Ao completar dois anos do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, o Brasil vive um momento singular em sua trajetória política e diplomática. Esse período tem sido marcado por esforços para reposicionar o país em agendas prioritárias, como meio ambiente, mudanças climáticas e comércio de commodities agrícolas, bem como para reconstruir sua imagem internacional após o governo Bolsonaro, caracterizado por um alinhamento estreito com os Estados Unidos e por uma gestão controversa da pandemia. O objetivo tem sido estabelecer bases para uma inserção internacional mais autônoma, equilibrada e influente.
Sumário
A política externa, eixo central da estratégia governamental, tornou-se um dos principais instrumentos para reposicionar o Brasil no sistema internacional, destacando-se pelo seu foco no multilateralismo, na busca por soluções sustentáveis e na promoção da paz.
Nesses dois anos, a administração Lula buscou equilibrar desafios internos e externos, redesenhando relações bilaterais com grandes potências e países emergentes, além de liderar iniciativas multilaterais voltadas para questões como mudanças climáticas, desigualdade, segurança alimentar e paz internacional. O governo também enfrentou o desafio de alinhar uma visão moderna de soberania com a realidade de um mundo multipolar em constante transformação. Essa abordagem não apenas reflete a tradição diplomática brasileira de buscar o equilíbrio entre cooperação e autonomia, mas também evidencia a ambição de desempenhar um papel mais ativo na construção de uma ordem internacional mais inclusiva.
O terceiro mandato de Lula tem sido caracterizado por uma série de iniciativas que destacam a complexidade e a abrangência da política externa brasileira. O país tem trabalhado para recuperar espaços perdidos em organizações multilaterais, fortalecer alianças com o Sul Global e reposicionar-se como um líder na agenda ambiental, ao mesmo tempo em que busca diversificar suas parcerias econômicas e comerciais. Este artigo examina os principais marcos, desafios e fracassos dessa administração, oferecendo uma análise abrangente sobre como o governo tem atuado para reposicionar o Brasil como um ator relevante e confiável no cenário internacional.
Principais marcos
Um dos marcos mais significativos do terceiro mandato de Lula foi o retorno ao protagonismo internacional. Sob sua liderança, o Brasil reassumiu uma posição central em cúpulas como o G20, o grupo BRICS e a Conferência das Partes sobre Mudanças Climáticas (COP). A abordagem adotada por Lula buscou promover uma agenda ambiciosa de reforma da governança internacional, incluindo a ampliação do Conselho de Segurança da ONU e a reformulação do sistema financeiro internacional. Durante a presidência rotativa do G20, o Brasil priorizou o combate à fome, à pobreza e à desigualdade, assim como a transição para uma economia verde, consolidando-se como um ator de liderança ambiental. Em iniciativas mais específicas, a promoção de financiamentos sustentáveis e a defesa de soluções multilaterais para a crise climática destacaram o Brasil como um país comprometido com o futuro do planeta.
Outro marco importante foi o fortalecimento das relações Sul-Sul. O Brasil reforçou laços com países da África e Ásia e aprofundou a parceria com a China, consolidando o BRICS como um grupo relevante na promoção de um sistema internacional multipolar. Essa cooperação também se manifestou no apoio a iniciativas de infraestrutura no Sul Global e no fortalecimento de redes de cooperação técnica, com o Brasil utilizando sua experiência em agricultura e energia renovável para contribuir com soluções em outros países. Esse movimento buscou equilibrar as relações do Brasil com grandes potências, como os Estados Unidos e a União Europeia, que permanecem parceiros estratégicos, mas enfrentaram tensões devido às posições independentes adotadas pelo governo brasileiro.
A diplomacia presidencial, marca registrada do estilo de liderança de Lula, também ressurgiu como elemento-chave de sua política externa. O presidente realizou mais de 30 visitas internacionais em dois anos, destacando-se como um mediador em conflitos complexos e propondo a criação de um “Clube da Paz” para promover soluções diplomáticas na Guerra da Ucrânia. Além disso, Lula utilizou esses encontros para promover a inclusão de países do Sul Global em organismos internacionais, como o G20 e o Conselho de Segurança da ONU, reafirmando o compromisso do Brasil com a multipolaridade e o multilateralismo.
Um aspecto adicional digno de nota foi a liderança do Brasil na promoção da justiça climática e da transição verde, que incluiu a realização da Cúpula Amazônica, em Belém, durante o primeiro ano de governo. Esse evento reuniu líderes de países amazônicos para debater a preservação do bioma, reforçando a importância da cooperação regional na proteção ambiental e no combate ao desmatamento. Durante a cúpula, o Brasil destacou seu compromisso em liderar ações conjuntas na Amazônia, alinhando esforços para mitigar os impactos das mudanças climáticas e promover o desenvolvimento sustentável na região.
