guerra Civil, terminada em 1922, bem como internacionalmente isolado. Para piorar, não havia uma experiência prática de uma economia socialista para a qual se basear. Pomeranz (2018, pg. 57-74) estima que o período de transição para a economia socialista conduziu-se da seguinte maneira: i) o “capitalismo de Estado” (10/1917–07/1918); ii) o Comunismo de Guerra (07/1918–03/1921); e iii) a Nova Política Econômica (NEP) (03/1921–final da década de 1920). 

O objetivo da primeira etapa era implantar o controle dos trabalhadores e o programa dos bolcheviques, realizando a nacionalização das terras, dos bancos privados, da indústria de petróleo de Baku e das ferrovias. Outra questão importante do período foi a saída da Primeira Guerra Mundial, com a assinatura do tratado de Brest-Litovsk, em março de 1918. Na segunda fase, o país enfrentava alta inflação e fome, o crescimento do mercado negro e o escalonamento da guerra civil, que restringia o acesso dos soviéticos à fontes de suprimentos essenciais.

Com isso, o líder soviético Vladimir Lenin implementou, em 1919, uma medida (prodrazvyorstka) de confisco de produtos agrícolas dos camponeses para a sustentação do Exército Vermelho no conflito. A medida foi extinta em 1920, em um cenário de colapso do rublo e desorganização econômica geral. Há ampla discussão sobre as razões para a implantação do comunismo de guerra, com explicações variando das necessidades impostas pela guerra civil ou como uma forma de passagem direta ao socialismo. A NEP, por fim, constituiu um retorno ao capitalismo de Estado em uma espécie de economia mista, em um cenário de certa autonomia para a administração dos processos econômicos, mas o controle de setores fundamentais por parte do Estado.

Os conflitos durante o período da existência do país desempenharam um papel preponderante no desenvolvimento da sua política e da economia. Apesar de o marxismo ser inegavelmente o pano de fundo ideológico da URSS, as bases do sistema econômico soviético foram articuladas em favor da mobilização dos recursos naturais do país para garantir o seu estado de prontidão no caso de quaisquer conflitos, representando o abandono ou aplicação incompleta de suas diretivas e a estruturação de um sistema complexo e altamente burocrático.

Com a vitória na Revolução Russa em 1917, os bolcheviques intencionavam implantar no país um novo sistema econômico seguindo os ideais marxistas. Mas, na realidade, por questões históricas e mudança de liderança, e, consequentemente, de direcionamento político, o Estado soviético foi estruturado de forma que algumas ideias de Marx e Engels foram incorporadas integral ou parcialmente, e outras ignoradas, tornando-se um instrumento ideológico:

 O socialismo como realização da liberdade foi convertido em regime de opressão, a ditadura do proletariado se transformou em simples ditadura, a propriedade social dos meios de produção virou propriedade de um Estado dominado por uma elite partidária (MIGLIOLI, 1995, p. 29).

A influência do marxismo na União Soviética viveu o seu auge durante o período imediatamente anterior à Revolução Russa até o primeiro plano quinquenal (1928–1932). Depois disso, durante os anos sob o comando de Josef Stalin, os debates sobre a esfera econômica foram amplamente proibidos (VILELLA, 1968). A consolidação do poder por Stalin representou uma virada em direção da política estatal “socialismo em um só país”, uma ruptura com a linha do período anterior em favor de uma direção autárquica de desenvolvimento interno por meio da industrialização acelerada. 

O isolamento político da União Soviética fez com que o país tivesse que produzir de forma autônoma. A implantação dos planos quinquenais e a coletivização das terras promoveu a rápida industrialização do país já no final da década de 1930, sob o comando de Stalin, que foi o responsável pela estruturação da base do sistema econômico soviético vigente até a Perestroika. Como havia a ausência de um livre mercado e a produção não seria realizada com a intenção de obtenção de lucro, o Gosplan foi criado com a função de estabelecer uma coordenação estatal de produção e implementação, atuando como um organismo responsável pelo planejamento da produção (LANE, 1992). 

