A Coreia do Sul ocupa hoje uma posição estratégica no tabuleiro internacional como uma potência média altamente desenvolvida, inserida entre os polos de poder dos Estados Unidos e da China. Com uma economia robusta, capacidades tecnológicas avançadas e crescente influência diplomática, o país tornou-se um ator fundamental nas disputas geopolíticas da região do Indo-Pacífico. No entanto, essa posição também expõe o país a pressões contraditórias e dilemas complexos, exigindo escolhas delicadas entre autonomia estratégica e alinhamentos táticos.
Sumário
Nas últimas décadas, a política externa sul-coreana tem oscilado entre tentativas de maior independência diplomática e períodos de estreito alinhamento com Washington. Sob o governo progressista de Moon Jae-in (2017–2022), a ênfase recaiu sobre iniciativas de diálogo intercoreano, aproximação com países do Sudeste Asiático e busca de autonomia regional. Já com o governo conservador de Yoon Suk-yeol (2022–2024), observou-se um movimento em direção ao reforço da aliança com os Estados Unidos e ao alinhamento com iniciativas como a Indo-Pacific Strategy, ao custo do distanciamento em relação à China e ao agravamento das tensões com o Norte.
A recente eleição de Lee Jae-myung, após um conturbado processo político que culminou no impeachment de Yoon, marca um novo capítulo para a Coreia do Sul. Com um perfil progressista, porém mais pragmático em sua campanha presidencial, Lee herda uma sociedade polarizada, desafios econômicos severos e a necessidade urgente de reposicionar a política externa sul-coreana em meio às incertezas que assolam o mundo. Este artigo analisa como a Coreia do Sul tem lidado com o dilema da potência média nos últimos governos e quais caminhos se abrem com o novo presidente.

A Política Externa de Moon Jae-in: Autonomia, Diálogo e o Desafio do Equilíbrio Regional
Durante seu mandato (2017–2022), o presidente Moon Jae-in adotou uma política externa marcada pela tentativa de reafirmar a autonomia estratégica da Coreia do Sul e de construir uma agenda de paz sustentável na Península Coreana. Em meio ao crescente confronto entre Estados Unidos e China, Moon procurou manter um posicionamento equidistante entre os dois gigantes, ancorando sua estratégia em três eixos principais: o engajamento com a Coreia do Norte, o fortalecimento da diplomacia multilateral regional e o reposicionamento da Coreia como uma potência normativa no sistema internacional.
1. A Nova Política do Norte e o legado do intercoreanismo
Um dos pilares da política externa de Moon foi a reativação dos canais diplomáticos com Pyongyang, por meio da chamada Nova Política do Norte. Essa abordagem combinava diálogo intercoreano, cooperação econômica e iniciativas humanitárias, com o objetivo de reduzir as tensões militares e avançar na direção da desnuclearização gradual da península. O ápice desse esforço foi a realização de três cúpulas entre Moon e Kim Jong-un, que resultaram na assinatura da Declaração de Panmunjom (2018), marcando um momento simbólico de reconciliação.
Contudo, os avanços logo estagnaram. A falta de reciprocidade prática por parte do regime norte-coreano, combinada com as pressões da política interna dos Estados Unidos e a falta de um roteiro concreto para a desnuclearização, limitaram os resultados. Ainda assim, a aposta de Moon no diálogo como ferramenta de segurança regional consolidou sua imagem como líder pacifista e defensor da diplomacia preventiva, mesmo diante de críticas internas.
2. A Nova Política do Sul e a Diversificação de Parceiros
Complementando o esforço intercoreano, Moon lançou a chamada Nova Política do Sul, voltada para o aprofundamento das relações com países do Sudeste Asiático e do Sul da Ásia, em especial os membros da ASEAN e a Índia. Essa política visava diversificar os parceiros estratégicos da Coreia do Sul, reduzindo sua excessiva dependência dos Estados Unidos e da China, e promovendo o país como um ator comprometido com a cooperação regional, desenvolvimento sustentável e integração econômica.
