Em um mundo globalizado, onde as fronteiras econômicas são mais porosas e as físicas e sociais mais rígidas, sobretudo no que diz respeito às migrações e ao refúgio, milhões de pessoas são obrigadas a se refugiarem, por motivos de perseguição étnica, religiosa, social ou política, grave ou sistemático atentado aos direitos humanos e à dignidade humana, buscando acolhimento que as permitam reconstruir suas vidas. O Brasil, por sua vez, é reconhecido internacionalmente por suas legislações e políticas de refúgio. No entanto, questiona-se se há uma discrepância entre a realidade normativa e a vivência dos refugiados no território brasileiro, sobretudo quanto à integração e inserção socioeconômica desses indivíduos. Nesse sentido, o presente artigo buscou compreender a diferença entre a teoria e a prática dos dispositivos sociojurídicos de acolhimento e da Política Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia. Para tanto, foi realizado um estudo qualitativo por meio da análise de estudos e pesquisas sobre o tema, além de ter sido feito um aprofundamento sobre a perspectiva dos refugiados em busca de relatos divulgados em plataformas midiáticas visando entender as principais dificuldades e as lacunas deixadas pela legislação. Por fim, o artigo apresenta resultados que evidenciam diversas dificuldades vividas por refugiados no Brasil, especialmente em relação à inserção ao mercado de trabalho, ao aprendizado da língua e à dificuldade de integração brasileira.
Sumário
Introdução
De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, o termo “refugiado” se refere às “pessoas que estão fora de seu país de origem devido a fundados temores de perseguição […] como também devido à grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados” (ACNUR, s.d). Ou seja, são vítimas de migração forçada, onde cruzam as fronteiras de seus Estados em busca de uma proteção que os seus próprios agentes governamentais locais não podem, ou não querem, oferecer.
Diversos motivos geram temor aos indivíduos, os levando ao refúgio. Esses motivos podem ser intrínsecos à pessoa, ou seja, estarem relacionados à uma característica inerente da mesma, como por exemplo ser parte de um grupo étnico específico, ser devoto à uma religião, pertencer à um grupo sociocultural minoritário, ou serem então, fatores externos ao migrante, como guerras, instabilidade sociopolítica e econômica, pobreza e miséria e até mesmo mudanças climáticas (European Parliament, 2024). Esses aspectos extrínsecos são potencializados pela globalização parcial e inacabada, afetando os fluxos migratórios. A realidade é que a globalização é alicerçada pelo fator integração econômica, baseando-se nas regras do liberalismo que, por sua vez, nem sempre são respeitadas pelos países, fazendo com que o processo de globalização seja desigual entre os Estados, ocasionando a discrepância entre os países ricos e pobres (Martine, 2005). Enquanto a globalização é caracterizada pela flexibilização e porosidade das fronteiras econômica e financeira entre países, as fronteiras físicas dos Estados se tornam cada vez mais sólidas e impenetráveis para a maior parte da população mundial, sobretudo para aqueles que vêm do Sul Global. É inegável que a precariedade socioeconômica em que um indivíduo se encontra aumenta suas chances de se tornar vítima de perseguições, do tráfico de pessoas, ou então de guerras intra ou interestatais (Collier, 2003).
Como explicado pela professora de Relações Internacionais, Julia Bertino Moreira, a pauta dos refugiados está diretamente relacionada às próprias prerrogativas de um Estado-nação, considerando que o país de origem do solicitante de asilo se mostrou violador de facto ou iminente dos direitos de seus cidadãos, ou então foi incapaz de protegê-los, fazendo com que atravessar fronteiras seja a única forma encontrada de se proteger contra essas situações de violência. Sendo assim, percebe-se que os fluxos migratórios forçados são frutos de políticas e ações falhas, muitas vezes desumanizadas que, ao invés de garantir os direitos humanos e a justiça, perpetuam a desigualdade e a falta de proteção às pessoas muitas vezes já marginalizadas. Portanto, segundo Moreira, 2014, “aos países que se propõem em receber esses migrantes, cabe a eles proteger e garantir o respeito aos seus direitos fundamentais e seus direitos como pessoa refugiada, que outrora estiveram em risco no país de origem”.
