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A Constituição Indiana entra em vigor – 26 de janeiro de 1950

Após mais de 150 anos sob o controle do Império Britânico, a primeira constituição indiana como Estado independente e soberano foi aprovada no ano de 1950. Muito embora, a recente independência é reconhecida não como uma completa ruptura nos modelos sociais e econômicos formados através do processo colonial do Império Britânico, mas como uma sucessão rica em nuances e às sombras do longo e profundo controle britânico (MUKHERJEE, 2009). A rica diversidade religiosa, étnica e cultural indiana em paralelo com profundos conflitos, tamanho territorial e populacional, bem como desafios relacionadas à erradicação da pobreza extrema, desenvolvimento e redução de desigualdades, adicionam complexidades tanto no processo com o qual nova constituição será estabelecida, como nos desafios a serem enfrentados do ponto de vista político e social. A Constituição de 1950 é reconhecida por muitos como a constituição da diversidade, aspecto que será expandido a seguir, ainda que a atmosfera de complexidades locais resultem em entraves democráticos na participação e reconhecimento amplo destes grupos no momento imediato após 1950 e os dias atuais.    

Em primeiro lugar é importante salientar que mais do que um documento desenhado do zero, a Constituição do Estado independente da Índia é reconhecida por seus constituintes como um documento estabelecido através de atos, leis, documentos e declarações políticas pré-independência. De acordo com os arquivos históricos relacionados ao marco, a Assembleia Constituinte se reuniu pela primeira vez antes mesmo antes da declaração de independência em 1946 e nos 2 anos e 11 meses subsequentes até a aprovação realizou 166 dias de reuniões. Apesar de a constituinte ser dominada majoritariamente por homens e Hindus, a Assembleia tentou estabelecer certa diversidade trazendo membros de outras religiões, etnias e incluindo mulheres. De acordo com o discurso do que viria a ser um dos principais líderes da Índia moderna, Jawaharlal Nehru, o principal objetivo da Assembleia era “proclamar a Índia como uma República Soberana Independente e elaborar uma Constituição para sua governança futura.” 

Assim, no dia 26 de janeiro de 1950, a constituição indiana entrou em vigor e se tornou a maior Constituição Nacional já adotada, isso porque a Constituição indiana conta com “395 Artigos e 8 Cronogramas e cerca de 145.000 palavras” (CONSTITUTION OF INDIA, 1950). De maneira geral, e já definido em seu preâmbulo, a constituição busca garantir a justiça, pensando nos âmbitos social, econômico e político, com destaque para a luta contra discriminação; a liberdade de expressão, fé e religião; a igualdade de oportunidades, principalmente ao se referir ao sistema de castas; e, a fraternidade “garantindo a dignidade da pessoa e a unidade e integridade da Nação” (CONSTITUTION OF INDIA, 1950).

Sistema de castas indiano: origem e desafios

A constituição indiana se destaca pelo desafio que adotou de ser considerada moderna e ao mesmo tempo manter sua tradição. Essa escolha está diretamente ligada com um dos objetivos de destaque da constituição, que é suprimir o sistema de castas que vigorava no país na época. O sistema de castas indiano é considerado um dos sistemas mais antigos de estratificação social e foi baseado na religião Hindu. Criado com base nos livros sagrados da religião hindu, as castas funcionam como a base da sociedade, com o objetivo de promover confiança e ordem da mesma. Para isso, os hindus, de maneira geral, seriam divididos em quatro categorias principais originadas a partir do deus hindu, Brahma, e uma casta formada pelas pessoas fora dessa divisão social, sendo esta última considerada a casta inferior (BERGAMIN e GOMES, 2018).

A primeira categoria são os Brâmanes que seriam os descendentes de Brahma e ocupariam os cargos de intelectuais, filósofos, professores e pessoas que poderiam falar sobre os ensinamentos sagrados. A segunda são os Kshatriyas que ocupam funções políticas e militares e teriam se originado dos braços de Brahma. Os Vaishyas, originados da coxa, vem logo abaixo e representam os comerciantes. Por último tem-se os Shudras, originados dos pés, que ficam a cargo dos trabalhos considerados mais braçais (BERGAMIN; GOMES, 2018). Além disso, tem-se os Dalits ou, como também são chamados, intocáveis. Eles são considerados por alguns, como originados pela poeira dos pés de Brahma, e exercem trabalhos que são considerados mais “desprezíveis” e, em sua maioria, não possuem condições mínimas de sobrevivência. “ficaram com as tarefas consideradas impuras, que ninguém mais faz, como limpar excrementos. Dalits são considerados tão sujos, mas tão sujos, que ninguém de outras castas devem tocá-los” (BERGAMIN e GOMES, 2018, p.105).O sistema de castas não permitia uma mudança de casta para outra, sendo a sua condição social algo imutável. Além disso, esses sistema acabava privilegiando as castas superiores, o que foi formando a sociedade indiana com um grande carga de injustiça social e preconceitos contra as castas inferiores, além da pobreza que foi se instalou no país  (BERGAMIN e GOMES, 2018). 

