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A paradiplomacia e o federalismo na Constituição brasileira

Fonte: Pexels/Wikimedia Commons

Em um cenário de maior interdependência político-econômica nas relações internacionais, a diplomacia nacional advinda de um órgão central muitas vezes não consegue alcançar as necessidades socioeconômicas regionais, principalmente em países de larga extensão territorial e populacional como o Brasil. Diante de um panorama de falência da ideia da autonomia dos entes federados, causada pelas dificuldades financeiras dos estados-membros do país que os tornam dependentes da ajuda financeira da União, a busca por recursos financeiros e intercâmbio de políticas públicas levou muitos dos entes da federação a buscarem, através da ação internacional, meios de promoção ao desenvolvimento local sem depender da diplomacia nacional, na forma da paradiplomacia (BRANCO, 2008).

Entende-se que paradiplomacia se dá mediante do estabelecimento de contratos e convênios com entidades públicas ou privadas estrangeiras, permitindo o fortalecimento das políticas públicas locais (NUNES, 2005, p. 52). A autonomia política dada aos entes subnacionais pelo Pacto Federativo é alvo de interpretações acerca de sua constitucionalidade, uma vez previsto na Constituição Federal acerca da competência da União para manter relações com os Estados estrangeiros no artigo 21, inciso I. Ainda assim, a paradiplomacia já foi institucionalizada em muitos entes subnacionais através de secretarias, assessorias de relações internacionais, entre outros, responsáveis pela criação de uma agenda de ação internacional paralela à diplomacia nacional.

Nesse sentido, inegável a urgência e atualidade do tema, que se junta a um contexto de insegurança jurídica, visto que a paradiplomacia não é expressamente regulada por legislação federal, representando a necessidade de análise de sua legitimidade constitucional e política. Diante de tal cenário, o trabalho se lança a uma pesquisa de forma a encontrar meios constitucionais de legitimidade da paradiplomacia, e discute os meios de alcançar a legalidade de tais ações no âmbito da Administração Pública. Para isso, parte-se do problema central de como a paradiplomacia pode ser vista como uma prática constitucional de estados e municípios. Como hipótese, propõe-se que os princípios e bases do sistema federativo pátrio dispõem dos elementos legitimadores da paradiplomacia à luz da Constituição de 1988.

Logo, tendo como objetivo central a análise da paradiplomacia à luz do federalismo brasileiro e da Constituição Federal, tem-se como metodologia a análise documental  e constitucional – na forma de uma revisão bibliográfica – do relacionamento entre dois panoramas presentes no ordenamento pátrio, o federalismo, como forma de organização do Estado, e a paradiplomacia, como recente fenômeno das relações internacionais que traz uma necessidade de reavaliação do modelo federativo vigente. O relacionamento entre tais panoramas ocorre por meio da análise de legislação, e a pesquisa científica nacional sobre o tema provém importantes direcionamentos ao desenvolvimento do trabalho. Pretende-se assim, apontar os limites e possibilidades constitucionais da paradiplomacia tendo em vista o sistema federativo brasileiro de 1988.

As bases do federalismo brasileiro

O modelo federalista brasileiro apresenta a junção de duas correntes teóricas, cujos princípios delas resultantes apresentam os fundamentos da análise deste trabalho. Como explica Reverbel (2008, p. 23), a corrente do federalismo sócio-natural apresenta como pressuposto a natureza associativa do ser humano, que parte da sociabilidade humana até à formação do Estado em um processo de baixo para o topo. Tem-se a premissa de que a cooperação das partes independentes irá complementar a insuficiência do todo, dando origem às relações de associações e união, tendo, logo, a solidariedade como elo de cooperação (REVERBEL, 2008, p. 102). Tal corrente deu os fundamentos ao princípio da subsidiariedade como elemento central do federalismo, que leva à formação de um arcabouço institucional da base ao topo, com relações recíprocas e autônomas. Através de tal princípio, ter-se-ia a premissa de que o que pode ser feito pela unidade inferior não deve ser subtraído pela superior, dando origem aos modernos princípios constitucionais da preponderância de interesses e da repartição dos poderes entre os entes (REVERBEL, 2008, p. 37).