O direito dos refugiados abrange uma série de disposições que tangem o processo de integração desses indivíduos. Porém, nota-se uma maior concentração no elemento de regularização do status migratório, deixando-se de lado os outros elementos formativos de um bom processo de integração do refugiado à sociedade hospedeira. Isso se nota especialmente no Brasil onde, apesar de ter uma das leis mais avançadas do mundo, os refugiados ainda se encontram altamente marginalizados. Sendo assim, o presente artigo buscou entender a percepção dos refugiados sobre o processo de se refugiar no Brasil. Para tal, investigou tanto na análise acadêmica do tópico quanto na vivência compartilhada de indivíduos.
Esse estudo adota uma abordagem qualitativa de caso, centrada na revisão bibliográfica e na coleta de relatos compartilhados em veículos de comunicação, como jornais. Foi realizada então, uma análise cruzada entre estudos existentes sobre a integração de refugiados e as entrevistas encontradas e compartilhadas online, proporcionando uma abordagem robusta à investigação em questão. Para compreender o tema sobre integração de refugiados no Brasil, o artigo se inicia dando uma breve introdução histórica ao refúgio no Brasil. Em seguida, é apresentado o que constitui a integração e quais são as políticas de integração no país. Segue-se para a percepção dos refugiados sobre a integração no Brasil e por fim, a conclusão.
O refúgio no Brasil
A vinda de solicitantes de refúgio para o Brasil é cada vez mais crescente. Apenas no ano de 2022 foram feitas 50.355 solicitações de proteção de pessoas provenientes de 139 países diferentes (ACNUR, 2023). Dado o volume de indivíduos que têm cruzado as fronteiras a cada dia, deve-se esperar do governo medidas de assistência humanitária estratégicas que permitam atender a todos esses solicitantes de asilo, que os garanta acesso à sociedade brasileira e a passar por um processo de integração, com o objetivo de proporcionar uma qualidade de vida digna e facilitar a integração com a população local.
O Brasil desempenha o papel de país acolhedor há anos. Apesar de ter se mostrado mais atrativo ultimamente, com a crise venezuelana, tem uma grande tradição no que diz respeito e abrigo. Em 1960, o país aderiu à Convenção de Genebra de 1951 e à Declaração de Cartagena em 1984 e em 1982, o ACNUR passou a oficialmente estar presente no país. O papel do Alto Comissariado era de acompanhar os órgãos religiosos que atuavam na área de acolhimento e integração de refugiados, notavelmente a Pares Cáritas, presente no Rio de Janeiro e em São Paulo desde 1975. Na realidade, quando o Brasil passou a receber refugiados nas décadas de 70, a igreja católica desempenhava quase que completamente o papel de proteção dessas pessoas, destacando o papel da Cáritas-RJ durante a ditadura militar (Barreto, 2010).
Com o fim da ditadura, já na década de 80, o Brasil se tornou mais atrativo para os perseguidos políticos de outros países latino-americanos que ainda se encontravam sob um regime ditatorial militar, angolanos que fugiam da guerra civil e posteriormente pessoas vindas do Zaire, Libéria e ex-Iugoslávia. Foi nessa mesma época que o Conselho Nacional de Imigração foi criado com o objetivo de “ordenar, coordenar e fiscalizar as atividades de imigração” (Chaves, 2022). Já em 1989, por meio do decreto nº 98.602, o Brasil passou a abrir ainda mais as suas portas para refugiados independentemente de suas origens.
Como resultado, o processo de pedido de refúgio no país ao longo da década de 90 dependia fortemente da presença do ACNUR, que entrevistava os solicitantes e realizava um pedido de reconhecimento formal ao governo brasileiro. Sendo assim, o papel do Estado era restrito à liberação de documentação, fazendo com que todo o processo de acolhimento e integração ficasse fora do seu escopo governamental, tendo que ser delegado para outras instituições e organizações que, apesar de fazerem um bom trabalho, se mostravam insuficientes para garantir tudo que era juridicamente previsto. Vendo que havia uma grande falha na forma de receber esses refugiados, foi convocada então uma reunião entre as Cáritas do Rio de Janeiro e São Paulo juntamente do Ministério das Relações Exteriores, Saúde, Trabalho e Educação para serem discutidas maneiras melhores de acolher esses indivíduos. Essas reuniões culminaram na Lei número 9.474 de 22 julho de 1997 sobre refúgio, que internalizou os mecanismos da Convenção de 1951, e criou um órgão nacional para lidar com a temática, o Conare.
