Em 11 de dezembro de 1964, a Assembleia Geral das Nações Unidas presenciou uma cena inusitada: o médico guerrilheiro argentino Ernesto Che Guevara, ministro da recém-revolucionária Cuba, subia à tribuna em Nova York para representar oficialmente seu país diante do sistema internacional. A presença de Che, vestido com seu tradicional uniforme militar e sem gravata, já era por si só uma provocação aos códigos diplomáticos tradicionais da política internacional. Mas foi em seu discurso – firme, combativo e carregado de denúncias – que se expressou com nitidez o projeto cubano de um internacionalismo revolucionário que desafiava abertamente as potências ocidentais e os fundamentos do sistema interestatal liberal.
Sumário
O momento não poderia ser mais simbólico: 1964 marcou o auge das tensões da Guerra Fria, o aprofundamento da polarização ideológica e o fortalecimento das lutas anticoloniais na África e na Ásia. Ao ocupar aquele espaço, Che não representava apenas o governo de Cuba, mas buscava falar em nome do Terceiro Mundo insurgente — o bloco de países recém-independentes ou em luta contra a dominação colonial, econômica e militar do Norte Global. A sua presença na ONU, portanto, deve ser compreendida como uma ação estratégica de diplomacia pública radical, que tensionava os limites da ordem internacional e propunha uma nova concepção de solidariedade entre os povos.
Para além de um ato simbólico, o discurso de Che na ONU expressava um pensamento geopolítico coerente, baseado em sua crítica ao imperialismo, sua defesa da autodeterminação dos povos e a crença na luta armada como instrumento legítimo de emancipação. Como observa o pesquisador Michel Löwy (2007), Che se posicionava claramente contra a “ordem mundial burguesa” e via as instituições multilaterais como parte do aparato que sustentava a dominação do capital sobre os povos do Sul. A ONU era, para ele, simultaneamente uma arena de disputa e um instrumento cooptado pelas grandes potências.
Neste sentido, a atuação de Che como diplomata não deve ser lida como contradição com seu papel de guerrilheiro, mas como parte de uma estratégia ampla de enfrentamento à hegemonia internacional. Como aponta Frei Betto (2003), Che compreendia a diplomacia como mais uma frente de combate, e sua presença na ONU reafirmava o princípio de que os povos colonizados e oprimidos deveriam tomar a palavra e romper com as fórmulas impostas pelos centros de poder.
O Che da ONU é, portanto, o Che que carrega o fuzil em uma mão e a denúncia internacional na outra — aquele que entende o mundo como campo de batalha ideológica, em que a guerra não se dá apenas nas selvas da Bolívia ou nas montanhas da Serra Maestra, mas também nas cúpulas diplomáticas e fóruns internacionais. Ao subir à tribuna da Assembleia Geral, Che não pedia reconhecimento, mas sim justiça. Sua fala foi um grito contra o imperialismo, o racismo, a desigualdade estrutural e o papel cúmplice das grandes potências nos processos de dominação.
A presença de Che na ONU consolidou sua imagem de líder internacional e colocou Cuba no centro do debate sobre os rumos do sistema mundial. Mais que um gesto retórico, foi uma ação política que inseriu os movimentos revolucionários latino-americanos na geopolítica global, desafiando o monopólio discursivo das potências ocidentais.

O contexto histórico do discurso (1964): Guerra Fria, descolonização e insurgência no Sul Global
O discurso de Che Guevara na ONU, em dezembro de 1964, deve ser compreendido à luz das tensões estruturais do sistema internacional daquele momento. A década de 1960 marcou um dos períodos mais polarizados da Guerra Fria, em que o mundo se encontrava dividido entre o bloco liderado pelos Estados Unidos e o bloco socialista liderado pela União Soviética. No entanto, além desse antagonismo bipolar, um terceiro vetor ganhava força: o das lutas de libertação nacional e dos países do chamado Terceiro Mundo, que buscavam afirmar sua soberania frente ao legado do colonialismo e às novas formas de dominação econômica.
Em 1964, apenas um ano após a criação do Grupo dos 77, formado por países em desenvolvimento com o objetivo de coordenar suas posições na Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), crescia a pressão dos países periféricos por reformas no sistema econômico internacional. Ao mesmo tempo, a descolonização africana estava em pleno curso — entre 1957 e 1965, mais de vinte países africanos tornaram-se independentes — e novas lideranças no Sul Global buscavam romper com a lógica de dependência herdada das metrópoles europeias.
Nesse cenário, Cuba se consolidava como um símbolo de resistência anticolonial e anti-imperialista. A Revolução de 1959, liderada por Fidel Castro e Che Guevara, havia instaurado o primeiro regime socialista das Américas, rompido com os interesses norte-americanos na ilha e promovido uma agenda radical de reformas sociais e econômicas. Desde então, os Estados Unidos intensificaram o cerco à ilha caribenha, impondo um bloqueio econômico e promovendo ações militares e de desestabilização política, como a fracassada Invasão da Baía dos Porcos em 1961 e a Crise dos Mísseis de 1962 — ponto mais crítico da Guerra Fria.