O Estado e o sistema econômico soviético pré-Perestroika

Nesta seção, será demonstrado que a construção do Estado soviético se deu mais em torno da ameaça externa e do isolamento internacional, da invasão alemã na Segunda Guerra Mundial e, por fim, da Guerra Fria, do que nos ideais marxistas, levando em conta as pontuações da seção anterior. Tal estruturação eventualmente se provou insustentável frente aos desafios internacionais, e demandou reformas estruturais internas e de política externa, que, no fim, tiveram efeitos indesejados que culminaram no colapso do Estado soviético. Kenneth Waltz (1979) faz a seguinte colocação sobre a estruturação interna de um Estado para a sua sobrevivência no ambiente anárquico do Sistema Internacional:

Deve-se, por exemplo, procurar casos de estados que fazem esforços internos para se fortalecer, por mais desagradáveis ou difíceis que esses esforços possam ser. Os Estados Unidos e a União Soviética após a Segunda Guerra Mundial fornecem tais exemplos: os Estados Unidos por rearmar, apesar de terem demonstrado um forte desejo de não fazê-lo, desmantelando a máquina militar mais poderosa que o mundo já conheceu; a União Soviética, mantendo cerca de três milhões de homens armados, enquanto se esforçava para adquirir uma nova tecnologia militar cara, apesar da terrível destruição que sofrera na guerra. Esses exemplos tendem a confirmar a teoria. Encontramos estados formando equilíbrios de poder, queiram ou não (WALTZ, 1979, P.125 – tradução nossa).

A economia e a política sempre estiveram intimamente conectadas na URSS em razão da indivisão entre o Estado e a economia no socialismo e dos conflitos mencionados que permearam o século XX. Num sistema bipolar como o da Guerra Fria, as duas grandes potências se voltam para o aprimoramento de suas capacidades internas para estarem à altura de seu inimigo externo (WALTZ, 1979, p. 163). Por isso, o aparato estatal soviético priorizava o crescimento econômico e os gastos militares em detrimento dos gastos em bens de consumo por conta da ameaça externa.

Por consequência, havia um descolamento entre as necessidades reais da sociedade e o que era apresentado nos planos de produção pela burocracia representado por um desequilíbrio entre a oferta e a demanda de bens, o que mais tarde se provou um dos entraves para o desenvolvimento econômico e a satisfação das necessidades dos consumidores.

O sistema de planejamento dá às pessoas o que elas desejam produzir, mas as necessidades das pessoas não são totalmente atendidas. Os consumidores têm que pegar o que sai do sistema, mesmo que os produtos materiais e humanos não atendam às suas necessidades. Isso levou à crítica de que os planejadores exerceram uma ‘ditadura das necessidades’ (LANE, 1992, p. 30 – tradução nossa).

Durante a década de 1930, inovações técnicas e formas de produção como o Fordismo foram importadas na economia soviética e generalizadas durante a Segunda Guerra Mundial. O período entre 1950 e 1970 foi de regime de acumulação de capital extensiva, com alta disponibilidade de força de trabalho, que se deslocou da agricultura para as indústrias, e taxas de investimento de 14% para quase 30% entre 1950 e 1973, enquanto o PIB per capita cresceu a taxas inferiores. Os recursos eram voltados para a industrialização rápida, e a parcela disponível para consumo dos mesmos era determinada pelo comando central.

Até a década de 1970, o consumo público não era considerado prioridade, e sim o crescimento econômico, os gastos militares e o consumo de subsistência. A indústria pesada tinha destaque por sustentar o complexo militar-industrial soviético, por conta das hostilidades do exterior representadas principalmente pelos Estados Unidos. As inovações tecnológicas, por sua vez, eram muitas vezes voltadas justamente para o uso militar, e diversos produtos, como os de transporte, tinham uso dual, ou seja, podiam ser usados tanto no setor militar quanto no civil, mas tinham baixa difusão no último. Por essas razões, a economia soviética pode ser caracterizada como em permanente estado de guerra (MAZAT; SERRANO, 2012).