A Lei ao reconhecer e garantir os direitos às pessoas refugiadas que entram em solo brasileiro foi criada em parceria com a ACNUR e a sociedade civil, sendo inclusive considerada pela ONU “como uma das leis mais modernas, mais abrangentes e mais generosas do mundo” (Barreto, 2010). Quanto ao seu posicionamento frente aos direitos migratórios, o Brasil aborda esse tema de forma transnacional e vinculada aos direitos humanos reconhecendo que, apesar de os países terem direito soberano para ditar as modalidades de entrada, permanência e saída de estrangeiros em seu território, nenhum país está isento de responder perante a comunidade internacional por eventuais violações dos direitos dos migrantes (Barreto, 2010).
Apesar da frente progressista brasileira quanto ao direito dos refugiados, é inegável que esse grupo vulnerabilizado continua sujeito a dificuldades, sobretudo no que tange o processo integrativo. Sabe-se que a integração de um indivíduo é composta por diversos elementos, com destaque a regularização de status migratório, acesso à moradia digna, aprendizado da língua local, acesso ao mercado de trabalho, acesso à educação e acesso à assistência psicossocial, dentre outros (Moreira, 2014). Ainda que a legislação do Estado brasileiro tente ter enfoque na sua sustentabilidade, a realidade do refugiado no país ainda se encontra longe do ideal.
Medidas governamentais para integração local de refugiados no Brasil
Há diferentes formas de enxergar o processo de integração local de um refugiado. A professora, Julia Bertino Moreira, da UFABC, explica que a integração ocorre “quando o refugiado passa a interagir em novo contexto, no país de destino, em meio à comunidade receptora” (2014). Já Tom Kuhlman (1991) vai mais além e especifica que a integração ocorre apenas quando o refugiado preserva a sua própria identidade cultural enquanto se torna parte da sociedade acolhedora, sem que isso o prejudique quanto à sua aceitação no novo país, conseguindo conviver com a população nativa de forma aceitável. No mais, Ager e Strang (2008) apontam que os elementos centrais desse processo são acesso à empregabilidade, moradia, educação e saúde; direitos e cidadania; aprendizado da língua local; estabelecimento de conexões sociais com a comunidade acolhedora. Ou seja, para poder assegurar uma boa integração de refugiados, é vital garantir que não haja fatores impeditivos estruturais que inviabilizam esse processo. Portanto, considerando esses 4 autores, a integração consiste em uma “via de mão dupla” que também exige a participação e abertura da comunidade e governo locais para com o refugiado.
Conforme mencionado anteriormente, o dispositivo jurídico que enquadra o refúgio no Brasil é a Lei nº 9.474 de 22 de julho de 1997. São ao todo 49 artigos, dos quais apenas dois são referentes à integração local, sendo esses os artigos 43 e 44. O primeiro estabelece que “a condição atípica dos refugiados deverá ser considerada quando da necessidade da apresentação de documentos emitidos por seus países de origem ou por suas representações diplomáticas e consulares”, enquanto o último prevê que “o reconhecimento de certificados e diplomas, os requisitos para a obtenção da condição de residente e o ingresso em instituições acadêmicas de todos os níveis deverão ser facilitados [para refugiados]” (1997). Dessa forma, se vê que a Lei de Refúgio não contempla com a abrangência necessária os elementos essenciais para a integração, tendo foco quase que total em apenas um elemento: a regularização do status migratório.
Em 2017, foi aprovada a Lei nº 13.445, conhecida como Lei da Migração, que também pode ser considerada como um grande marco jurídico na garantia de direitos dos migrantes. Apesar de haver uma distinção legal entre um refugiado e um migrante, conforme é disposto na Lei, o refugiado também é contemplado pelo seu escopo de aplicabilidade. O texto confere os princípios e as garantias da política migratória brasileira, prevendo que os migrantes em território brasileiro dispõem dos mesmos direitos que cidadãos do país. A eles é garantido o direito de acesso ao mercado de trabalho, educação pública, atendimento nos dispositivos do Sistema Único de Saúde (SUS), inclusive acompanhamento psicossocial, direito à abertura de conta bancária, direito de reunião familiar, entre outros. Apesar de trabalhar bem a maioria dos elementos de integração citados por Strang e Ager, essa Lei não resolve as questões estruturais que impedem o acesso a essas garantias, fazendo com que, na prática, o processo integrativo continue sendo prejudicado.
