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Edward Snowden e o segredo aberto da vigilância global

Edward Joseph Snowden nasceu no dia 21 de junho de 1983 em Elizabeth City, na Carolina do Norte. O analista de sistemas e funcionário da Agência de Segurança Nacional (NSA) tomou os holofotes do mundo quando, em 2013, revelou a existência de diversos programas governamentais de vigilância global que monitoravam a vida privada de uma imensa quantidade de pessoas não apenas nos EUA, mas também em vários outros países

O impacto das revelações de Snowden se mostram até os dias atuais, gerando intensas discussões no debate público sobre a importância da privacidade e até onde o governo tem legitimidade para observar a vida dos seus cidadãos, além de tensionar a política externa norte-americana, que se viu na constrangedora posição de ter que explicar as conversas que monitorou de figuras públicas como a chanceler alemã Angela Merkel e a então presidente do Brasil, Dilma Rousseff.

Uma breve biografia de um desobediente civil

Snowden fez parte da primeira geração a crescer num mundo com a internet à sua disposição. Um autodidata ferrenho, o conhecimento sobre computadores de Ed – como era conhecido pelos amigos – sempre impressionou muita gente. Em um dos fóruns de internet que mais frequentou durante sua adolescência e no início da vida adulta, o Ars Technica, Snowden certa vez escreveu: “Chegamos onde estamos através de uma ladeira escorregadia que estava sob nosso controle para parar? Ou foi uma mudança instantânea que se esgueirou sem ser detectada pelo sigilo governamental pervasivo?

Essa reflexão foi feita em uma das suas últimas interações no fórum, no ano de 2010, três anos antes do fatídico vazamento de dados que o tornaria o homem mais procurado dos EUA. O ato de desobediência civil de Snowden não é, portanto, um evento isolado de sua vida, mas um momento que concretiza uma vida de desconforto com seu papel enquanto funcionário da Agência Central de Inteligência (CIA) e da NSA, tendo que auxiliar o governo a invadir a privacidade de milhões de pessoas.

Em 2014, o documentário Citizenfour mostrou como Snowden revelou os segredos da vigilância global dos EUA para o jornalista Glenn Greenwald e sua equipe. O documentário ganhou o Oscar de Melhor Documentário naquele ano. Dois anos depois, o cinema teria sua adaptação da tensa história da revelação de Snowden, no filme Snowden de 2016, dirigido por Oliver Stone e protagonizado pelo ator Joseph Gordon-Levitt no papel de Edward, dramatizando a situação e enfatizando o caráter heroico da ação do ex-funcionário da CIA.

Um herói furtivo: a glorificação das ações de Snowden

Desde as revelações feitas por Snowden em 2013, um dos principais temas do debate público tem sido se as ações do ex-funcionário da NSA devem ser glorificadas e vistas como heroicas ou taxadas de traição e crime contra a pátria. Nos dias seguintes à fama de Snowden, muitos jornalistas e colunistas categorizaram-no como um herói, que se arriscou para alcançar um objetivo altruísta de proteger a humanidade contra uma ameaça governamental. No fim das contas, a categorização de Snowden como um herói enfatizou o fato de que suas revelações traziam o direito à privacidade à tona, permeando o debate público de reflexões a respeito dos limites do alcance dos olhos governamentais nas vidas privadas de cidadãos e da necessidade de que o Estado seja responsabilizado por violações desse direito à privacidade.     

A narrativa inversa: Snowden como traidor

No artigo III, seção 3 da Constituição dos EUA temos a definição de “traição” contra os EUA como uma “declaração de guerra contra o país, ao aderir a seus inimigos, dando-lhes ajuda e conforto” [tradução nossa]. No entanto, as principais críticas feitas a Snowden por suas ações não se fundamentaram nessa noção, mas sim na ideia de que ele buscou fama às custas da segurança nacional, já que as informações reveladas expuseram os EUA à terroristas e países como Rússia e China.

Foram enfatizados aspectos como o fato de Snowden ter violado um contrato de trabalho que não permitia os vazamentos feitos por ele, e ter violado as autorizações de segurança que tinha dentro do governo norte-americano. Além disso, o fato da sua atitude poder ser caracterizada como o roubo de documentos classificados também foi amplamente utilizado para rotulá-lo como o “vilão” da história. Seja ele caracterizado como um vilão ou como um herói, o fato é que as ações de Snowden marcaram o mundo de uma maneira que não mais poderia ser desfeita, numa concretização desconfortável da realidade descrita nas páginas distópicas de George Orwell: entramos na era da vigilância global escancarada.