No setor da agricultura, as terras foram coletivizadas com o objetivo de manter uma oferta constante de produtos para a classe trabalhadora. Com o seu deslocamento para as cidades, era preciso investimentos em agricultura para aumentar a produtividade do setor e a expansão das terras cultiváveis, já que o principal entrave no setor era o clima severo que afetava diretamente a performance das colheitas. Contudo, tais investimentos não tiveram grandes retornos, e a agricultura exerceu uma crescente pressão orçamentária no Estado, principalmente na década de 1980.

A economia soviética operava em pleno emprego; e mesmo assim isto não necessariamente significava o pleno uso da mão de obra e eficiência. Pelo contrário, com o passar do tempo, a segurança da disponibilidade de empregos corroeu a disciplina dos trabalhadores: “a provisão de pleno emprego oferece segurança, mas uma consequência indesejada é que a baixa motivação e a má qualidade do trabalho que o acompanha reduzem a capacidade da economia de criar excedente e crescimento (LANE, 1992, p. 34 – tradução nossa)”.

Após viver décadas de crescimento, a partir dos anos 1970 a economia soviética passou para um estágio de desaceleração e estagnação sob a liderança de Leonid Brezhnev (1964–1982). Como dito, a economia soviética era caracterizada por um padrão de crescimento extensivo, isto é, “o crescimento alimentado pelo incremento de recursos humanos, de insumos e de capital. O seu prosseguimento, ao longo dos anos, levou necessariamente à redução da sua disponibilidade e ao seu esgotamento.”(POMERANZ, 2018, p. 128). 

No período, a dependência da exportação do petróleo foi ampliada tornando o país mais vulnerável à sua variação de preços no mercado internacional. Os altos custos de exploração de áreas descobertas na Sibéria por conta do clima extremo local, associados à redução da entrada de divisas de exportações e a escassez de recursos naturais a baixos preços, característico da fase anterior, afetou negativamente o orçamento do Estado e a sua capacidade de investir em inovações tecnológicas para o processo produtivo, que sofria com o envelhecimento de equipamentos disponíveis, baixa produtividade e baixa incorporação à indústria civil.

Durante a Guerra Fria, a exploração de petróleo não foi apenas um apoio para as necessidades do setor militar da União Soviética e de sua economia intensiva em energia, foi também uma peça chave para a integração dos países socialistas da Europa em uma grande área de cooperação econômica, além de prover o acesso à divisas e à tecnologia dos países capitalistas. A agricultura, por sua vez, após a rápida urbanização da população soviética, passava por baixa quantidade e qualidade de comida disponibilizada. Todos esses fatores, somados à pressão orçamentária dos gastos militares com a guerra no Afeganistão e com o relaxamento da disciplina dos trabalhadores, trouxeram à tona a discussão por mudanças (POMERANZ, 2018, pg. 124-129).

Gorbachev e a Perestroika

Mikhail Gorbachev se tornou secretário-geral do PCUS em março de 1985, e foi no 27o Congresso do PCUS, realizado entre fevereiro e março de 1986, que colocou de forma explícita a desaceleração da economia desde a década de 1970:

Por inércia, a economia continuou a se desenvolver amplamente em uma base extensa, sendo orientada para atrair mão-de-obra adicional e recursos materiais para a produção. Como resultado, a taxa de crescimento da produtividade do trabalho e alguns outros indicadores de eficiência caíram substancialmente. As tentativas de retificar as coisas com a realização de novos projetos afetaram o problema do equilíbrio. A economia, apesar dos enormes recursos à sua disposição, enfrentou escassez deles. Surgiu uma lacuna entre as necessidades da sociedade e o nível de produção alcançado, entre a demanda efetiva e a oferta de bens (GORBACHEV, 1986, p. 30 – tradução nossa).