Além disso, em 1964, os Estados Unidos estavam cada vez mais envolvidos no Vietnã, ampliando sua presença militar na Ásia sob o pretexto da “contenção do comunismo”, e davam apoio a ditaduras militares na América Latina e África. Como destaca o cientista político William Robinson (2014), esse período foi marcado por uma “recolonização neoliberal”, travestida de anticomunismo, que buscava manter os países periféricos sob a influência do capital ocidental.
É nesse pano de fundo que Che Guevara se apresenta à ONU, não como um simples representante estatal, mas como porta-voz de um movimento global de contestação à ordem vigente. Ao denunciar a hipocrisia das potências que condenavam a violência revolucionária enquanto financiavam guerras, ditaduras e repressão no Sul, Che convocava os povos a reconhecer que a paz prometida pela ordem liberal era, muitas vezes, a paz do cemitério, do silêncio imposto aos oprimidos.
Segundo Guevara (1965), em seus escritos sobre o internacionalismo, a solidariedade entre os povos não deveria se limitar à diplomacia formal, mas exigir compromisso ativo com a luta dos povos explorados. Essa postura se refletia na política externa de Cuba naquele momento, que apoiava movimentos de libertação na África, América Latina e Ásia, desafiando tanto o imperialismo estadunidense quanto o conservadorismo de Moscou.
O discurso de 1964, portanto, cristaliza o pensamento político internacional de Che Guevara: uma crítica à ordem mundial, um chamado à ação revolucionária transnacional e uma recusa a aceitar a neutralidade como virtude em tempos de opressão.
O conteúdo do discurso e suas críticas à ordem internacional
Na tribuna das Nações Unidas, em dezembro de 1964, Che Guevara proferiu um discurso que rompeu com o protocolo diplomático tradicional. Em vez de uma fala conciliadora, o representante cubano fez uma intervenção incisiva e crítica, desafiando diretamente o status quo internacional e denunciando o imperialismo em sua dimensão histórica e contemporânea. O discurso não foi apenas um ato de oratória política, mas a expressão do projeto internacionalista da Revolução Cubana e do pensamento marxista-revolucionário de Che.
Crítica ao imperialismo e à hipocrisia do sistema internacional
Um dos eixos centrais do discurso foi a crítica ao imperialismo estadunidense, denunciado como responsável por agressões, golpes de Estado e exploração dos povos do Sul Global. Che apontou os Estados Unidos como o principal obstáculo à autodeterminação dos povos, mencionando diretamente ações como:
- a invasão da Baía dos Porcos (1961),
- o bloqueio econômico a Cuba,
- o apoio a ditaduras militares na América Latina,
- e a intervenção crescente no Vietnã.
Em suas palavras:
“O imperialismo vê com maus olhos o despertar dos povos e suas lutas pela liberdade.” (GUEVARA, 1964)
Além da crítica direta à política externa norte-americana, Che questionou a legitimidade das próprias Nações Unidas, que segundo ele permaneciam inertes diante das violações de soberania cometidas pelas grandes potências, mantendo uma aparência de neutralidade enquanto, na prática, protegiam os interesses dos países dominantes.
Solidariedade internacional e defesa das lutas anticoloniais
Outro pilar do discurso foi o apoio incondicional às lutas de libertação nacional, especialmente na África, Ásia e América Latina. Che manifestou solidariedade aos povos de Angola, Moçambique, Congo, Vietnã, Laos e Palestina, reforçando a ideia de que o socialismo cubano não se limitava ao território insular, mas se inscrevia em uma agenda de emancipação global.
Segundo a análise de Ramonet (2004), esse momento consagrou a figura de Che como um “embaixador do Terceiro Mundo”, um símbolo da luta anticolonial em escala planetária. Suas palavras ecoaram entre os países que, à época, buscavam afirmar-se como sujeitos de sua própria história no cenário internacional, enfrentando o neocolonialismo econômico e militar.
A crítica ao racismo e ao apartheid
Che também fez duras críticas ao racismo institucionalizado, denunciando a situação dos afro-americanos nos Estados Unidos e a existência do regime de apartheid na África do Sul. A ONU, segundo ele, falhava em agir com firmeza diante dessas injustiças.
“O imperialismo é racista. E os povos oprimidos são, em sua maioria, não-brancos.” (GUEVARA, 1964)
Essa crítica antecipava discussões que mais tarde seriam incorporadas pela Teoria Crítica das Relações Internacionais, que denuncia as desigualdades estruturais no sistema internacional e os efeitos persistentes do colonialismo.
Chamada à luta revolucionária internacional
Por fim, Che reafirma a ideia do internacionalismo revolucionário, convocando os povos a não esperarem soluções vindas de fóruns diplomáticos, mas a organizar-se para a ação revolucionária e a resistência:
“A história ensinará que aqueles que se levantam contra a opressão são os verdadeiros construtores da paz.” (GUEVARA, 1964)
Seu discurso é, portanto, um chamado à insubordinação contra a ordem internacional injusta, refletindo sua convicção de que apenas a luta armada poderia transformar as estruturas de poder vigentes.