Do ponto de vista geoeconômico, essa reorientação foi uma resposta à crescente instabilidade das cadeias globais de valor e às tensões comerciais sino-americanas. A aproximação com o Sul global também buscava projetar a Coreia como um ator construtivo no Indo-Pacífico, com foco em infraestrutura, inovação tecnológica, meio ambiente e saúde global.
3. O Desafio da Potência Média: Ativismo versus Realismo
O governo Moon é um exemplo clássico da tentativa de exercer uma política externa de potência média com base no ativismo normativo, isto é, na promoção de princípios como paz, cooperação e multilateralismo. Essa ambição, no entanto, esbarrou em limitações estruturais.
A relação com os Estados Unidos, embora mantida sob os marcos da aliança de segurança, sofreu desgastes durante o governo Trump, sobretudo no que diz respeito à exigência de aumento nos repasses sul-coreanos para a manutenção das tropas americanas no país. Ao mesmo tempo, a relação com a China permaneceu ambígua: Moon tentou evitar confrontos diretos, mas também não conseguiu neutralizar os efeitos das retaliações econômicas chinesas iniciadas após a instalação do sistema antimísseis THAAD em 2017.
Nesse cenário, a Coreia do Sul enfrentou os limites de sua capacidade de mediação, percebendo que o espaço de manobra das potências médias em ambientes de polarização internacional é estreito e exige escolhas pragmáticas. A dificuldade de sustentar uma posição verdadeiramente equidistante expôs o país a críticas tanto de aliados quanto de rivais.
4. Legado e Desdobramentos
O legado de Moon Jae-in é ambíguo. Por um lado, ele elevou o perfil da Coreia do Sul como promotora da paz e da diplomacia regional, deixando marcas importantes no discurso internacional do país. Por outro, os resultados concretos foram limitados e muitos dos avanços nas relações intercoreanas foram desfeitos nos anos seguintes. Além disso, sua política de diversificação externa teve resultados modestos em termos de reposicionamento estrutural da Coreia na economia mundial.
Mesmo assim, o governo Moon representa uma tentativa relevante de usar o dilema da potência média como oportunidade para ampliar a agência internacional da Coreia do Sul. Suas escolhas lançam luz sobre os caminhos e impasses enfrentados por países que não dominam o sistema internacional, mas que buscam nele uma voz autônoma e influente.

O Governo Yoon Suk-yeol: Alinhamento Estratégico, Confrontos Regionais e o Fim da Ambiguidade
O mandato de Yoon Suk-yeol, entre 2022 e 2024, representou uma inflexão decisiva na política externa sul-coreana. Em contraste com a abordagem diplomática, conciliadora e focada na península adotada por Moon Jae-in, Yoon conduziu uma política mais assertiva, marcada por alinhamento explícito aos Estados Unidos, intensificação das parcerias com democracias liberais e confrontos abertos com vizinhos estratégicos como a China e a Coreia do Norte. Sua gestão rompeu com o histórico equilíbrio diplomático — a chamada ambiguidade estratégica — e redefiniu a posição da Coreia do Sul como um ator comprometido com o bloco liderado pelo Ocidente na região do Indo-Pacífico.
1. Adoção da Estratégia Indo-Pacífico e o Fim da Ambiguidade
A publicação da Indo-Pacific Strategy of the Republic of Korea, em dezembro de 2022, consolidou a guinada estratégica do governo Yoon. O documento oficializou o compromisso sul-coreano com uma ordem baseada em regras e uma aliança mais próxima com os Estados Unidos, o Japão, a Austrália e a União Europeia, além de acenos à Índia e ao Sudeste Asiático. A estratégia previa também a atuação proativa da Coreia em temas globais como cibersegurança, tecnologia, meio ambiente e cadeias de suprimento críticas.