Com a implementação da Perestroika, objetivava-se promover o crescimento econômico acelerado e reagir à Iniciativa de Defesa Estratégica, um programa militar estadunidense lançado pelo então presidente Ronald Reagan, em 1983, num período de renovação das tensões entre os Estados Unidos e a União Soviética, conhecido como “Segunda Guerra Fria”. A essência das reformas no campo econômico primeiramente propostas eram, em suas palavras,

Modernização da economia nacional com base no progresso científico e tecnológico. (…) A substância das mudanças está em deslocar o centro das atenções dos índices quantitativos para a qualidade e a eficiência. (…) Não poderemos fazer modernização técnica a menos que melhoremos radicalmente a construção de capital (GORBACHEV, 1986, p. 32-34 – tradução nossa).

A tarefa demonstrou-se mais complexa do que o imaginado, e acarretou em uma série de acontecimentos não intencionados e fora de seu controle que culminaram no eventual abandono dos traços marxistas da economia e o desmantelamento do Estado soviético.

A interconexão entre a economia e a política logo fez com que as reformas econômicas fossem acompanhadas de reformas políticas. Por isso, a Perestroika operou por meio da reestruturação dos mecanismos da economia soviética e da democratização do controle político da mesma. Acreditava-se que deveriam ser concedidas às instituições e regiões maior autonomia sobre a sua produção, saindo de um modelo administrativo centralizado excessivamente burocrático de manejamento do interesse público para um individualizado.

Seriam também introduzidos mecanismos de mercado e um setor privado, bem os incentivos de lucro e concorrência. A Glasnost proporcionaria uma certa liberdade de opinião e acesso à informação, e Gorbachev esperava que seria uma forma de conquistar apoio da população às reformas, enfraquecer a oposição conservadora resistente às medidas e combater a corrupção, o abuso de poder e o passado repressivo do país. Pessoas e grupos teriam a possibilidade de expressar seus interesses, combatendo o status quo e promovendo o aceleramento da economia. A democratização, no mesmo caminho, fortaleceria o compromisso com as mudanças (LANE, 1992). 

A política externa da URSS deu uma grande guinada no período em direção ao alívio dos compromissos militares que pressionavam os gastos soviéticos, principalmente a corrida armamentista e a presença do Exército Vermelho no Afeganistão iniciada em 1979. No Ocidente, significou a defesa do desarmamento, soluções políticas para conflitos internacionais e um plano de integração ao continente europeu (POMERANZ, 2018, p. 132). Já no bloco socialista, a interrupção da política de intervenções em países do bloco socialista, característica da Doutrina Brezhnev, que visassem frear o descontentamento social com os regimes, porque: 

A segurança universal, nos tempos atuais, repousa no reconhecimento de que todas as nações têm direito à escolha de seus próprios caminhos de desenvolvimento social, na recusa a qualquer interferência em assuntos internos das demais nações, no respeito que deve nortear as relações internacionais e, ao mesmo tempo, na análise objetiva e autocrítica de cada sociedade (GORBACHEV, 1987, p. 165). 

As influências externas

Levando em consideração as questões domésticas da União Soviética, agora vejamos as influências externas. De fato, existiam sérias contradições no sistema econômico soviético, mas elas por si só não explicam o seu rápido desmantelamento, muito menos a evolução da política externa do país durante os seus anos de existência. Foram as pressões externas as determinantes para a estrutura assumida na formação do Estado soviético, o declínio do mesmo e demanda interna por reformas.

Os problemas enfrentados pela União Soviética não eram exclusivos de suas condições econômicas internas, mas sim da resposta das suas autoridades frente à situação no cenário internacional. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos e a União Soviética estavam num conflito conhecido como a Guerra Fria, caracterizado pela bipolaridade de poder entre os Estados norte-americano e soviético, a corrida armamentista e espacial, e guerras localizadas em áreas de influência.

Para a sustentação da posição competitiva da URSS no conflito, havia a mobilização dos recursos nacionais para a indústria militar e o dispêndio de uma parcela substancial da renda do país. A prolongada e agora intensificada pressão nos gastos militares da União Soviética provocada pela mudança na configuração situacional na Guerra Fria a partir da administração de Ronald Reagan (1981–1989) foi um fator fundamental por trás das motivações de Gorbachev para o lançamento da Perestroika.