O legado político-intelectual do discurso na ONU e sua atualidade nas Relações Internacionais
O discurso de Che Guevara na Assembleia Geral da ONU, proferido em 11 de dezembro de 1964, permanece um marco na história da política internacional contemporânea. Mais do que uma intervenção de circunstância, ele foi uma manifestação programática do pensamento antissistêmico latino-americano, carregado de conteúdo ideológico, denúncia histórica e projeto alternativo de ordem internacional.
Che concebia a solidariedade entre os povos não como um gesto moral, mas como uma tática revolucionária necessária à superação do imperialismo. A ideia de que “em todo lugar onde um povo é oprimido, há um companheiro de luta” (GUEVARA, 1965) antecipava, sob uma forma engajada, o que hoje se entende como uma leitura transnacional das lutas por justiça e autodeterminação.
Esse princípio inspirou práticas concretas: Cuba, sob sua liderança, enviou médicos, professores, técnicos e soldados a dezenas de países do Sul Global, especialmente na África. No campo das Relações Internacionais, essa atuação é reconhecida como uma forma de soft power revolucionário, em contraposição à lógica da dominação ocidental.
Contribuições ao pensamento crítico das Relações Internacionais
A figura de Che Guevara e seu discurso na ONU são frequentemente associados às correntes pós-coloniais e críticas nas Relações Internacionais, especialmente por sua denúncia da assimetria global e da perpetuação de mecanismos neocoloniais.
Segundo Achille Mbembe (2011), o colonialismo não termina com a independência formal dos países, mas se reconfigura em práticas políticas, econômicas e discursivas. Essa análise se conecta à crítica de Che, que apontava a ONU como um instrumento de manutenção do poder das potências hegemônicas, incapaz de transformar verdadeiramente a ordem global.
Autores como Frantz Fanon, contemporâneo de Che, e mais recentemente Robbie Shilliam e Siba Grovogui, retomam esses fundamentos em suas obras, atualizando o pensamento anticolonial e ampliando o escopo das teorias críticas da disciplina.
Che como símbolo e mito político
Passadas seis décadas do discurso, Che Guevara permanece como uma figura mítica no imaginário político internacional. Sua imagem é reproduzida em movimentos sociais, protestos e campanhas de solidariedade ao redor do mundo. Mas seu legado é controverso: enquanto é celebrado por uns como símbolo da resistência, é criticado por outros como autoritário e excessivamente violento.
Entretanto, mesmo entre críticos, é quase unânime o reconhecimento de que Che representava uma crítica radical à ordem global, numa época em que poucos se atreviam a confrontar as potências nos grandes fóruns multilaterais.
Seu discurso permanece atual em um contexto de:
- multipolaridade em disputa,
- recrudescimento de formas neocoloniais,
- crise climática e desigualdades globais,
- e deslegitimação de instituições multilaterais como a ONU e a OMC.
Che Guevara na ONU e o desafio às hierarquias internacionais
O discurso de Che Guevara na Assembleia Geral da ONU, em 1964, representa um momento singular na história da diplomacia latino-americana. Foi um gesto disruptivo, que rompeu com o padrão tradicional das falas diplomáticas ao denunciar de forma direta o imperialismo, o racismo e o neocolonialismo diante dos próprios representantes das potências ocidentais.
Para as Relações Internacionais, trata-se de um documento político e histórico que condensa uma leitura crítica da ordem internacional, ainda extremamente atual. Ao defender o internacionalismo revolucionário e a autodeterminação dos povos, Che antecipou debates que hoje são retomados pelas teorias pós-coloniais, críticas do Sul Global e abordagens descoloniais da disciplina.
Mais do que uma figura mítica, Che Guevara legou ao campo da política internacional uma crítica estrutural à distribuição do poder mundial e à forma como as instituições multilaterais perpetuam desigualdades históricas. Ao ecoar, de forma contundente, as vozes silenciadas do Terceiro Mundo na tribuna da ONU, ele reafirmou que a política internacional não pode ser neutra diante da opressão.
Seu discurso segue como um alerta e uma inspiração para quem busca uma ordem internacional mais justa, plural e emancipadora.
Referências
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Tradução de António Pescada. Lisboa: Letra Livre, 2005.
GUEVARA, Ernesto. O socialismo e o homem em Cuba. Tradução de Flávio Aguiar. São Paulo: Expressão Popular, 2007.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2018. DOI: https://doi.org/10.7476/9788578575706
REGIS DEBRAY. Revolução na revolução? São Paulo: Paz e Terra, 1968.
SARTRE, Jean-Paul. Apud KATZ, Claudio. Che Guevara, o pensamento econômico e político do socialismo. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
Analista de Relações Internacionais, organizador do Congresso de Relações Internacionais e editor da Revista Relações Exteriores. Professor, Palestrante e Empreendedor. Contato profissional: guilherme.bueno(a)esri.net.br