Este novo posicionamento foi reforçado pela participação inédita da Coreia do Sul na Cúpula da OTAN, pela cooperação informal com o Quad e pelo fortalecimento dos exercícios militares conjuntos com os EUA. Contudo, ao se afastar do equilíbrio pragmático com a China, a Coreia do Sul passou a enfrentar retaliações comerciais e diplomáticas, especialmente em setores como semicondutores e automóveis, dos quais sua economia é altamente dependente.
2. A Reaproximação com o Japão e a Agenda Trilateral
O governo Yoon também buscou reconstruir os laços com o Japão, deteriorados durante o governo anterior devido a disputas sobre o legado da ocupação colonial japonesa. Em 2023, seu governo propôs uma solução indireta para compensações às vítimas coreanas do trabalho forçado, gesto que facilitou encontros bilaterais e trilaterais com EUA e Japão.
Essa reaproximação deu origem a um novo eixo de cooperação trilateral em defesa, inteligência e tecnologia, com impacto direto na contenção da Coreia do Norte e na resposta coordenada à presença chinesa na região. Entretanto, o processo enfrentou críticas internas severas, sobretudo por parte da oposição e da sociedade civil, que consideraram as concessões excessivas e pouco transparentes.
3. Crises Domésticas e Fragilidade Política
Internamente, Yoon enfrentou um cenário político instável. Governou com baixa popularidade e sem maioria parlamentar, o que dificultou a implementação de reformas estruturais. Sua postura confrontacional com a oposição e com movimentos sociais comprometeu sua legitimidade, inclusive na condução da política externa, frequentemente percebida como subserviente aos interesses norte-americanos.
A ausência de consenso interno sobre o reposicionamento estratégico da Coreia do Sul também gerou preocupações quanto à sustentabilidade de longo prazo das novas diretrizes de política externa. O risco de exposição excessiva em caso de mudanças no governo dos EUA — como um eventual retorno de Donald Trump — foi apontado como um ponto fraco estrutural da estratégia adotada.
4. Legado e Desafios para o Futuro
O governo Yoon encerrou seu mandato deixando uma Coreia do Sul mais visível e ativa no cenário internacional, mas também mais vulnerável às disputas geopolíticas do século XXI. A ambição de transformar o país em um Global Pivotal State encontrou barreiras tanto externas — em função das rivalidades entre China e EUA — quanto internas — devido à polarização e à falta de coesão nacional.
O balanço de sua política externa é ambíguo: embora tenha fortalecido laços estratégicos com aliados tradicionais e elevado o perfil internacional do país, também acentuou riscos econômicos, reduziu a margem de manobra diplomática e fragmentou o consenso interno em torno dos rumos da inserção internacional da Coreia do Sul.

Lee Jae-myung e os Desafios do Novo Governo Sul-Coreano
A eleição de Lee Jae-myung (2025-) marca um ponto de inflexão em um país profundamente polarizado por escândalos, tentativas de ruptura institucional e tensões externas. Vindo de uma trajetória pessoal marcada por superação, pobreza e resistência política, Lee assume o cargo com uma das maiores responsabilidades da história recente do país: restabelecer a confiança nas instituições democráticas e reposicionar a Coreia do Sul no tabuleiro da geopolítica asiática.
Após o fracasso da tentativa de imposição de lei marcial por Yoon Suk-yeol, e a sua subsequente destituição pela Corte Constitucional, Lee emerge não apenas como um símbolo de resistência institucional, mas também como uma figura controversa, marcada por acusações judiciais, tentativas de assassinato e polarização ideológica. O contexto interno revela uma democracia resiliente, porém fragilizada por disputas intensas e uma população dividida entre o desejo de mudança e a cautela diante de figuras políticas não convencionais.