Leis de integração como as citadas são importantes também para guiar políticas públicas que venham consolidar o que é previsto por lei. No Brasil, por se tratar de uma República Federativa, os estados possuem uma certa autonomia tanto para criar leis estaduais quanto para criação de políticas públicas. Apesar das leis citadas serem válidas em todo território nacional, não há um Plano Nacional de políticas públicas para refúgio que guie os estados do país na criação de suas próprias políticas e leis, algo que pode ser problemático.
A falta de coesão nas políticas públicas de cada estado brasileiro faz com que a vivência e a acessibilidade do refugiado aos elementos integrativos não sejam concisas pelo território. O sucesso da integração do refugiado irá depender do quão aberto a ele o estado está. Além disso, há uma falta de dispositivos governamentais de acolhimento para refugiados no país. Apenas Rio de Janeiro e São Paulo possuem um Centro de Referência ao Atendimento do Imigrante (CRAI) onde o indivíduo pode ter acompanhamento especializado para pessoas em sua condição de refugiado. De resto, incide ao terceiro setor, com ONGs como a Cáritas e a SJMR, a realização o acolhimento e acompanhamento social e jurídico. Como disse a professora Juliana Moreira, “as iniciativas voltadas para a integração dos refugiados no Brasil são levadas a cabo preponderantemente pela sociedade civil, embora haja também participação do ACNUR e do Estado brasileiro nesse processo” (2014). Apesar de ter o apoio do Estado, que garante os serviços essenciais, e da ONU, que auxilia financeiramente o terceiro setor, mais de 60% do orçamento destinado a programas integrativos de refugiados advém da sociedade civil (Jubilut, 2021). Marcelo Haydu, diretor do Instituto Adus, uma ONG que atua na integração de refugiados, disse em sua entrevista à Brasil de Fato:
”Tanto os refugiados quanto os solicitantes de refúgio continuam dependendo majoritariamente do apoio da sociedade civil organizada, das organizações não governamentais ligadas ou não a uma instituição religiosa. O que é feito pelo governo em comparação com o que é feito pelas ONGs é muito pouco.” (Haydu, 2018).
Complementa:
“O mais grave é que além do governo não tomar para si uma responsabilidade que é dele, por lei, de possibilitar espaços de integração local de uma forma mais ampla, ele não apoia, quase nunca, as iniciativas da sociedade civil. Isso faz com que as organizações tenham que buscar apoio dentro da própria igreja, com pessoas físicas ou com a iniciativa privada para tocar com seus trabalhos, e, em alguma medida, pelo Acnur. O governo faz muito pouco, inclusive, em relação a transferir recursos para que essas organizações trabalhem.” (Haydu, 2018).
Outro ponto da lei, é a falta de menção ao aprendizado da língua. Saber falar o português é o maior catalisador de oportunidades de integração que se tem. Sem falá-lo, não será possível conseguir um emprego digno e regular, o acesso aos dispositivos de acolhimento não especializados em migrantes, como o Centro de Atendimento Psicossocial (CAPS) ou o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), e as interações com os locais não serão tão profundas. Vale ressaltar que há cursos de português, mas são a grande maioria oferecidos por ONGs. Porém o ponto da construção de uma boa política de integração não é apenas instaurar mais cursos de português, mas sim garantir que os refugiados tenham condições de participar e permanecer nesses cursos. Por exemplo, de nada adianta um refugiado ter uma vaga em um curso, se a aula é em um horário durante o expediente de trabalho ou então se o curso fica à 15km de distância de sua residência, em outro município, e ele não tem como arcar financeiramente com o custo de um ônibus intermunicipal duas vezes por semana. Portanto, para além de formular leis, é necessário criar políticas públicas inclusivas que contemplem a garantia dos direitos previstos.