Além disso, a proposta de criação de um fundo internacional para o combate ao desmatamento ganhou destaque. Defendida por Lula em diversos fóruns internacionais, essa iniciativa busca que países ricos contribuam financeiramente para a preservação das florestas tropicais e para o financiamento de tecnologias sustentáveis nos países em desenvolvimento. Tais ações consolidam o Brasil como um ator-chave no debate sobre sustentabilidade internacional, equilibrando interesses ambientais com prioridades econômicas e reforçando sua posição de liderança em temas de governança ambiental e justiça climática.
Por fim, o terceiro mandato também trouxe uma reconfiguração das políticas comerciais. A diversificação de mercados foi uma prioridade, com destaque para as negociações de acordos bilaterais e plurilaterais, buscando expandir o alcance do agronegócio brasileiro e incluir produtos de maior valor agregado na pauta de exportações. A reaproximação com mercados africanos, há muito negligenciados, simboliza a tentativa de construir uma inserção comercial mais diversificada e resiliente para o Brasil. Essa reorientação comercial reforça a narrativa de que o país busca uma maior autonomia estratégica em sua política externa.
Os Desafios e as Limitações do Governo
Apesar dos avanços alcançados, tidos como limitados ou tímidos, o governo Lula enfrentou uma série de desafios significativos que testaram a viabilidade de sua agenda ambiciosa. Internamente, a polarização política no Brasil continuou a influenciar a percepção da política externa, criando divisões entre diferentes segmentos da sociedade. Enquanto parte da população apoiava o retorno do Brasil ao protagonismo internacional, outros criticavam o que consideravam um alinhamento insuficiente com aliados tradicionais do Ocidente. A postura de neutralidade ativa, adotada pelo governo em relação a grandes potências como Estados Unidos e China, foi alvo de críticas, especialmente no contexto da Guerra na Ucrânia, onde o papel mediador do Brasil gerou desconfianças e expectativas não correspondidas.
No campo institucional, o Itamaraty enfrentou sérias limitações estruturais que comprometeram a implementação plena da agenda internacional do governo. A escassez de recursos humanos e financeiros foi uma barreira significativa, expondo fragilidades na capacidade operacional do Ministério das Relações Exteriores. A modernização da diplomacia consular, essencial para atender à crescente população brasileira no exterior, e o aumento da representação feminina e de grupos minoritários no corpo diplomático continuam sendo desafios urgentes. Essa falta de diversidade nos quadros do Itamaraty não apenas limita a inclusão, mas também impede que a política externa reflita plenamente a pluralidade da sociedade brasileira.
Regionalmente, a busca por liderança esbarrou em obstáculos complexos. A crise na Venezuela, por exemplo, ilustra os limites da capacidade brasileira de mediar conflitos políticos em contextos de extrema polarização. As negociações bilaterais com o Paraguai sobre Itaipu também se mostraram desafiadoras, destacando as dificuldades de conciliar interesses nacionais e regionais. A rejeição da Argentina em integrar o BRICS, após forte apoio do Brasil à sua inclusão, sublinhou as divergências internas no bloco e a complexidade de liderar uma região marcada por interesses diversos e frequentemente conflitantes.
No plano extra-regional, as negociações para um acordo birregional entre o Mercosul e a União Europeia, embora tenham avançado, enfrentaram grandes resistências antes de sua conclusão, evidenciando as dificuldades de promover uma agenda comercial em tempos de crescentes protecionismos internacionais. O processo de negociação foi marcado por divergências significativas, incluindo barreiras tarifárias e exigências regulatórias ambientais, que refletem a complexidade de alinhar interesses econômicos distintos entre os blocos.
Esse acordo é visto como um esforço estratégico tanto da União Europeia quanto do Brasil para reforçarem suas posições e relevâncias, em um contexto de disputa econômica e política crescente entre os Estados Unidos e a China. No entanto, as resistências encontradas ao longo das negociações sublinham a necessidade de maior engajamento diplomático, não apenas para superar desentendimentos, mas também para consolidar o papel do Brasil e do Mercosul como parceiros confiáveis e influentes em uma ordem econômica marcada por desafios estruturais e competições estratégicas.
Esses desafios, embora significativos, também oferecem lições importantes para o governo. A necessidade de fortalecer a capacidade institucional, diversificar os canais de diálogo internacional e promover maior coesão regional destaca-se como prioridade para garantir que o Brasil não apenas mantenha, mas expanda sua relevância no sistema internacional.
Lições a Serem Aprendidas
Embora o Brasil tenha se posicionado como um ator relevante no cenário internacional, em particular pela coincidência da presidência do G20 em 2024, os dois primeiros anos do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva revelam desafios estruturais e conjunturais que limitam o alcance das ambições diplomáticas do governo. Apesar de avanços em áreas específicas, questões importantes permanecem, destacando as dificuldades de traduzir discursos em resultados concretos e evidenciando as lições necessárias para uma atuação internacional mais eficaz.