Por sua vez, não negando as contribuições da corrente posterior, mas a racionalizando-a, tem-se a corrente do federalismo como ideal de organização do poder. Neste modelo pactista-contratual Montesquieu é o autor de maior relevância na construção da corrente, porém a presente pesquisa põe em destaque a obra “O Federalista” (1993), de John Jay, Alexander Hamilton e James Madison. Tem-se que a corrente sócio-natural foi adaptada às necessidades da época de buscar um modelo adequado às circunstâncias temporais dos Estados Unidos, provendo um modelo competitivo de federalismo marcado pela presença de duas ordens jurídicas, a regional e a nacional, ambas sob a supremacia constitucional.

Observa-se que a partir das correntes pactista-contratual e sócio-natural do federalismo, destacam-se os princípios da preponderância de interesses e distribuição de competências, de forma a garantir a existência de uma ordem política regional/local e outra nacional, concomitantes e sob os desígnios da supremacia constitucional. A preponderância de interesses atua como meio de garantir a existência de entes subnacionais e um ente central atuando no ambiente político; já a distribuição de competências garante a existência de duas ordens jurídicas concomitantes, e, no caso brasileiro, cooperativas.

No caso do federalismo brasileiro, perante um contexto político-constitucional que centralizou competências de forma extensiva principalmente nos artigos 21, 22 e 23 da Constituição Federal, à União (REVERBEL, 2018, p. 90), o poder autônomo de estados membros e municípios, que tem como pressuposto de seu exercício a repartição de competências (BARACHO, 1982, p. 29), encontrou-se limitado pela estrutura do federalismo brasileiro, assim como pelas circunstâncias fáticas consequentes, na limitação de acesso a recursos financeiros para o desenvolvimento de suas competências e atendimento às necessidades locais.

É na defesa e promoção de interesses regionais e locais que a paradiplomacia ganha força no Brasil em meio aos problemas estruturais do próprio sistema federativo, conforme aponta Branco (2011, p. 88), visto que há uma concentração de recursos na União, levando os estados e municípios a uma “guerra fiscal” para buscar receitas. Tendo em vista que, na institucionalização da Constituição Federal, toda a competência internacional foi diretamente atribuída ao ente central, institucionalmente, os demais entes da Federação ficaram desprovidos de meios constitucionais para o exercício da política externa em prol de suas necessidades regionais e locais. A conduta das relações externas do país é constitucionalmente atribuída à União (art. 21, incisos I, II, III, IV), e de competência privativa do Presidente da República (art. 84, incisos VII, VIII, XIX, XX, XXII), auxiliado pelos Ministros de Estado, além do controle de poder externo pelo Congresso Nacional, em matérias expressamente indicadas (art. 49, incisos I, II, III) e naquelas reservadas ao Senado Federal (art. 52, incisos IV, V, VII, VIII).

A Paradiplomacia à luz do Princípio da Preponderância de Interesses e a Distribuição de Competências aos Entes da Federação

A paradiplomacia evidenciou a dificuldade da União Federal em coordenar interesses não-nacionais para formulação da política externa enquanto política pública. Em tal cenário, como aponta Reverbel (2018, p. 90), a tentativa da constituinte de implantar um federalismo cooperativo, de colaboração, tornou-se um controle do ente central acerca dos incisos de competência concorrente do artigo 24. Assim, diante da premissa de que o federalismo é um modelo que busca a convivência harmônica das identidades regionais ao mesmo tempo em que promove à ideia do interesse nacional (BOBBIO, 1998, p. 480), o centralismo das políticas federais, junto ao cenário econômico dos entes federados, veio de forma a deturpar o poder autônomo instituído pelo constituinte no artigo 18, caput, da Constituição Federal. Logo, a necessidade de repensar o federalismo brasileiro passa primordialmente por uma releitura dos princípios basilares do modelo federativo, a preponderância de interesses e a distribuição de competências. Defende-se pela presente pesquisa uma visão do federalismo à luz dos objetivos da República Federativa do Brasil, no artigo 3º da Constituição, onde a cooperação entre os entes federados é atribuição essencial para encontrar a legitimidade do Pacto Federativo.