O mundo pós-Snowden: vigilância global escancarada

As ações de Snowden deixaram sua marca no mundo. Em primeiro lugar, as relações bilaterais dos Estados Unidos com vários de seus aliados e parceiros econômicos foram danificadas, gerando uma reação instantânea para contenção de danos na época, durante a presidência de Barack Obama. No fim de 2013, um comitê instaurado pelo presidente buscou mitigar as graves violações da privacidade que a NSA havia cometido até então, com muitos congressistas questionando a utilidade das práticas de vigilância da NSA na guerra ao terror. Os impactos também foram sentidos em empresas que armazenam informações na nuvem, já que as revelações de Snowden expuseram uma sensação de fragilidade na segurança de dados pessoais presentes nesses servidores. Empresas como a Microsoft e IBM tiveram prejuízos bilionários no ano seguinte à revelação de Snowden.

A sociedade mostrou a indignação com os segredos escancarados de diversas formas: um movimento intitulado “Restore the Fourth” [Restaurem a Quarta Emenda] pedia para que o governo dos EUA encerrasse todos os programas de vigilância que ameaçavam a quarta emenda da Constituição do país, que faz referência à proteção dos cidadãos contra buscas e apreensões arbitrárias. Outros protestos, como o “Stop Watching Us” e o protesto de alcance global intitulado “The Day We Fight Back”, também fizeram parte das reações sociais ao ocorrido.

Com esse novo contexto, discussões sobre vigilância em massa, cultura do medo, antiterrorismo, espionagem e o setor estratégico de Inteligência no geral passaram a ser noções da política e das Relações Internacionais que voltaram a ter uma relevância urgente, fazendo com que a história de Snowden passasse a habitar as principais discussões do eixo temático da vigilância nas RI.

Snowden e as relações internacionais

Muitos analistas, motivados por uma leitura realista do caso Snowden, questionaram as relações do ex-funcionário da NSA com a Rússia. O conceituado jornal britânico The Economist, por exemplo, deixou no ar qual seria o nível de dependência de Snowden ao governo russo, principalmente em suas aparências posteriores ao evento inicial que catapultou sua fama. A relutância de diversos países, como Venezuela, Índia, Equador, Áustria, Noruega, Polônia e até mesmo a Rússia – que eventualmente se tornaria o lar de Snowden – revelou que o que Snowden fez foi muito mais do que mexer com um estado em específico (os EUA), mas sim mexer com a própria entidade Estado.

Isto devido a Snowden ter enfraquecido a capacidade da Inteligência de ter autonomia para vigiar sua população, algo que muitos estados enxergaram como uma afronta à própria noção de Estado enquanto entidade de soberania e poder inquestionável no foro doméstico. Assim, temos que a contribuição do caso Snowden para as RI foi justamente a de escancarar esse conceito realista de Estado.

Porém, em virtude da ação de Snowden também ter sido absorvida pelo debate público como um ato heroico, as RI tiveram nesse acontecimento um exemplo de desobediência civil que harmoniza com as teorias idealistas e liberais, que enfatizam a necessidade de limitação do Estado e a importância de um Estado que presta contas para a sua população. Por fim, o tema do terrorismo tem sido dominado nas RI desde os acontecimentos de 11 de setembro de 2001, fazendo com que a securitização da temática transforme a luta contra o terrorismo em um fim em si mesmo. Com as revelações de Snowden, o mundo como um todo passou a se questionar se essa empreitada deve mesmo ser dessa forma, às custas da privacidade das pessoas.

Nesse sentido, o mais importante das revelações de Snowden não foi a descoberta de um importante projeto intergovernamental de vigilância até então oculto para a sociedade, mas sim o posicionamento de uma velha problemática existencial – que persiste, pelo menos, desde os tempos dos teóricos contratualistas – no centro do debate público: qual o preço a ser pago para se viver em sociedade de forma segura?

Referências bibliográficas:

HARDING, Luke. The Snowden Files: the inside story of the world’s most wanted man. Nova Iorque: Vintage Books, 2016.

SNOWDEN, Edward. Eterna vigilância: Como montei e desvendei o maior sistema de espionagem do mundo. São Paulo: Planeta do Brasil, 2019.

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