A proposta brasileira de ampliar o Conselho de Segurança da ONU, um dos pilares da política externa de Lula, enfrenta resistências históricas de grandes potências como os Estados Unidos, França e Inglaterra, que apesar de no discurso se apresentarem como favoráveis em alguma medida, pouco fizeram/fazem para alterar a dinâmica de poder vigente. Apesar da retórica de inclusão e reforma, a falta de progressos concretos reflete a complexidade de se alinhar interesses divergentes e a ausência de uma estratégia clara para superar esses obstáculos. O Brasil também enfrenta dificuldades em transformar o BRICS em um instrumento prático para avançar suas prioridades, evidenciando as limitações de atuar em coalizões marcadas por interesses heterogêneos.
Diplomacia do Conhecimento e a Negligência em Ciência e Tecnologia
A diplomacia do conhecimento, que deveria posicionar o Brasil como um ator relevante em inovação, ciência e tecnologia, não recebeu a atenção necessária. O subinvestimento em pesquisa e desenvolvimento compromete a capacidade do país de se destacar em áreas como transição energética e economia digital, temas centrais no debate contemporâneo. Essa negligência contrasta com o papel de liderança ambiental que o Brasil almeja, evidenciando uma lacuna entre discurso e prática.
Tensões Diplomáticas e Sensibilidades Geopolíticas
A relação com Israel enfrentou uma crise diplomática significativa após as declarações do presidente Lula, que classificou as ações de Israel em Gaza como genocídio e, em um momento, as comparou ao Holocausto. Essa posição provocou reações duras do governo israelense, que declarou Lula como persona non grata, um gesto diplomático extremo que simboliza o agravamento das tensões bilaterais. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e o chanceler Israel Katz criticaram publicamente as falas, demandando retratações que não foram atendidas, ampliando o desgaste na relação.
Internamente, as declarações geraram debates acalorados sobre os limites da retórica presidencial em questões internacionais sensíveis, especialmente considerando os impactos sobre agronegócio e evangélicos. Externamente, a polêmica destacou os desafios do Brasil em equilibrar seu tradicional papel de mediador e defensor de direitos humanos com as sensibilidades de aliados estratégicos.
As reações internacionais também expuseram as dificuldades do Brasil em manejar as complexidades da diplomacia contemporânea. A postura de Lula, embora consistente com os princípios históricos da política externa brasileira de defesa dos direitos humanos, foi percebida como desproporcional e polarizadora, afetando a imagem de neutralidade ativa que o país busca projetar. Além disso, a falta de ações concretas para promover um diálogo mais amplo entre as partes envolvidas evidenciou fragilidades na estratégia brasileira para influenciar positivamente cenários de conflito.
Por fim, as declarações trouxeram à tona a necessidade de um maior alinhamento entre a retórica presidencial e as práticas diplomáticas, especialmente em situações de alta complexidade geopolítica. Esse episódio serve como um lembrete de que, para consolidar sua posição como liderança internacional, o Brasil precisa equilibrar princípios éticos com pragmatismo político, evitando ações que comprometam relações estratégicas sem ganhos diplomáticos claros.
Conclusão
Os dois primeiros anos do terceiro governo Lula ilustram tanto o potencial quanto os limites de uma política externa marcada por ambição e renovação. O Brasil conseguiu recuperar parte de seu protagonismo no cenário internacional, contudo, os desafios persistem: as dificuldades em concretizar reformas na governança internacional, em gerenciar crises regionais e em equilibrar interesses estratégicos evidenciam a complexidade de atuar em um sistema internacional cada vez mais competitivo e fragmentado.
O principal teste para a segunda metade do governo Lula será conciliar suas aspirações internacionais com as demandas internas, garantindo que a política externa não apenas projete influência, mas também gere benefícios concretos para o país. Para isso, será necessário reforçar a capacidade institucional do Itamaraty, diversificar parcerias estratégicas e promover uma diplomacia que una pragmatismo, coerência e a tradição brasileira de diálogo e neutralidade ativa.
O futuro da política externa brasileira dependerá de sua habilidade de adaptar-se às rápidas transformações do cenário internacional, preservando seus princípios históricos enquanto enfrenta desafios contemporâneos. Lula e sua equipe têm diante de si a oportunidade de consolidar uma posição de relevância mundial para o Brasil, desde que consigam transformar discursos em ações efetivas e construir pontes, tanto dentro quanto fora de suas fronteiras.
Referências
- Lopes, Dawisson Belém. Foreign Policy in the Inaugural Year of the Third Lula Administration: Campaign Promises, Achievements, and Preliminary Impacts. Revista Brasileira de Política Internacional, YEAR 3 / No. 9 / JAN-MAR 2024.
- G1. Após polêmica, Lula volta a dizer que Israel pratica genocídio em Gaza. Pedro Henrique Gomes, g1, Brasília, 23/02/2024. Disponível em: https://www.g1.globo.com.