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Os Estados Unidos vão invadir a Venezuela? As chances são pequenas – mas o problema é grande
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Os Estados Unidos vão invadir a Venezuela? As chances são pequenas – mas o problema é grande

Photo by Jorge Salvador on Unsplash

A probabilidade de uma invasão da Venezuela pelos Estados Unidos é, no momento, muito pequena. Contudo, o simples fato de uma hipotética invasão estar sendo discutida sugere um retorno explícito à lógica das esferas de influência que marcou a Guerra Fria, quando o governo dos Estados Unidos enfraquecia ou derrubava governos considerados hostis.

Trump tem deixado claro que deseja restaurar o papel dos Estados Unidos como xerife das Américas. Ele celebrou a Doutrina Monroe, de 1823, e a incluiu como parte da nova Estratégia de Segurança Nacional, recentemente publicada.

Ele retoma, assim, a ideia de que os Estados Unidos veem o restante das Américas como seu Lebensraum, isto é, seu “espaço vital”, conceito criado no começo do século 20 pelo geógrafo alemão Friedrich Ratzel, pai da chamada Antropogeografia, que considerava que “toda a sociedade, em um determinado grau de desenvolvimento, deve conquistar territórios onde as pessoas são menos desenvolvidas”.

Em novembro de 2025, forças dos Estados Unidos iniciaram no Caribe a “Operação Lança do Sul”, oficialmente de combate ao narcotráfico, mas cujo objetivo é sinalizar que o Caribe funciona estrategicamente como uma extensão territorial dos Estados Unidos, parte do seu homeland.

Mas, pelo menos por enquanto, as ameaças contra a Venezuela não se traduzem em preparação concreta para uma operação militar de grande escala. Um dos mais importantes indicadores é o número de tropas dos Estados Unidos no sul do Caribe, hoje em torno de 15 mil. Há cerca de cinco mil militares em Porto Rico, outros cinco mil no grupo de ataque do porta-aviões Gerald R. Ford, e aproximadamente cinco mil distribuídos em outras embarcações, um contingente insuficiente para uma invasão.

Como referência, as duas últimas invasões militares dos Estados Unidos nas Américas foram no Panamá (1989) e no Haiti (1994). No Panamá, a Operação Just Cause mobilizou cerca de 27 mil soldados para derrubar Manuel Noriega.

No Haiti, a operação Uphold Democracy, autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU, envolveu aproximadamente 25 mil militares. Tanto o Panamá como o Haiti são territórios muito menores que a Venezuela, que tem mais de 12 vezes a extensão do Panamá e 30 vezes a do Haiti. A população venezuelana, em torno de 30 milhões, também é muito maior que os 2,4 milhões do Panamá (em 1989) e os 7,4 milhões do Haiti (em 1994).

Há ainda obstáculos geográficos e políticos

No momento, não existe possibilidade realista de uma invasão terrestre. Esta exigiria um desembarque anfíbio, uma operação muito mais complexa e custosa. Do ponto de vista militar, seria necessário algum grau de apoio dentro do continente, o que dependeria da autorização de Brasil, Colômbia ou Guiana.

Brasil e Colômbia certamente não permitiriam o uso de seus territórios. Já a Guiana tem expressado apoioaos ataques aéreos dos Estados Unidos no Caribe e recebeu, em novembro deste ano, o chefe do Comando Sul, Almirante Alvin Hosey. Contudo, a área fronteiriça com a Venezuela é remota e coberta por floresta densa, inviável para operações de larga escala. Em termos estritamente militares, a rota mais lógica seria pela Colômbia.

Isso levanta a pergunta: qual o sentido de deslocar tropas adicionais para o Caribe e realizar ataques aéreos contra (reais ou supostos) narcotraficantes? Trata-se de uma forma relativamente barata e de baixo risco de demonstrar à opinião pública nos Estados Unidos que o governo está agindo, além de sinalizar que o Caribe funciona estrategicamente como um lago no quintal dos Estados Unidos.