A percepção dos refugiados perante o processo integrativo no país
Por uma crença de que o protagonismo do refugiado na pauta é primordial para se fazer uma análise de dimensão mais profunda e concreta, buscaram-se estudos que considerassem as percepções desses indivíduos assim como seus relatos. Em um ponto de vista jurídico, pode-se considerar que a realidade do refugiado no país é, minimamente, adequada, senão, boa. O Artigo 3 inciso XI da Lei de Migração estabelece um “acesso igualitário e livre do migrante a serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos, educação, assistência jurídica integral pública, trabalho, moradia, serviço bancário e seguridade social” (2017). Porém, os dispositivos existentes têm se mostrado insuficientes ou não são respeitados, segundo a ótica do refugiado e de especialistas da área. No estudo da Dra. Rosana Baeninger, que entrevistou 408 refugiados no Rio de Janeiro e São Paulo, verificou que apenas 2,8% recebiam o auxílio do Bolsa Família, enquanto 11% recebiam subsídio financeiro pelo ACNUR. No mais, quase 85% dos entrevistados não tinham acesso a plano de saúde. Quanto à educação, 61,9% não estudava, dos quais 9% disseram não ter vaga ou não ter a documentação necessária para estudar. Além disso, dos 56,4% dos refugiados que estavam trabalhando, 67,2% não tinham carteira assinada pelo empregador (2008).
No geral, a pesquisa aponta que as condições de trabalho e pagamento são insatisfatórias. A refugiada venezuelana entrevistada pelo ACNUR disse que “Meu esposo […] o contrataram e o pagam como ajudante, mas ele faz trabalho de pedreiro. Tem carteira assinada, mas não pagam o transporte… Se fosse um brasileiro não fariam isso.” (Mulher, adulta, venezuelana). Além dela, o refugiado haitiano Tobi, entrevistado pela tab uol, disse ter sido demitido junto de outros quatro haitianos e completou: “Foi muito complicado conseguir esse emprego e o próximo será mais ainda.” (s.d). Além disso, o estudo mostra que o acesso aos serviços públicos é precário, principalmente no quesito saúde e moradia (Moreira, 2014).
Na verdade, a moradia é um grande problema pouco comentado na esfera política. No Rio de Janeiro, a segunda maior cidade do Brasil e uma das que mais recebe refugiados, havia apenas um centro de acolhimento noturno para refugiados e solicitantes, que era localizado no CRAI. A porção do abrigo foi desativada apenas seis meses depois de sua inauguração e o espaço encontra-se atualmente inutilizado e sem perspectiva de ser reaberto. O refugiado García, da Venezuela, disse em sua entrevista ao G1, que quando estava em Boa Vista, a maior porta de entrada do Brasil para refugiados desse país, havia morado por mais de um ano em uma casa de apenas dois cômodos, um quarto e uma sala, compartilhados por 7 pessoas.
No mais, o inciso II do Art.3 da Lei de Migração prevê “repúdio e prevenção à xenofobia, ao racismo e a quaisquer formas de discriminação” (2017), porém os relatos dos refugiados mostram que sofrem discriminação por parte dos brasileiros, que os associam a fugitivos ou criminosos, sendo um fator dificultador no processo de integração local nos seus mais diversos níveis, como demonstra a refugiada congolesa Lina em sua entrevista à BBC Brasil:
“Na feira, no ônibus, na rua, nas lojas… as pessoas viram e falam ‘tem muito estrangeiro no bairro…’, ‘por que você não volta pra sua terra?’ ou ‘o governo tá cuidando mais do imigrante do que do brasileiro’. A gente é xingado, espancado, assaltado. As nossas casas são invadidas. Isso só tem aumentado.” (mulher, adulta, congolesa)
O ACNUR, em 2023, publicou um relatório de diagnósticos participativos onde entrevistou 218 refugiados de 15 cidades brasileiras diferentes. Um dos pontos principais indicados pelos entrevistados foi a falta de preparo de agentes públicos para lidar com o refugiado e conhecer seus direitos, tendo esses agentes cometido, inclusive, atos de xenofobia e discriminação. Além disso, indicaram dificuldade para abrir uma conta bancária, ter acesso a assistências financeiras estatais e inconsistência na acessibilidade a centros de assistência social, como o CRAS. Outra questão abordada é a dificuldade de aprendizado do português, não apenas pela dificuldade da língua, mas pela falta de oferta de cursos, horários de aula conflituosos com a rotina de trabalho e falta de turmas de níveis intermediário e avançado. Ainda sobre educação, os entrevistados apontaram terem dificuldade para revalidar o diploma, ainda que esse ponto seja abordado pela Lei de 1997, e de ter acesso ao ensino superior (ACNUR, 2023).