O governo Reagan intensificou a ofensiva contra a URSS em diversas frentes: suspensão da détente, apoio à ampliação das tensões no Leste Europeu e ao conflito do Afeganistão, embargo ao acesso de divisas na venda de petróleo e gás para a Europa e à tecnologia avançada (MEDEIROS, 2012, p. 19). É indiscutível que nos anos precedentes das reformas promovidas por Gorbachev havia uma escassez de bens de consumo para a população soviética por conta do favorecimento da produção militar, mas a insatisfação da sociedade não é explicação suficiente para o movimento ocorrido, e sim a crise internacional do período (KONTOROVICH, 2001). 

Gorbachev andava na contramão da Doutrina Brezhnev, já mencionada, ao defender que “a corrida armamentista, como a guerra nuclear, não terá vencedores. (…) É hora de esquecer qualquer aspiração imperialista em termos de política externa. Nem a URSS nem os EUA estão em condições de impor seus próprios pontos de vista às demais nações”. (GORBACHEV, 1987, p. 159). A política externa da URSS a partir da entrada de Gorbachev, então, foi direcionada para a redução das intervenções soviéticas e na busca de “tornar mais amistosa a atmosfera internacional.”(GORBACHEV, 1987, p. 160).   

Mesmo assim, as condições negativas do comércio exterior enfraqueceram o Estado soviético, especialmente na questão do petróleo. Em 1973, o petróleo sofreu um boom nas suas exportações após a crise daquele ano. O quadro da década de 1980 foi diferente: os preços internacionais do petróleo começaram a cair desde 1979, e as importações soviéticas de países capitalistas foram reduzidas por causa da retaliação dos Estados Unidos contra a intervenção soviética no Afeganistão, causando a escassez de produtos no mercado interno.

Dada a dependência da exportação de petróleo da URSS, “a partir da década de 1970, a vulnerabilidade externa estrutural tornou-se uma característica permanente da URSS, e o preço muito baixo do petróleo a partir de meados da década de 1980 teve um impacto importante no colapso final do sistema soviético na década seguinte (MAZAT; SERRANO, 2012, p. 24 – tradução nossa)”. 

Os resultados da Perestroika e a dissolução do Estado soviético

As reformas de Gorbachev se provaram um fracasso econômico e político. Em seis anos, a estrutura do poder político da União Soviética foi desmantelada internamente, o PCUS perdeu sua hegemonia e as noções de disciplina e controle foram perdidas. A inflação, revelada no sistema econômico soviético a partir do desabastecimento de produtos e perturbações no mercado, cresceu fortemente, junto com o surgimento de mercados negros, estocagem, especulação, subornos e o crime organizado. O momento era de desorganização, incerteza, instabilidade política derivada de mudanças não implementadas em sua totalidade,  agravamento da crise pré-existente e desemprego (LANE, 1992).

Apesar de Gorbachev ter ganho popularidade no Ocidente, dentro do país a recepção às suas reformas foram menos positivas. O sistema de planejamento centralizado foi desmantelado sem uma substituição efetiva por mecanismos de mercado, o que resultou em  baixa produtividade, escassez e descontentamento social, agora mais evidenciado após as medidas de transparência. A Perestroika, antes um instrumento de realização de reformas econômicas, tornou-se um movimento político e social que escapou do controle e tomou proporções maiores que as antecipadas.

A Glasnost provocou o avanço de movimentos nacionalistas e aspirações separatistas entre as repúblicas soviéticas e o bloco socialista. O declínio do poder do Exército Vermelho, derivado das mudanças na doutrina militar e a derrota no Afeganistão, erodiram o elemento de coesão entre as diferentes nacionalidades e etnias, fomentando ainda mais o separatismo no país (MEDEIROS, 2012, p. 23).