Apesar dos artigos da Constituição Federal atribuírem as competências relacionadas à política externa à União, não é correta a interpretação limitada destes artigos de forma a atribuir à União a detenção da soberania. É sumária que, pela interpretação teleológica do texto constitucional¹, mesmo no modelo de federação brasileira a União não é soberana, sendo tão autônoma quanto aos demais entes da (BRANCO, 2008, p. 43). O Estado Federal em si, a união resultante do pacto federativo, é o detentor da soberania.

Segundo Nunes (2005, p. 41), tem-se uma interpretação de heterodoxa do texto constitucional, em que se mantêm as prerrogativas do artigo 84, inciso VII, da Constituição de 1988, mas se aceita que entes federados atuem no exterior, desde que sejam relacionados a temas e assuntos específicos de suas competências constitucionais. Ao mesmo tempo, deve-se ter atenção, na perspectiva externa da questão, para que não haja o surgimento de múltiplas vozes na política externa do país (NUNES, 2005, p. 41), razão esta que exige o papel da União na regulamentação e coordenação da ação paradiplomática.

Passando-se pelos aspectos interpretativos da Constituição Federal sobre a política externa, cabe apontar que as competências atribuídas aos estados membros e municípios atuam como elementos de legitimação da paradiplomacia no país. O princípio da preponderância de interesses tem importante papel nessa busca pela legitimidade, de forma que os entes buscam, através de ações externas pontuais, a promoção e desenvolvimento de competências que lhe são atribuídas, por tratar-se de interesses regionais e locais. Isso se diferencia da política externa do escopo da União e sob atuação do Itamaraty, visto que esta última se trata, pela preponderância de interesses, de interesse nacional, e não se confunde com as ações pontuais trazem uma dimensão externa das competências de assuntos regionais e locais. Os estados membros são dotados de competências constitucionais enumeradas no art. 22 e no art. 25, caput, de forma que, no exercício de seu poder autônomo dão dimensão externa as suas competências através de contatos formais ou informais com entidades estrangeiras. Trata-se, logo, de um aspecto da transnacionalização das relações internacionais e da crise do federalismo, que leva aos estados membros a busca por alternativas dentro do seu escopo de competências e do poder de auto-organização e autogoverno.

A própria autonomia, do ponto de vista internacional, implica na possibilidade de que as autoridades locais sejam interlocutoras próprias (FONSECA, 2013, p. 166), de forma que seus atos externam suas competências domésticas. A diplomacia federativa é um instrumento a serviço das competências domésticas dos entes da federação. Afirma ainda a autora:

A autonomia e a permissão irrestrita a tudo o que não contrarie a Carta Magna, confere, portanto, aos Entes federados, ao Distrito Federal e, indissociavelmente, aos Municípios a prática de relações internacionais que não firam as diretrizes da política externa do Itamaraty. (FONSECA, 2013, p. 168).

Trata-se, de acordo com o observado, de uma potencialização do poder autônomo dos estados membros, cuja expressão do poder estatal lhes permitem a gestão de assuntos de sua competência, de forma que não contrariem à União e aos demais entes federados. Logo, a paradiplomacia é estritamente relacionada ao modelo de cooperativo que a Constituição de 1988 busca trazer ao Pacto Federativo, exigindo coordenação de interesses e ações de forma multinível dentro do Estado Federal, ao mesmo tempo em que respeite o poder de auto-organização dos estados membros, e sua expressão pela ação externa.

Entretanto, a contribuição de Banzatto aponta (2015, p. 117) por uma perspectiva restritiva acerca das capacidades de ação externa dos entes não centrais. O pesquisador destaca como única possibilidade expressa de atuação internacional a capacidade de firmar acordos financeiros externos, desde que com o aval do Senado Federal, conforme art. 52, inciso V da Constituição Federal, elemento imprescindível para legitimação e validade destes contratos. Nesse sentido, o posicionamento de Banzatto assevera pelo fato de que a ação externa dos estados somente estaria coberta pelo princípio da legalidade desde que permanecesse restrita à hipótese constitucional do art. 52, V, visto que se trata de uma disposição expressa em que o constituinte permite ao ente não central atuar na esfera internacional.

