Há quem diga que a história da humanidade é contada pelas guerras. Seria simplório demais acreditar que somente a ambição move o mundo. Existem múltiplos exemplos de seres humanos que fizeram história pela grandeza e bravura dos seus atos que transcendem gerações.
Ainda que a paz tenha sido conquistada, sob diversos aspectos, o seu preço foi alto. Os prejuízos humanos, materiais e financeiros são incalculáveis e foram potencializados ao longo dos séculos. A dinâmica da guerra deixou de ter o caráter local para se tornar global, a exemplo das duas grandes guerras mundiais, que influenciaram as regiões mais remotas do planeta.
O século XX iniciou-se com a expectativa da aurora humana. As constantes inovações prometiam simplificar a rotina e melhorar a qualidade de vida. Os progressos na área médica prolongaram a vida e diversas doenças passaram a ter cura. A humanidade alcançou os céus, reduzindo o tempo de viagem entre as localidades. “A grande marca do século XX foi a tecnologia e a ideia de que ela nos emanciparia e nos libertaria” (SCHWARCZ, 2020, p. 6). Quem poderia utilizar dessas maravilhas para atingir objetivos egoístas?
O progresso tecnológico e científico também ocorreu na indústria bélica. Novos armamentos e equipamentos foram desenvolvidos, o que garantia a defesa e supremacia militar das grandes potências. Entre as piores e mais devastadoras armas já criadas, as armas químicas provocaram grandes estragos e horrores até então inimagináveis entre os povos participantes da guerra. “[…], a Primeira Guerra mostrou como esses mesmos povos estavam mais próximos da barbárie e da destruição, e o conflito retirou todo o lustro civilizatório da Belle Époque europeia” (SCHWARCZ, 2020, p. 6).
Como forma de evitar a ocorrência de conflitos e o uso desses armamentos, foi criada a Convenção de Armas Químicas em 1997 em Haia, Holanda. Dentre seus principais objetivos, a eliminação de dessas armas e a não proliferação das mesmas, auxilia a restrição do uso comercial dos produtos e continua fiscalização. A Organização Para Proibição de Armas realiza consultas rotineiras e sem avisos prévios, aferindo se os países membros estão cumprindo o tratado. Os Estados que assinam a convenção, se comprometem em estabelecer ações de combate a produção e disseminação de armas químicas. Entretanto, somente os países que ratificam o acordo que possuem vinculação a ele.
Conceitualmente, segundo a Convenção de Armas Químicas, armas químicas significam as seguintes definições consecutivas, tanto junta quanto juntamente: a) “químicos tóxicos e seus precursores, exceto onde intencionados para propósitos não proibidos sob esta Convenção, com tanto que os tipos e quantidade estejam consistentes com tais propósitos” (OPCW, 1997, p. 3, tradução nossa); b) munições e equipamentos, especificamente desenhados para causar morte ou outros malefícios através de propriedades tóxicas desses químicos tóxicos especificadas no subparágrafo (a), as quais deveriam ser liberadas como um resultado do emprego de tais munições e equipamentos; (OPCW, 1997, p. 3, tradução nossa (c) “qualquer equipamento especificamente desenhado para uso diretamente em conexão com o emprego de munições e equipamentos especificados no subparágrafo (b)” (OPCW, 1997, p. 3, tradução nossa). Para concluir, a Convenção define tóxicos químicos como: qualquer químico o qual através sua ação química age nos processos vitais pode causar incapacitação temporária ou dano permanente a humanos ou animais. Isso inclui todos os químicos, independente de suas origens ou de seus métodos de produção, e independente se eles são produzidos em estruturas, em munições ou qualquer outro lugar” (OPCW, 1997, p. tradução nossa)
Logo, bombas e equipamentos de artilharia não se adequam a esta definição. Para que algo seja considerado como arma química, é preciso que seus efeitos ajam e produzam efeitos no organismo por suas composições químicas.
A Primeira Guerra Mundial testemunhou a carnificina gerada por esses armamentos. Os gases cloro e mostarda provocaram milhares de mortos e graves queimaduras nos corpos das vítimas chegando, aproximadamente, a mais de 100.000 fatalidades provenientes desse tipo de armamento (ONU, [s.d.]). A escala de alvos atingidos ampliou-se, o que fez com que os países estimulassem o uso dessa nova tática militar.