A União Soviética desintegrou-se em 1991, após anos de polarização social e acirramento das disputas entre as repúblicas, de forma não violenta, porém, não menos caótica por conta das políticas adotadas em seus últimos anos de existência, tanto em seu ambiente interno quanto externo. As consequências negativas das reformas (não) implantadas por Gorbachev e a prolongada mobilização dos recursos do país para a sustentação e defesa do seu complexo militar e industrial na dinâmica da Guerra Fria em detrimento de bens de consumo para a população foi tal que a disputa de poder entre EUA e URSS culminou no desaparecimento de um desses Estados. Assim, com a dissolução da União Soviética e o fim da Guerra Fria, a bipolaridade de poderes findou e a ordem internacional sofreu grande transformações em torno do agora indisputável poder dos Estados Unidos: 

Na década de 90, depois do fim da Guerra Fria, recolocou-se, num outro patamar, o problema da anarquia política e da desigualdade econômica no Sistema Mundial, agora com cerca de 195 Estados e ‘quase-Estados’, e sem mais contar com a bipolaridade política e com a ideologia que havia mantido a ‘ordem’ deste imenso universo depois da II Guerra Mundial (FIORI, 2004, p. 49).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo teve por objetivo apresentar um panorama geral dos primeiros anos da União Soviética e a limitação da implantação das ideias marxistas em favor da construção de um Estado altamente hierarquizado e burocrático, com o uso de seus recursos mais para a sustentação do permanente estado de prontidão em razão das hostilidades externas do que para o abastecimento de bens de consumo para a população.

Mais especificamente, sob o olhar de Waltz (1979), vimos que a estruturação da União Soviética se deu na lógica de balanceamento interno para a garantia de sua sobrevivência no ambiente anárquico internacional, por meio da criação de instituições de planejamento de produção e a mobilização de recursos para o seu complexo militar-industrial. Com o tempo, o modelo econômico de acumulação extensiva deu sinais de esgotamento, e as crescentes pressões internacionais desde a entrada de Ronald Reagan na presidência dos Estados Unidos reacenderam as tensões da Guerra Fria e sobrecarregaram o orçamento estatal com as intervenções militares e a vulnerabilidade aos preços do petróleo, dada a sua dependência de exportação para o financiamento.

O declínio econômico da União Soviética foi um dos impulsionadores para as mudanças promovidas por Mikhail Gorbachev. As mudanças estruturais na economia foram intrinsecamente conectadas com a política, já que o aparato político do Estado soviético intervia nas operações econômicas para a conquista de objetivos políticos dentro e fora do país.

No entanto, as reformas foram implantadas de forma incompleta e, por resultado, as fortes consequências negativas não planejadas das mesmas, como o acirramento das disputas internas, desabastecimento, desemprego e inflação, corroeram a legitimidade do Estado soviético, desmontaram a sua estrutura econômica e culminaram no seu desaparecimento e, em seguida, os Estados Unidos desfrutaram indiscutível poder no ambiente internacional. 

Referências bibliográficas

FIORI, J. L. da C. Formação, Expansão e Limites do Poder Global, in: José L. da C. (org.) O Poder Americano, Editora Vozes, Petrópolis, 2004. 

GORBACHEV, M. Political Report of the CSPU Central Committee to the 27th Party Congress. Moscow: Novosti Press Agency Publishing House, 1986.

_______. Perestroika: novas ideias para o meu país e o mundo. Editora Best Seller, 1987.

KONTOROVICH, V. Economists, Soviet economic reforms, and the collapse. 2001.

LANE, D. Soviet society under Perestroika. Londres: Routledge, 1992.

MIGLIOLI, J. O marxismo e o sistema econômico soviético. Crítica Marxista, São Paulo, Brasiliense, v.1, n.2, 1995, p.28-48.

NOVE, A. An Economic History of the USSR 1917-1991. Londres: Penguin Books, 1992.

POMERANZ, L. Do socialismo soviético ao capitalismo russo. São Paulo: Ateliê Editorial, 2018.

WALTZ, K. Theory of  International Politics. Nova Iorque: McGraw-Hill, 1979.

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