Domesticamente, o novo presidente enfrenta o desafio de governar um país cansado de escândalos e com baixa confiança no sistema político. Suas promessas de reformas sociais, foco no crescimento inclusivo e na recuperação do bem-estar das classes trabalhadoras dialogam com seu passado como advogado de direitos humanos e defensor de políticas públicas universais. No entanto, sua administração precisará encontrar equilíbrio entre a pressão judicial ainda pendente e a necessidade de estabilidade política.
Na política externa, Lee propõe uma estratégia pragmática e de diversificação, rompendo com a excessiva dependência das alianças tradicionais e propondo uma postura mais ativa, flexível e centrada nas capacidades estratégicas da Coreia como potência média. Seu objetivo declarado é consolidar a soberania sul-coreana diante das pressões da rivalidade entre Estados Unidos e China, apostando em parcerias multilaterais, inovação industrial e ampliação do papel de Seul como articuladora regional.
Ao mesmo tempo, Lee terá que lidar com a desconfiança de Washington, especialmente sob um novo governo Trump, que tende a exigir alinhamentos mais explícitos e compromissos militares ampliados. A fragilidade das normas internacionais, a crescente instabilidade no Indo-Pacífico e o peso das expectativas domésticas colocam seu governo diante de uma equação complexa: consolidar um novo caminho de liderança internacional sem comprometer alianças estratégicas, e, ao mesmo tempo, restaurar a coesão e legitimidade democrática interna.
A Coreia do Sul entre a Ambição e os Limites do Poder
A trajetória recente da política externa sul-coreana evidencia os desafios estruturais enfrentados por potências médias em um sistema internacional cada vez mais polarizado e instável. A alternância entre diplomacias progressistas e conservadoras não apenas revela as divisões internas da sociedade sul-coreana, mas também demonstra os dilemas de uma nação que busca protagonismo sem dispor dos instrumentos tradicionais das grandes potências, como dissuasão militar de alcance mundial ou poder coercitivo estruturado.
O governo Moon Jae-in tentou transformar a península coreana em um eixo de reconciliação e cooperação, apostando em uma diplomacia de apaziguamento com Pyongyang e em uma postura mais autônoma diante de Washington. Já Yoon Suk-yeol rompeu essa lógica com uma guinada pró-aliança com os EUA e maior antagonismo em relação à China e à Coreia do Norte, mas seu governo se desestabilizou devido à instabilidade doméstica e à crescente polarização institucional.
Agora, com Lee Jae-myung, a Coreia do Sul entra em uma nova fase marcada pela tentativa de unir pragmatismo econômico com uma diplomacia multivetorial. A aposta na estratégia de potência média, baseada na inovação tecnológica, industrialização verde e diversificação de alianças, parece indicar um caminho mais sustentável — mas também mais complexo. Lee herda um país politicamente polarizado, com instituições fragilizadas após a crise constitucional recente e em um ambiente regional onde os riscos de conflito aumentam, especialmente com a possível escalada entre China e EUA.
Para que a Coreia do Sul seja mais do que um parceiro júnior dos EUA ou um instrumento periférico no Indo-Pacífico, será preciso articular um projeto coerente de liderança internacional moderada, capaz de preservar sua autonomia estratégica sem romper com os compromissos de segurança. Mais do que nunca, o país precisará de consistência institucional, credibilidade externa e coesão interna para sustentar sua ambição internacional.
Se bem-sucedido, o governo Lee Jae-myung poderá inaugurar uma nova era na política externa sul-coreana: uma era de pragmatismo estratégico, onde o país afirma sua soberania não apenas pela geopolítica, mas também por sua capacidade de influenciar padrões internacionais de tecnologia, meio ambiente, governança e inovação. Se fracassar, a Coreia do Sul corre o risco de voltar a ser um peão no tabuleiro das grandes potências — um risco que nenhuma potência média pode se dar ao luxo de ignorar.
Analista de Relações Internacionais, organizador do Congresso de Relações Internacionais e editor da Revista Relações Exteriores. Professor, Palestrante e Empreendedor. Contato profissional: guilherme.bueno(a)esri.net.br