Em suma, é inegável que os dispositivos jurídicos para a integração do refugiado são existentes e fundamentados em boas práticas estabelecidas pelas Nações Unidas e sociedade civil. As leis vigentes são muito bem-sucedidas quando se trata do aspecto atribuição do status de refugiado e regularidade migratória, considerando que 60,6% dos entrevistados responderam não ter tido nenhuma questão negativa quanto a isso (Baeninger, 2008). Porém, a integração vai além de se ter um Registro Nacional Migratório (RNM), sendo importante ter uma garantia de que os direitos previstos por lei, são de fato acessíveis. Essa acessibilidade é instaurada quando são colocadas em prática políticas públicas de qualidade que realmente contemplem a realidade do refugiado, como disse o refugiado sírio Jihad Hassan Hammadeh à Tab Uol, “O refugiado no Brasil se torna grupo de risco porque não há políticas públicas capazes de integrá-los na sociedade. Parece que o Brasil diz ‘seja bem-vindo’ apenas por educação”.
Considerações finais
A análise dos estudos e relatos dos refugiados convergem para uma conclusão inequívoca: o processo de integração de refugiados no Brasil enfrenta desafios significativos, que vão além do arcabouço jurídico existente. Embora as leis brasileiras relativas ao refúgio e à migração ofereçam uma base sólida, a implementação efetiva dessas políticas de acolhimento e integração é muito insuficiente. A dependência excessiva de organizações da sociedade civil, como ONGs, para preencher lacunas deixadas pelo Estado, revela uma falta de estrutura e investimento governamental adequado para lidar com as necessidades complexas dos refugiados.
Além disso, os relatos dos próprios refugiados destacam desafios significativos, como dificuldades na obtenção de emprego, discriminação no mercado de trabalho e problemas no acesso a serviços essenciais, como moradia e saúde. A falta de preparo de órgãos governamentais para lidar com refugiados e migrantes também é uma questão preocupante, refletindo a necessidade de uma abordagem mais sensível e inclusiva por parte das instituições e órgãos públicos.
Portanto, para garantir uma integração mais eficaz e digna aos refugiados no Brasil, é crucial que haja um esforço coordenado entre o governo federal e os governos estaduais para criação e promoção de políticas públicas que contemplem a opiniões não apenas de políticos e agentes da sociedade civil, mas sobretudo dos próprios refugiados, que devem tomar a frente das discussões. Essas políticas devem incluir investimentos em programas de capacitação para funcionários públicos e promover uma maior conscientização na população e combate à discriminação e xenofobia. Para além disso, elas devem contemplar também as circunstâncias nas quais os refugiados se encontram que os impedem de acessar os dispositivos já existentes e os que serão criados. Ou seja, é necessário ter uma visão ampla dos problemas sociais enfrentados por essa população, sabendo que muitos desses problemas advém da instabilidade econômica e dificuldade de acesso aos estudos ou de aproveitamento deles, principalmente no nível superior. Havendo essa articulação e diálogo entre o Estado, os governos, o terceiro setor, a ONU e os refugiados, que são agentes centrais da pauta, não há dúvidas de que a integração local ocorrerá de uma forma mais digna, respeitosa e enriquecedora tanto para o refugiado quanto para a sociedade receptora.
É importante, porém, mencionar que o Ministério de Justiça e Segurança Pública (MJSP) em sua portaria nº 290 de 23 de janeiro de 2023, formou um Grupo de Trabalho (GT) constituído por “representantes da sociedade civil, do poder público, de organismos internacionais, de universidades públicas e privadas, institutos de pesquisa e entidades de classe” (MJSP, 2023), que produziu um relatório sobre a temática de integração publicado em janeiro de 2024 que servirá como base para construção de uma Política Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia (PNMRA). É necessário ressaltar que a criação de um PNMRA foi prevista pelo Artigo 120 da Lei de Migração de 2017, que entrou em vigor no mesmo ano. Sendo assim, houve uma demora de 6 anos para se iniciar o projeto, que ainda se encontra em desenvolvimento.
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