Não há risco de resposta por parte de grupos criminosos ou do governo venezuelano, e ações contra o narcotráfico têm apoio da maior parte da base de Trump. Entre os que se identificam como republicanos, cerca de 58% apoiam os ataques aéreos no Caribe e 27% se opõem; entre democratas, apenas 8% apoiam e 76% se opõem.

“Mostrar bandeira” e interesses econômicos

Essas ações funcionam também como pressão política contra o governo Maduro: na linguagem naval, uma operação de “mostrar bandeira”. É um recado de que o governo dos Estados Unidos não está satisfeito com a permanência de Maduro no poder. As razões para tanto são provavelmente uma combinação de objetivos migratórios, econômicos e geopolíticos que, para Trump e seus apoiadores, são necessários para implementar uma abordagem de America First.

Atualmente, há cerca de 700 mil venezuelanos nos Estados Unidos sem cidadania americana, que Trump e seus apoiadores gostariam de ver fora do país, mas que dificilmente retornariam voluntariamente à Venezuela sem uma mudança de regime.

Além disso, uma Venezuela pós-Maduro permitiria a empresas dos Estados Unidos acessar imensas reservas de petróleo, atualmente estimadas em cerca de 17% das reservas globais. Ainda que os Estados Unidos tenham hoje autonomia energética, os ganhos potenciais são muito grandes para serem ignorados. Isso vale não apenas pelo petróleo em si, mas também porque controlar o petróleo venezuelano significa, em grande medida, controlar o país.

Venezuela produz hoje cerca de 1 milhão de barris por dia, frente aos cerca de 3,5 milhões do final dos anos 1990. Diversas empresas dos Estados Unidos têm capacidade de extrair e refinar petróleo pesado, incluindo a Chevron, que opera atualmente na Venezuela. E transportar petróleo da Venezuela para refinarias no Golfo do México seria relativamente barato e conveniente.

Um governo venezuelano aliado daria ainda ao governo dos Estados Unidos amplo acesso às elites do país e permitiria a exclusão (ainda que parcial) de países rivais. Como exemplo, em uma Venezuela pós-Maduro, os Estados Unidos poderiam limitar o acesso de empresas de outros países ao petróleo do país, como as da China e do Irã, que têm auxiliado a Venezuela a recuperar parte da produção.

Para além do petróleo, a infraestrutura venezuelana se degradou ao longo dos últimos anos, requerendo amplos investimentos voltados à sua recuperação, os quais poderiam ser realizados e financiados por empresas dos Estados Unidos. A nova Estratégia de Segurança Nacional coloca que a participação em projetos de infraestrutura no hemisfério é uma prioridade, e que o governo dos Estados Unidos atuará para remover empresas estrangeiras que constroem infraestrutura na região.

Mesmo assim, há uma longa distância entre a situação atual e uma invasão destinada a derrubar Nicolás Maduro. Um cenário mais plausível é o de ataques aéreos contra alvos em território venezuelano. Alguns poderiam ser ligados ao narcotráfico, o que possui maior legitimidade doméstica nos Estados Unidos, mas outros poderiam ter natureza militar.

Exemplo disso seriam ataques contra a infraestrutura de defesa aérea venezuelana, a qual é relativamente robusta. O objetivo seria negar às Forças Armadas venezuelanas o controle do espaço aéreo. Contudo, esse tipo de ação seria percebido na Venezuela como um ato de guerra.

Ainda assim, estas ações dificilmente levariam ao colapso do governo Maduro. Ao contrário, poderiam gerar uma onda de fortalecimento do nacionalismo venezuelano e latino-americano, ampliando o desgaste dos Estados Unidos junto a governos e outros atores na América Latina.

No momento, a dinâmica mais provável de levar a uma queda do governo Maduro seria uma ampla mobilização interna, acompanhada de rupturas nos grupos que sustentam o regime.

Este artigo, intitulado “Os Estados Unidos vão invadir a Venezuela? As chances são pequenas – mas o problema é grande”, de autoria de Rodrigo Fracalossi de Moraes, Fellow em Relações Internacionais na University of Southampton, foi publicado originalmente em The Conversation. Está licenciado sob Creative Commons – Atribuição-SemDerivações 4.0 Internacional (CC BY-ND 4.0).

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