Bhin Rao Ambedkar, um dos principais criadores da constituição indiana, era um dalit e entendia muito bem a realidade vivida pelas pessoas pertencentes a esta casta. Por esse motivo, guia as suas percepções e a constituição indiana com o objetivo de acabar com a discriminação sofrida pelos dalits (BERGAMIN e GOMES, 2018). Assim, a constituição da Índia proíbe qualquer forma de discriminação com base na religião, na origem, no gênero, raça e em sua casta, proibindo, por exemplo,  o impedimento da entrada pessoas de castas inferiores em locais com restaurantes, lojas e outros estabelecimentos. Além disso, o artigo 17 da constituição aboliu e tornou crime a intocabilidade, substituindo o termo “intocáveis” para “scheduled castes” para definir a casta dos dalits. Ademais, para  a questão das castas, através do artigo 46 foi instituído cotas para essas castas mais inferiores para cargos no governo (FERES JÚNIOR et al., 2018). Por fim, outros artigos também destacam a manutenção dessas medidas:

Os artigos 330 e 331 criam reservas de assento nas legislaturas provinciais e nacionais para membros das scheduled castes and scheduled tribes. O artigo 335 estabelece reservas de cargos públicos especialmente para dalits. No que diz respeito à educação, no entanto, o artigo 29 da Constituição rejeita qualquer tipo de discriminação nas admissões a instituições de ensino. E, por fim, o artigo 338 prescreve a nomeação de um oficial para fazer relatórios para o presidente e o Parlamento sobre a aplicação dessas medidas (FERES JÚNIOR et al., 2018, p. 53-54).

Apesar da constituição proibir a discriminação, o sistema de castas ainda é utilizado na Índia e essas linhas invisíveis que dividem a sociedade ainda pautam a questão social na Índia, visto que a pesar dos esforços da constituição, pessoas de castas inferiores ou que carregam o sobrenome tradicionalmente pertencentes a essas castas, ainda sofrem preconceito e discriminação originado um grave problema social que ainda não encontrou uma solução, mesmo após 71 anos do estabelecimento da constituição no país. 

Índia 71 anos após a Constituição e para além dos hindus

De acordo com o Fórum Econômico Mundial a diversidade cultural e especialmente religiosa da Índia, permite que o país tenha acesso às relações comerciais que conectam o país não somente com o Sul Asiático, mas com as regiões de predominância islâmica e com o ocidente. No entanto, é importante refletir criticamente sobre as supostas harmonias vividas pelas comunidades mais vulneráveis e minorias étnicas no país. Regiões de fronteira com a China e a conhecida região da Caxemira, por exemplo, revelam os desafios para a coexistência pacífica internamente. As relações hindus-muçulmanos também revelam essa fragilidade. Em artigo no Council on Foreing Relations em 2020, Lindsay Maizland ressalta que a minoria muçulmana no país, que hoje soma mais de 200 milhões de pessoas, sofre com a exclusão histórica que impõe barreiras no acesso à educação, saúde e serviços públicos, bem como tem sido alvo do governo autoritário e de flertes fascistas do primeiro ministro Narendra Modi que recentemente estabeleceu através do Citizenship Amendment Act a facilitação ao acesso à nacionalidade indiana para indivíduos de origem não muçulmana, como forma de ampliar outras minorias e fortalecer um estado de maioria hindu. Para além do aspecto atual, é importante salientar que as marcas coloniais de uma política de “dividir para conquistar” marcaram a região de forma profunda, refletidas nas políticas atuais.

A Constituição Indiana de 1950 efetivamente marcou de forma proeminente a formação independente do país sem os controles diretos do colonialismo britânico. Como destacado anteriormente, por estabelecer um sistema político teoricamente sem as divisões excludentes provocadas pelo sistema de castas e indo além na formação de políticas afirmativas para a inclusão dos dalits no quesito educação e formação política, o documento pode ser considerado progressista e inclusivo (FERES JÚNIOR et al., 2018). Essas características não excluem outras complexidades e os desafios modernos que permeiam todas as esferas da vida social e política indiana. Os recentes movimentos do primeiro-ministro, muito em consonância com a ampliação da força de partidos de extrema-direita no mundo, servem de exemplo para as fragilidades do estado democrático de direito e das conquistas sociais, especialmente quando as alterações se refletem na lei, mas não em mudanças estruturais. As similaridades com os processos ocorridos no Brasil requerem pesquisa mais aprofundada, mas, à primeira vista, se tornam inevitáveis. 

Referências Bibliográficas

BERGAMIN, Maribel; GOMES, Viviana. Sistemas de castas na Índia e os intocáveis. Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional (NDIHR). Resvista NDIHR. Volume: 78060, p. 100. 2018. Disponível em: www.ufmt.br/ndihr/revista 

CONSTITUTION OF INDIA, THE. Governo Indiano. 1950. Disponível em: https://legislative.gov.in/sites/default/files/coi-4March2016.pdf 

FERES JÚNIOR, J., CAMPOS, L.A., DAFLON, V.T., and VENTURINI, A.C. História da ação afirmativa no mundo. In: Ação afirmativa: conceito, história e debates [online]. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2018, pp. 51-63. Sociedade e política collection. ISBN: 978-65-990364-7-7. https://doi.org/10.7476/9786599036477.0005.

MUKHERJEE, Mithi. India in the Shadows of Empire: A Legal and Political History (1774–1950). Oxford University Press. 2009. Disponível em: https://oxford.universitypressscholarship.com/view/10.1093/acprof:oso/9780198062509.001.0001/acprof-9780198062509.

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