Ainda assim, mesmo restrito pelas disposições constitucionais que centralizam a política externa na União Federal e do parecer do Itamaraty contrário aos compromissos firmados pelos entes federados, os estados membros e municípios não se sentiram impedidos pelo ambiente institucional federal, levando-os a atuar em suas áreas de competência e também utilizando suas garantias constitucionais para incrementarem suas atividades de âmbito internacional, provocando adaptações na estrutura administrativa do Governo Federal (FROIO, 2015, p. 24). Tal posicionamento dos entes não centrais, por fim, levou a União a criar, ao longo dos últimos anos, espaços institucionais destinados ao desenvolvimento dessa modalidade de cooperação envolvendo os governos não centrais.

Considerações Finais

O processo de reconhecimento federal da paradiplomacia representou um importante passo para a legitimação política destas iniciativas, e o fortalecimento do discurso em prol de sua regulamentação no ordenamento pátrio, cujas duas iniciativas não obtiveram êxito em formar um marco regulatório sobre a questão. A ausência de dispositivos e normativas que tratem expressamente da paradiplomacia representa o principal desafio para os estados e municípios da Federação. Inevitavelmente, a falta de suporte legal e constitucional leva aos questionamentos da doutrina acerca de sua legitimidade à luz da Constituição Federal. Nesse sentido, o trabalho propôs-se a analisar aspectos de tal legitimidade tendo como referencial o modelo federalista cooperativo que o constituinte originário trouxe à Carta Constitucional.

Uma vez que as repartições de competências são norteadas pelo princípio da predominância do interesse, torna-se, no Estado e sociedade contemporânea, cada vez mais problemático diferir o interesse geral do regional/local. Além disso, “o déficit de institucionalidade das relações intergovernamentais no Brasil tornou-se um problema para a própria gestão federativa do País” (RODRIGUES, 2011, p. 17), visto a necessidade de coordenação entre as esferas da federação para obter efetividade em assuntos de competência comum.

Ao analisar tais ações pelo princípio da efetividade das normas constitucionais, percebe-se, além do mencionado, que a ação externa dos entes federados, ao promover matérias de sua competência doméstica, garante maior efetividade à gestão pública na busca pelo desenvolvimento socioeconômico, encontrando respaldo no objetivo da República, conforme o artigo 3º, inciso II, da Constituição Federal. A própria prática tem demonstrado que estados e municípios tão somente buscam a promoção de seus interesses regionais e locais, em matérias que não ultrapassam o aspecto externo de suas competências constitucionais.

A análise da paradiplomacia perante a preponderância de interesses, a distribuição constitucional de competências demonstrou, primeiramente, que a ausência de um marco legal federal que regulamente tal matéria torna toda a atividade paradiplomática eivada, inevitavelmente, de insegurança jurídica, visto que, apesar do consenso político de sua legitimidade e de fortes posicionamentos na doutrina e na pesquisa acadêmica, somente uma disposição legal de cunho federal poderá pacificar os entendimentos e prover de maior força jurídica as ações externas dos entes não centrais.

A conclusão da análise dos mencionados princípios federalistas e constitucionais leva ao entendimento do presente trabalho de que a ação externa dos entes não centrais, em matéria de sua competência constitucional, deve ocorrer em cooperação e coordenação com a União ao mesmo tempo em que instituída por lei estadual/municipal que delimite suas ações. Quanto aos atos firmados pelos entes não centrais em matéria externa, tratando-se do exercício do poder autônomo de suas competências constitucionais no que tange à autoadministração, entende-se que são cobertos pela legalidade pública, desde que toda a ação externa ocorra na concorrência dos fatores citados, a coordenação com a União e cobertos por lei estadual/municipal que os permitam.


¹ Conforme assevera Barroso (2010, p. 337), a interpretação teleológica da Constituição Federal parte da visão de que o Direito existe para realizar o bem estar social e à segurança jurídica. Tal breve conceptualização é relacionada às finalidades do Estado brasileiro constantes no art. 3º da Constituição Federal, cuja consecução deve figurar como vetor interpretativo do sistema jurídico. Em tal interpretação, os fins não devem ser sacrificados às formas, de mesma forma que que os fins devem reverenciar os valores (2010, p. 338).

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