Devido os estragos causados, após o fim da primeira guerra, o Protocolo de Genebra de 1925 proibiu o uso desses armamentos, porém eles continuaram a ser utilizados ao longo do século XX. Durante a guerra do Vietnã, os Estados Unidos utilizaram o agente laranja que culminou na morte de milhares de vietcongues, além de contaminar o solo e a água da região (NEILANDS, 1970).
Finalmente, em 1997 a Convenção de Armas Químicas determinou que a proibição na produção, armazenagem e uso de armas químicas. O documento foi assinado por 191 países e foi um marco ao legislar sobre o preocupante tema. Porém, mesmo com os avanços legais, o mecanismo falhou ao recordar as milhares de vítimas, tanto mortos, quanto feridos. Até que em 2015, durante a 20° edição da Conferência dos Estados Partes da Organização para Proibição de Armas Químicas, a data de recordação para as vítimas foi instituída. O dia 30 de novembro passa a ser utilizado para que a memória de tantas vidas perdidas seja recordada e que suas histórias sejam contadas.
No entanto, por que a criação de um dia específico para relembrar as vítimas dessas armas é relevante? A importância das memórias é de total significação para o reconhecimento e lembranças de traumas vividos pela humanidade. Um exemplo atual disso, é visto na Alemanha em relação ao Holocausto. Apesar dos judeus terem sido o alvo principal das políticas de extermínio da Terceiro Reich, “essa política semântica, consignada em memórias e datas […] é importante como parte do reconhecimento do Holocausto não como uma questão judaica ou alemã, mas como uma tragédia de significado universal […]” (LEWGOY, 2010, p. 52). Então, a memória, ou seja, “a referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementariedade, mas também as oposições irredutíveis” (POLLAK, 1989, p. 9)
Além de resgatar essa lembrança, essa data faz com que as nações sejam lembradas da importância de não contribuir para esse tipo de armamento. Isso fica ainda mais evidente quando é visto que quatro países (Egito, Israel, Sudão do Sul e Coreia do Norte) não ratificaram o tratado de não-proliferação (OPCW, 2018). Cabe dizer, também, que o uso de armas químicas não ficou no passado. O seu uso durante a guerra da Síria mostrou que a humanidade ainda vive sob o risco dessa ameaça (BBC NEWS, 2018).
Em agosto de 2013, na cidade de Ghouta, subúrbio de Damasco, o governo sírio realizou diversos ataques utilizando gás Sarin nos rebeldes. Não há precisão no número de mortos, que podem chegar até 1700. Em 2018 um novo ataque com armas químicas foi registrado, porém o governo negou que foi o autor. Em represália, EUA, França e Reino Unido promoveram ataques em áreas estratégicas, suspeitas de serem redutos de produção de tais armas.
Bibliografia
BBC NEWS. Como armas químicas ajudaram Assad a estar perto da vitória na Síria BBC News Brasil. 2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-45816458. Acesso em: 22 out. 2021.
LEWGOY, Bernardo. Holocausto, trauma e memória. WebMosaica, [S. l.], v. 2, n. 1, 2010.
NEILANDS, J. B. Vietnam: Progress of the chemical war. Asian Survey, [S. l.], v. 10, n. 3, p. 209–229, 1970.
ONU. Day of Remembrance for all Victims of Chemical Warfare . [s.d.]. Disponível em: https://www.un.org/en/observances/chemical-warfare-victims-day. Acesso em: 22 out. 2021.
OPCW. Convention on the Prohibition of the Development, Production, Stockpiling and Use of Chemical Weapons and on their DestructionThe Hague, 1997. Disponível em: https://www.opcw.org/sites/default/files/documents/CWC/CWC_en.pdf. Acesso em: 22 out. 2021.
OPCW. Evolution of the Status of Participation in the Convention OPCW. 2018. Disponível em: https://www.opcw.org/evolution-status-participation-convention. Acesso em: 22 out. 2021.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Revista estudos históricos, [S. l.], v. 2, n. 3, p. 3–15, 1989.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Quando acaba o século XX. [s.l.] : Companhia das Letras, 2020.